quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Descartes e a tradição que se voltou contra si própria, ou: da gestação da Modernidade

 

Esse pequeno texto inicia algumas reflexões sobre o projeto cartesiano, principalmente sua teoria do conhecimento e psicologia,  a partir de um olhar baseado na abordagem patrística, representada nesse trabalho pela obra ''On the Soul and the Resurrection'', de São Gregório de Nissa. A justificativa do estudo está na necessidade, apontada pelo próprio Descartes, de averiguar a tradição herdada por ele para tecer uma avaliação da correção de sua obra e da segurança de seus pontos de partida.

 

 

1. O ataque cartesiano ao aristotelismo

 

            Há dois modos de considerar o projeto cartesiano tal como exposto em suas Meditações Metafísicas. Os defensores da primeira posição consideram que Descartes dialoga com o ressurgimento, ou antes o fortalecimento, das posições céticas, ocasionado pela Renascença e pela dissociação da intelectualidade européia do arcabouço e parâmetros culturais e filosóficos medievais. Descartes desejava assim reconstruir a filosofia a partir de um fundamento sólido, que ele reconhecia na infalibilidade da razão, ou antes, no conhecimento lógico-matemático cujo tipo acabado seria a geometria [1]

                A fim de encontrar esse fundamento, Descartes argumentou pela existência de um Deus bom e verdadeiro, garantidor das ideias [claras e distintas] da razão pura. Desse modo, ele poderia estabelecer um sistema em que ideias auto-evidentes a priori garantissem passagem para outras evidências, em um edifício seguro contra o ataque do ceticismo, livre das supostas contradições das concepções predominantes na Idade Média, e alicerçada em determinado conceito de razão [2].

            A segunda posição é a de que Descarte tinha por escopo uma crítica epistêmica ao aristotelismo/tomismo, particularmente à visão de que não existiriam ideias no intelecto que não houvessem passado antes pelos sentidos. Ou seja, o filósofo francês estaria criticando o fundamento da teoria do conhecimento que via nos sentidos a origem de toda e qualquer cognição possível e na razão uma inteligência abstrativa dependente do corpo [3]

            Esta interpretação da filosofia cartesiana confere outra função aos argumentos do cogito e do Deus enganador, que visariam agora apontar para os problemas inerentes ao conceito de um intelecto abstrativo e dependente dos sentidos, e propor uma alternativa para embasar a metafísica de modo mais preciso. A apresentação dos argumentos céticos seria uma estratégica de Descartes para expor as insuficiências da tradição aristotélica, sua falta de respostas para os ataques que surgiam do ambiente Renascentista que havia tomado partes da Europa naquele período.

            Assumo o acerto da segunda interpretação sobre os argumentos cartesianos [4]. Era intenção de Descartes dialogar com a tradição filosófica, retornando muitas vezes aos debates da Antiguidade, expostos nos diálogos platônicos por exemplo, para avançar um modelo cognitivo novo e conforme aos desenvolvimentos que ocorriam em outros campos intelectuais, incluindo a Física galilaica. Descartes usava argumentos e imagens da própria tradição filosófica com a qual dialogava com o fito de superá-la pela demonstração de suas inconsistências.

            Mas qual o grau de acuidade do filósofo na apresentação desse ''material antigo''? 

          A tradição aristotélica-tomista construiu suas próprias repostas para as críticas cartesianas. Mas preferi outro caminho: considerei a exposição de Descartes como a proposição de um experimento psicológico [5], e apontei para a existência de estratos antigos nas elaborações medievais e que são dissonantes em relação a psicologia e a antropologia aristotélica, sem que no entanto fossem levadas em conta na crítica cartesiana. O objetivo é observar o experimento e os argumentos de Descartes a partir de uma ótica patrística, exemplificada pela psicologia e antropologia de São Gregório de Nissa.


2. A Razão independente dos sentidos

 

            O modelo epistemológico aristotélico-tomista estabelece que não há nada no intelecto que não tenha passado antes pelos sentidos. O ato de conhecimento segue, grosso modo, o seguinte ''esquema'':

a) percepção de dados de um objeto pelos sentidos;

b) organização destes dados pela faculdade da imaginação, formando então a imagem sensível do objeto percebido;

c) atuação do intelecto agente sobre esta imagem sensível, da qual abstrai todas as particularidades, mantendo sua quididade -- uma expressão abstrata da natureza comum do objeto -- e formando a imagem inteligível;

d) impressão da species intelegível no intelecto paciente, que toma então sua forma, chegando ao conceito;

e) atribuição do conceito ao objeto particular percebido, formando então o juízo, a cópula entre o predicado e a coisa.


