Um portenho e um gaúcho se apaixonaram pelo Flamengo de tal maneira que adotaram o Rio de Janeiro como estilo de vida. "El Loco" Doval, o maior artilheiro estrangeiro de nossa história, foi o boêmio e galã dos anos 1970, que desprezou Paris para continuar no Flamengo e que dizia que jamais jogaria no Vasco por achar São Januário ''muito longe da praia". Renato Portaluppi foi Rei do Rio e da Magnética na virada dos anos 1980 para os 1990. Na contramão dessas personalidades tivemos o franzino Bebeto, que foi considerado por alguns como herdeiro de Zico, entrou no top 10 dos goleadores da Gávea, mas que terminou com fama de traidor por trocar o Manto Sagrado pelo uniforme vascaíno, seduzido pelo vil metal e pelas promessas de Eurico Miranda. Magoada, a torcida rubro-negra adotou um samba famoso na voz de Beth Carvalho para se referir ao antigo ídolo e a quem mais ousasse dar um passo tão errado.
5) DOVAL, “EL LOCO” [1969/70; 1972/75]
Assim como o famoso Renato Portaluppi, o argentino Narciso Doval, grande revelação do futebol argentino nos anos 1960 e ídolo dos “moleques” [caras sucias] do San Lorenzo, “cariocou”.
E de tal jeito e intensidade que se tornou um dos grandes símbolos do Rio de Janeiro na década de 1970: boêmio, frequentador assíduo de praias, motociclista, galã namorador, com fama de maconheiro, jogando no time de maior torcida do país, e consagrado pela técnica e raça em partidas no Maracanã.
A paixão de Doval pelo Rio era tanta que dizia que só sairia da cidade se fosse pra jogar no exterior. Mas quando a oportunidade de ir pra Paris pintou, em 1974, disse um sonoro “não”, justificando que era carioca e que não conseguiria mais viver em uma cidade como Paris, em que fazia “tanto frio”.
Não era da boca pra fora. No mesmo ano, o portenho Doval deu entrada no processo de naturalização – que só terminou dois anos depois. “Cariocou” mesmo, e internalizou de modo tão violento e completo o Manto Sagrado que declarava que não jogaria no Vasco da Gama porque o Gigante da Colina ficava “muito distante da praia”.
Narciso tinha problemas enormes em uma Argentina convulsionada politicamente e em que foi acusado de assediar uma aeromoça. Tim, um dos mais brilhantes estrategistas do nosso futebol, já o havia treinado no San Lorenzo, e o aconselhou a ir para o Rio. Sábio conselho. A mão se encontrou com a luva quando Doval desembarcou na Gávea em 1969, já aos 25 anos de idade.
Conquistou a torcida logo de cara, mas teve problemas com o “Homão”, o disciplinador técnico Yustrich [de quem já falei quando tratamos dos grandes goleiros da nossa história]. Para se livrar das ladainhas do treinador, que exigia que ele cortasse o cabelo, parasse de andar de moto e fosse menos para a praia, pediu para ser emprestado para a Argentina na temporada de 1971.
Quando voltou, no ano seguinte, teve início o auge de sua carreira. O ponta direita moderno, que também atuava de ponta-de-lança e de centroavante, foi um dos protótipos do Atacante total consolidado no Brasil no fim da década seguinte, levantou títulos pelo Mais Querido do Brasil e impressionou a Magnética com sua garra e vocação para o gol.
Doval é até hoje o maior artilheiro estrangeiro a ter passado pela Gávea, com 95 tentos, à frente dos 75 de Benítez e dos 68 de Arrascaeta [marcados até junho de 2024]. Fez grande parceria com Zico, que surgia naqueles tempos, e virou uma mistura de atleta de ponta e celebridade global.
A torcida nunca perdoou a diretoria do Flamengo que decidiu liberá-lo para o Fluminense em um dos troca-trocas promovidos por Francisco Horta, em 1975, tema inclusive de uma canção do rubro-negro Jorge Ben. Fez imenso sucesso também no tricolor das Laranjeiras, peça fundamental da “Máquina”. Em 1978, já aos 34 anos, jogou no México, e depois terminou a carreira nos Estados Unidos.
Apesar disso, nunca escondeu seu amor ao Flamengo. Declarava que aquela famosa história de que “a camisa jogava sozinha” era verdade, pois o time era empurrado pela torcida como se fosse uma máquina de guerra. Foi comemorando uma vitória d’O Mais Querido em Buenos Aires, em jogo contra o Estudiantes pela Supercopa de 1991, que Doval sofreu um ataque cardíaco fulminante e veio a falecer ainda jovem, com apenas 47 anos de idade.