            No ato do juízo, o Intelecto percebe, pela alteridade e por meio da reflexão, a si mesmo como ato de inteligir e visar o objeto[6].


            Este modelo cognitivo possui algumas implicações, dentre as quais:


I) O conhecimento que o Intelecto tem de sua própria existência depende dos sentidos tanto no início do processo [abstrativo] quanto no fim, pois se fundamenta no juízo, que é a atribuição do conceito à coisa particular. Mesmo o conhecimento do imaterial [7] depende, portanto, das faculdades sensitivas;

II) O conhecimento do Intelecto, não dependendo apenas de si mesmo, mas antes de operações outras, revela que não se trata de substância concreta, mas de uma potência de uma substância, que neste caso é o homem racional. O Intelecto, ao conhecer sua existência, descobre mais do que isso, se descobre também corpo.

            Descartes queria demonstrar que o Intelecto conhecia à revelia dos sentidos e formulava, inclusive, inferências a partir de princípios racionais puros. O ponto de partida para esta demonstração, após o estabelecimento dos famosos três graus de dúvida -- dúvida sobre os dados sensoriais, dúvida sobre a imaginação, dúvida sobre a razão por meio da hipótese do deus enganador --, é o argumento do cogito, que fazia parte da tradição pelo menos desde Santo Agostinho. No ato mesmo de duvidar, na realização do ato mental, é impossível negar a existência do ''eu''. A partir deste princípio indubitável ele reconstrói a epistemologia, a física e a ontologia, mas introduzindo pequenas modificações nos posicionamentos tradicionais [8]. A principal delas se origina da pergunta sobre a  natureza deste ''eu'', que é comparado com as propriedades que a tradição aristotélica-tomista divisava no corpo e nas partes vegetativa e sensitiva da alma [9]. Ao não encontrar estas propriedades na natureza investigada, Descartes concluía que ela era ''entendimento puro''. Esse ''eu'' que era pensamento possuía como capacidades fundamentais o ato de conceber e de julgar. Descartes assinalava que o Intelecto, ao conhecer sua própria existência por meio de suas operações, era uma ''substância completa'' e separada em relação ao corpo.

            O modo como Descartes encara esse ''eu'' é um ponto fundamental da reconstrução. Ao identificar os atos de conceber e de julgar como operações fundamentais do Intelecto, ele o associa com a dianoia, o poder lógico-matemático da ''razão pura''.  Descartes adota certas posições da tradição filosófica -- que remontam inclusive a Santo Agostinho --, modificando-os sutilmente de modo a criticar outros elementos dessa mesma tradição. 

                Mas até que ponto o abandono do pressuposto aristotélico da necessidade dos sentidos implica no reconhecimento ou associação das operações do Intelecto com o ato de conceber e de julgar? Eis nosso próximo tópico.


3. O Intelecto segundo São Gregório de Nissa

 

            A obra ''On the soul and the Resurrection'' é construída por São Gregório de Nissa como uma conversa com sua irmã, Santa Macrina, que se encontrava no leito de morte. Como tema, as dúvidas do futuro hierarca quanto à sobrevivência da alma. O autor começa com a apresentação dos argumentos daqueles que negavam essa sobrevivência, e caminha para a explicitação da definição de ''alma'' e de ''eu'' esposada por Santa Macrina. O diálogo segue os seguintes passos:

 

a) Exposição, com vistas à refutação, dos argumentos 'materialistas' contra a sobrevivência da alma, segundo as quais ela seria um elemento do corpo, uma composição de elementos materiais que se dissociaria com o falecimento do indivíduo, ou função orgânica no todo individual e que perderia sua razão de ser com a morte [10];

b)  Distinção entre sensível e inteligível: a capacidade de apreender este último demonstraria que o homem não está limitado à percepção sensorial. O intelecto[11] seria capaz de, partindo dos sentidos, alcançar o conhecimento das essências [12]  -- Os objetos geométricos são exemplos de inteligíveis citados na obra, mas não os esgotam pois eles também se referem a logoi de seres incorpóreos [13];

c) a apreensão do inteligível é vista sob o prisma de uma analogia com o entendimento da ação de Deus na organização do cosmos. Não se trata da formulação de um conceito, mas de uma ennoia [14] -- fruto de uma intuição direta [15] realizada pelo Intelecto, e para além da associação de imagens ou do conhecimento propositivo e lógico. Portanto, o argumento usado para a distinção entre sensível e inteligível é intuicionista;

d) Essa mente, que por suas operações em b) é tida como não corpórea, não possui propriedades de nada que seja material ou que esteja submetido às leis da Physis. Há aqui uma abordagem apofática que pretende se aproximar do Intelecto negando a ele certos atributos [16]. Por fim, a conclusão de que o Intelecto tem as mesmas propriedades atribuídas a Deus, diferenciando-se desse último por seu caráter criado;  

e) Reconhecimento das operações fundamentais do Intelecto nas capacidades de conhecimento direto dos logoi dos entes [17], discernimento [discriminação do bem][18] e domínio sobre os elementos da existência que lhes são subordinados [19].