E assim o portenho que se descobriu carioca e se transformou em personagem inesquecível da Cidade Maravilhosa da década de 1970 ascendeu aos céus imortais da Pátria. Doval é uma estrela imorredoura cujo brilho protege a Gávea.
Conquistou as Taças Guanabara de 1970, 72/73; os Cariocas de 72 e 74; o Torneio de Povo de 1972.
6) BEBETO [1983/89/ 1996]
A história de Bebeto no Flamengo pode ser contada por meio de quatro acontecimentos. Para começar, o jovem de 19 anos de idade, ainda um Ponta de Lança clássico, e grande esperança de substituto para Zico, entra nos minutos finais da final do Campeonato de Brasileiro de 1983, vencida pelo Flamengo no Maracanã, que recebia então o maior público de uma decisão de nacional, mais de 155 mil pagantes.
Bebeto era um rapaz soteropolitano que, profissionalizado no ano anterior pelo Vitória, foi contratado pelo rubro-negro e tratado como jóia a ser lapidada. Uma joia que demorou um tanto a brilhar, diga-se de passagem.
Abrem-se as cortinas, e agora vemos o mesmo rapaz franzino, já com 23 anos de idade, se tornando um dos principais jogadores de um timaço que contava não só com Zico, mas também com Renato Gaúcho, Leandro, Andrade, Edinho, Jorginho, Leonardo, Zinho, além de Aldair e Nunes na reserva.
Bebeto arrebentou a boca do balão na Copa União e foi um dos primeiros “pontas de lança” contemporâneos, ou seja, um dos primeiros Atacantes no sentido que se consolidaria então no futebol brasileiro. Ágil, com formação de futebol de salão, dava no máximo dois toques na bola antes de abrir espaços pelos corredores ao redor da área, além de se infiltrar nela para marcar gols.
A dupla que formava com Renato era a revolução tática que apresentaríamos ao mundo nas próximas décadas.
Não à toa se tornou grande ídolo da torcida, com um jogo técnico, veloz e matador. Marcou na decisão do Carioca de 1986, contra o Vasco da Gama, e também na final do Brasileiro contra o Internacional, invadindo a área e definindo o lance antes da chegada de Taffarel. Nos anos seguintes, também deixaria suas marcas nas campanhas do bicampeonato da Taça Guanabara em 1988/89, disputando o posto de artilheiro com outra revelação da época, o Atacante Romário.
O terceiro acontecimento, no entanto, mudou radicalmente a trajetória do baiano. Lembro como se fosse hoje a primeira vez que ouvi a notícia de que Bebeto negociava sua transferência para o Vasco da Gama. A seleção brasileira se encontrava concentrada e se preparando para as Eliminatórias.
Ele reclamava por não ser valorizado quanto imaginava merecer. Ou seja, queria ganhar muito mais. Também houve pressão de um empresário, conta. Dizia que não queria deixar a Gávea, mas as circunstâncias o empurraram para o Gigante da Colina.
Não importa quantas justificativas Bebeto tenha dado desde então, ele ganhou fama de traíra para a incrédula torcida rubro-negra. Ninguém entendeu, quem entendeu preferiu se fazer de desentendido. Tampouco ajudou ter chegado em São Januário se dizendo “vascaíno desde criancinha” – ele disse que era rubro-negro quando voltou para O Mais Querido, anos depois, e também que “amava o Botafogo”, quando abraçou o Glorioso em 1997.
Sua imagem nunca mais se recuperou inteiramente. A Magnética nunca esqueceu, e esgoelou o samba "Vou Festejar", imortalizado na voz de Beth Carvalho e desde então um clássico das arquibancadas rubro-negras, no primeiro jogo do Flamengo contra um Bebeto com a camisa do Vasco: "Chora, não vou ligar/Não vou ligar/Chegou a hora, vais me pagar/ Pode chorar, pode chorar/É o teu castigo/Brigou comigo, sem ter porquê/Eu vou festejar, vou festejar!/O teu sofrer, o teu penar/Você pagou com traição/A quem sempre lhe deu a mão".
Naquela ocasião, o Mais Querido derrotou o Vasco por 2 a 0, um resultado de gosto ainda maior porque o cruzmaltino contava na equipe com Tita [e Andrade]. Bebeto perdeu a cabeça após o segundo gol de Bujica, com assistência de Zico, e acabou expulso.
Em 1996, em mais uma estratégia de marketing de Kleber Leite, que sempre foi fã do Atacante, Bebeto voltou para a Gávea após passagem de quatro anos na Espanha. Substituiá Romário, negociado com o Valencia. Em sua reestreia com o Manto Sagrado, no Estádio da Gávea, Bebeto foi severamente vaiado pela torcida. Com a derrota surpreendente de 1 a 0 para o Juventude, a torcida emendou um coro frenético de “Romário, Romário”, revelando quem ela queria ver mesmo ao lado de Sávio no ataque do time. Kleber Leite teve de conduzir Bebeto para fora do gramado do José Bastos Padilha, e o que devia ser uma festa de reencontro se mostrou, no fim das contas, uma fratura sem solução.