 

4. O modelo cognitivo, o status da ciência contemporânea e a ontologia

 

            No modelo cognitivo de São Gregório de Nissa, as operações do Intelecto não são reduzidas à dianoia, o poder de raciocínio, mas descritas como intuições diretas ou gnoses de realidades acima das corporais. O Santo Padre estabelece uma identificação entre o Intelecto e o ''eu'', e a distinção de ambas para o corpo, que é visto como um instrumento, seguindo assim uma concepção platônica. No entanto, a negação da necessidade dos sentidos para o conhecimento não é acompanhada da definição do Intelecto como uma capacidade lógico-discursiva e matemática cuja imagem mais perfeita seria a geometria, e sim como um conhecimento direto e contemplativo, supra-racional e unitivo. Além disso, o corpo é visto sob um novo ângulo, e um esforço ascético voltado para um novo direcionamento de suas potências é considerado como fundamental para o ato Intelectual propriamente dito [20].

            A solução tradicional não cai no aristotelismo-tomista mas tampouco ''descarna'' o eu, transformando-o em uma substância completa sinonimizada com a razão lógico-matemática e geométrica -- uma conclusão cartesiana que estará associada não só à entronização da razão instrumental, mas também ao individualismo, ao subjetivismo e ao mecanicismo.

            Se a psicologia, epistemologia e antropologia cartesiana, associada à Física galilaica, pôde funcionar como arcabouço para a nova hierarquia dos saberes gestada na Modernidade, e para a matematização do mundo que a acompanhou, um retorno aos debates presentes na tradição patrística, cujas assunções não foram todas elas consideradas na argumentação cartesiana, pode apontar para uma visão menos ingênua em relação ao raciocínio discursivo e para uma abordagem diferente sobre o papel e as possibilidades do conhecimento científico. 

 

5. Referências Bibliográficas

Copleston, Frederick. A History of Philosophy: Volume IV. Modern Philosophy: From Descartes to Leibniz. London: Burns, Oates & Washbourne, 1958.  

Constantine, Theophanes. Psychological Basis of Mental Prayer in the Heart. Volume I: The Orthodox Doctrine of Person. Disponível em http://timiosprodromos.blogspot.com.br/

Franca, Leonel. Noções de História da Filosofia. Rio de Janeiro: Livraria Agir, 1969.

Gregório de Nissa. On the Soul and the Resurrection. Disponível em http://www.newadvent.org/fathers/2915.htm

Menezes Rocha, Ethel. Observações sobre a Sexta Meditação de Descartes. Disponível em http://www.cle.unicamp.br/cadernos/pdf/Ethel%20Menezes%20Rocha%20161.pdf 

Menezes Rocha, Ethel. Conhecimento do Intelecto. Argumento do cogito, mesma cera e homens verdadeiros. Disponível em http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:http://www.revistas.usp.br/discurso/article/view/62544 



[1] É a posição, dentre outros, de Frederick Copleston  e do Pe. Leonel Franca. Este último, ao louvar o empreendimento de Descartes chega a afirmar que seu problema seria o parco conhecimento da tradição filosófica anterior. É verdade que Descartes não possuía grande erudição sobre a História da Filosofia mas, como veremos, a seguir, seus supostos ''erros'' tem sua origem na tentativa de se desvincular das conclusões filosóficas passadas. "Ao método pertence a primeira inovação cartesiana. Espírito matemático, afeito à exatidão das demonstrações geométricas, Descartes aspira reconstruir a filosofia, aplicando-lhe o método dedutivo a cujo rigor devem, em grande parte, a sua certeza as ciências abstratas da extensão''. Cf. FRANCA. 1969. p. 142, 145, 146.

[2] Como veremos a seguir, trata-se do poder de raciocinar, a potência lógica-discursiva e dedutiva da mente humana. Quando se refere às operações racionais, Descartes não trata exatamente das mesmas capacidades atribuídas ao Intelecto em muitos dos autores da tradição filosófica.

[3] Cf. ETHEL, 2008.

[4] Descartes, em carta enviada ao seu editor, Mersenne, confessa que tinha por intenção, com suas Meditações sobre a Filosofia Primeira, destruir a concepção aristotélico-tomista e fundar uma nova Física. Para esconder seu objetivo, fingiu que estava buscando dialogar com os céticos, corrente revigorada na Europa de seu tempo por causa dos estudos helenísticos da Renascença: ''[...] Posso afirmar, cá entre nós, que essas seis meditações contém todo o fundamento da minha Física. Mas, por favor, não diga às pessoas, pois isso tornaria mais difícil a aprovação por parte daqueles que defendem Aristóteles. Tenho esperança de que insensivelmente os leitores se acostumarão com os meus princípios e reconhecerão sua verdade antes de notarem que eles destroem os princípios de Aristóteles.'' Cf. ETHEL, 2006.

[5] Uma questão importante a ser colocada em outro espaço seria a da propriedade e o esgotamento real dos passos desse experimento proposto por Descartes. Até que ponto, por exemplo, ele teria acesso a uma informação sensorial isenta de qualquer pré-concepção que lhe seria transmitida por seu entorno cultural e horizontes históricos é um ponto polêmico. O acesso ao datum sensum foi problematizado por mais de um filósofo contemporâneo, mas tratar desse tema alongaria e desviaria o foco do texto.

[6] Desse modo, o conhecimento de algo se daria quando o objeto se encontra em ato; dito de outro modo, a partir de suas operações ou energeia. Esta abordagem aristotélica não foi contestada por Descartes.

[7] Entendido por Aristóteles e Tomás de Aquino não como um mundo à parte e independente do material, mas como o inteligível instanciado no indivíduo e passível de apreensão pela inteligência abstrativa.

[8] Cf. ETHEL, 2008.

[9] A divisão tríplice da alma feita por Platão n'A República será aceita com algumas modificações por Aristóteles, e depois tratada com mais detalhes ainda por São Tomás de Aquino. Mas esse tema nos levaria muito longe do assunto abordado e é citado apenas para ressaltar a noção patrística e tomista, e agora também cartesiana, do Intelecto como elemento 'distintivo' do homem enquanto tal.

[10] Neste ponto da obra, São Gregório de Nissa cita as formulações do estoicismo e do epicurismo, o que revela sua interação com as principais correntes intelectuais da Antiguidade Tardia.

[11] Deve-se notar que a palavra usada por São Gregório e comumente traduzida por 'Intelecto' é Nous, que pode compreender também o sentido de 'mente', 'consciência' ou 'eu'.

[12] O termo, que se tornou clássico na patrística oriental, é logoi. São Gregório de Nissa se desvencilha de Aristóteles ao se referir às 'razões' dos entes, vindo a considerá-las como reais e independentes das coisas; no entanto, não parece se comprometer com o 'Mundo das Ideias' platônico.

[13] Diferente de Aristóteles e Tomás de Aquino, São Gregório de Nissa afirma a possibilidade do conhecimento de logoi de entes não materiais, ou seja, não sensíveis. Sua perspectiva sobre o Nous, ou Intelecto, se afasta da concepção abstrativa criticada por Descartes.

[14] Uma representação mental ou conceito.

[15] Uma contemplação intuitiva, ou nas palavras associadas a Santa Macrina, uma gnose, conhecimento direto, supra-racional e unitivo com o objeto.

[16] ''Now granted that the inquirer has had his doubts set at rest as to the existence of the thing in question, owing to the activities which it displays to us, and only wants to know what it is, he will have adequately discovered it by being told that it is not that which our senses perceive, neither a colour, nor a form, nor a hardness, nor a weight, nor a quantity, nor a cubic dimension, nor a point, nor anything else perceptible in matter; supposing, that is, that there does exist a something beyond all these.'' Cf. GREGÓRIO DE NISSA.

[17] ''We declare, then, that the speculative, critical, and world-surveying faculty of the soul is its peculiar property by virtue of its very nature , and that thereby the soul preserves within itself the image of the divine grace since our reason surmises that divinity itself, whatever it may be in its inmost nature, is manifested in these very things—universal supervision and the critical discernment between good and evil.'' Cf. GREGÓRIO DE NISSA. Apesar do tradutor usar o termo ''speculative'', o grego traz ''theoretiken'', ou seja, contemplativo. Cf. CONTANTINE, 2006.

[18] O que também implica em uma forma de intuicionismo moral.

[19] Cuja analogia no texto é com o caráter Providente e Vivificante da ação da Sabedoria Divina no Cosmos.

[20] Perspectiva que vai fundamentar toda a prática ascética do cristianismo oriental, voltada para a 'purificação' da imaginação e dos sentidos a fim de alcançar um conhecimento noético, ou contemplativo, da realidade. Tal perspectiva, já exposta claramente na obra de São Gregório de Nissa, e desenvolvida através dos séculos, pode ser um dos elementos explicativos para a resistência dos intelectuais cristãos no Oriente dos desenvolvimentos escolásticos mais fortemente aristotélicos.