Ainda assim, Bebeto está na lista com todos os méritos. A mágoa é o resquício de uma antiga idolatria, o reverso da moeda. Ainda é o 9º maior artilheiro de nossa história, com mais de 150 gols. Defendeu o Manto Sagrado em mais de 300 partidas.
Sua passagem na Seleção Brasileira é extremamente vitoriosa. Medalha de prata na Olimpíada de Seul e de Bronze em Atlanta. Campeão da Copa América de 1989 e 1997. Campeão do Mundo em 1994 e vice em 1998. A dupla com Romário é uma das mais emblemáticas do futebol mundial. E, inclusive, foi repetida no Flamengo, nem que por apenas um jogo, na volta do Baixinho à Gávea em outubro de 1996, na partida conta o Internacional, no Maracanã.
7) RENATO “GAÚCHO” PORTALUPPI [1987/88; 89/1990; 1993; 1997/98]
A voz de Galvão Bueno ainda ressoa: “Lá vai Renato, vai tentar o último esforço...” Portaluppi, bem posicionado para o contra-ataque naquele Atlético Mineiro e Flamengo pela semifinal do Campeonato Brasileiro, espera a bola sobrar no meio campo e, aos 35 minutos do segundo tempo, engata uma quinta marcha, vencendo o zagueiro, que tenta pará-lo com falta, driblando o goleiro adversário, e rolando a pelota pro gol vazio. Era a garantia da vitória d’O Mais Querido, da classificação para a final da competição, e da vingança pessoal do Atacante contra Telê Santana, que era então técnico do Galo.
O gol de Renato naquela noite de meio de semana foi um dos mais importantes da minha vida de torcedor, inesquecível, não só para mim mas para muitos de minha geração. Muitas águas ainda rolariam entre o gaúcho e a Magnética, mas para quem cresceu nos anos 1980 aquele momento sempre garantiu perdão para as maiores besteiras vindas do camisa 7.
Renato chegou no Flamengo já como maior ídolo da história do Grêmio, clube com o qual venceu a Libertadores, o Mundial Interclubes, e o bicampeonato estadual em 1985/86. E aí, assim como havia ocorrido com Doval duas décadas antes, Renato “cariocou”. Adotou o Rio de Janeiro não apenas como casa, mas como estilo de vida.
Trator físico e boêmio. Habilidoso e individualista ao extremo. Profissional dedicado aos treinos e rei do deboche, capaz de tirar qualquer rival do sério. A identificação com a torcida foi imediata. Renato era show no Maracanã, e muita gente séria declara que foi o melhor jogador do mundo em 1987, à frente de Gullit e Maradona.
De fato, Portaluppi, que a partir de então ficou conhecido como “Gaúcho” mas era na verdade um carioca de adoção, fez um Brasileiro perfeito. O técnico Carlinhos potencializou todas as suas qualidades, transformando-o, como Bebeto, em um Atacante completo, um ‘ponta-de-lança’ moderno, num novo esquema com 4 jogadores no meio campo. O ex-ponta tinha agora liberdade para cair por todos os lados do ataque, levando a defesa adversária à exaustão e loucura.
Portaluppi nunca mais jogou na vida tanto quanto jogou naquele ano. Mas o que fez depois disso era suficiente para manter a magia. Retornou depois de fracassar rotundamente na Europa, e levou o Flamengo a mais um título nacional de 1990.
O amor só começou a se desfazer com o jejum de títulos em 1993. Virou crise em 1995, quando Renato comandou o Fluminense na conquista do Estadual contra O Mais Querido no ano de nosso centenário. E nem mesmo a passagem final pela Gávea, em 1997, conseguiu reanimar a antiga relação.
Mas Renato Gaúcho ostenta fácil o posto de um dos maiores ídolos do Flamengo nas duas últimas gerações, com 68 gols em pouco mais de 200 partidas, e os títulos da Copa do Brasil de 1990 e do Brasileiro de 1987.
Na seleção protagonizou episódio hoje folclórico ao ser cortado da Copa de 1986 por conta de uma noitada após 30 dias confinados numa concentração em Belo Horizonte a mando de Telê. O gol contra o Atlético Mineiro, que mencionei no primeiro parágrafo, foi considerado pela imprensa um resposta contra a decisão do técnico. Disputou a Copa de 1990, mas sem chances no time titular de Sebastião Lazaroni. Fez parte do elenco da equipe canarinho que quebrou o jejum de títulos da seleção na Copa América de 1989.
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Meia-Atacantes:
Meia-Armadores:
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