quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Tratado sobre a Práxis -- Evágrio Pôntico II

Continuação da tradução do ''Tratado sobre a Práxis'', iniciada na postagem anterior. Nesse trecho, Evágrio Pôntico começa a ensinar sobre o tratamento às diferentes paixões apresentadas nos tópicos anteriores.






Contra os Oito Logismoi [pensamentos apaixonados]



15 A leitura,  a vigília e a oração interrompem o Nous errante (1). A fome, o trabalho e a vida eremítica secam [murcham] o desejo inflamado (2). A salmodia, a paciência e a misericórdia colocam fim ao temperamento excitado (3). -- E tais práticas em períodos e medidas apropriadas. Pois o excessivo e inapropriado são apenas para períodos curtos; e aquelas [práticas] que duram mais que um curto período são mais prejudiciais do que úteis.


16 Sempre que a alma aspirar por diversos alimentos, deixe-a restrita a pão e água, de modo que se torne grata até por esse pequeno bocado. Pois é a saciedade que leva ao desejo de muitos alimentos; a fome, no entanto, vê como benção sua provisão de pão.


17 A privação de água contribui muito para a castidade. Que os trezentos israelitas que acompanhavam Gideão e que conquistaram Midiã te convençam [Juízes 7:5 a 7].


18 Assim como a ocorrência simultânea da vida e da morte de alguém não se encontra entre as coisas possíveis, assim também a coexistência em uma pessoa da caridade (4) e da avareza é impossível. Pois a caridade é não somente destruidora do dinheiro mas até mesmo de nossa própria vida temporal.


19 Aquele que se afasta de todos os prazeres mundanos é uma torre inacessível ao demônio da tristeza. Pois a tristeza é a privação do prazer presente ou expectado (5). É impossível repelir esse inimigo quando se tem apego a algo mundano. Porque ele [o demônio] certamente estabelece a armadilha e opera a tristeza onde quer que veja inclinação [ao apego].





20 A Ira e o ódio fazem o temperamento (6) crescer (7): os atos de misericórdia e a mansidão diminuem até o temperamento já existente (8).


21''Não deixe o sol se pôr sobre sua ira'' [Ef 4:26] para que os demônios não aterrorizem a alma durante a noite, acovardando a mente para a guerra do dia seguinte. Pois as temíveis aparições [demoníacas] surgem naturalmente dos distúrbios do temperamento (9); não há nada que torne mais o Nous um desertor do que o temperamento perturbado.


22 Quando, conseguindo um pretexto, a parte irascível de nossa alma é perturbada fortemente, então os demônios sugestionam que é bom que nos tornemos eremitas (10), de modo que não solucionemos as causas de nossa tristeza e nos livremos da perturbação. Quando a parte erótica [da alma] é fortemente aquecida, então nos tornamos de novo amantes de nosso semelhante (11), nos considerando duros e selvagens (12), para que, uma vez que desejamos corpos, encontremos corpos. Não nos deixemos persuadir, mas façamos o oposto [do sugerido] (13). 


23 Não se entregue ao pensamento da ira, combatendo em sua imaginação aquele que te entristeceu; nem tampouco ao pensamento da luxúria, imaginando prazeres ainda maiores. Pois o primeiro [pensamento] obscurece a alma e o segundo inflama a paixão (14); ambos, no entanto, tornam o Nous imundo e incapaz de ofertar a Deus uma oração pura (15), fazendo com que se caia imediatamente nas mãos do demônio da acídia, a partir do qual todos os demais [demônios] surgem para se aproveitar dessas condições e despedaçar a alma como cães selvagem diante de um cervo.




24 É da natureza do temperamento lutar contra os demônios ou lutar tendo em vista algum prazer (16). Assim, os anjos nos sugerem os prazeres espirituais e suas bençãos, nos exortando a voltar nosso temperamento contra os demônios. Os demônios, por sua vez, nos atraem aos prazeres mundanos, pressionando o temperamento para que, contra a natureza,  lute contra os homens, de modo que o Nous, obscurecido e decaído da gnose, traia as virtudes (17).


25 Cuidado para nunca deixar um irmão ir embora depois de lhe ter provocado a ira, ou você não será capaz em vida de evitar o demônio da tristeza durante a oração: ele se tornará sempre para você um espinho (18).


26 As doações minoram o rancor. Que Jacó te convença, ele que obteve para si as graças de Esaú com presentes. Esaú que havia saído para encontrá-lo com quatrocentos homens [Gen 32:7]. Mas que nós, que somos pobres, atendamos essa necessidade com uma refeição (19).



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(1) Evágrio usa uma divisão tripartite da alma: primeiro cita as práticas necessárias à terapia do Nous. A leitura a que ele se refere é a das Sagradas Escrituras, e em voz alta, tal como recomendado por ele em outras obras. A vigília não implica necessariamente abandono completo do sono, mas no hábito regular de se levantar à noite para a realização de orações, prostrações e meditações. Evágrio não faz referência, em suas obras, à oração incessante por meio da repetição de passagens dos salmos -- embora seja seguro que conhecesse essa prática, que é mencionada por discípulos seus. A oração aqui tem o caráter de petição ou de agradecimento.
(2) Práticas voltadas para a cura da parte erótica, ou concupiscível, da alma. A fome, ou jejum, inclui a abstenção de água, conforme esclarecido mais à frente, quando se menciona especificamente a fornicação. O trabalho diz respeito ao labor manual e a longas caminhadas. A vida eremítica ao hábito de buscar a solidão. O desejo inflamado citado pelo autor tem um conteúdo principalmente sexual, trata-se antes de tudo da luxúria.
(3) Práticas voltadas ao tratamento da parte irascível da alma, ou temperamento. A salmodia inclui também o modo como se recita os salmos.
(4) Evágrio usa nesse ponto a palavra 'ágape', ou seja, amor, e não 'esmola'.
(5) A tristeza pode ser causada também pela frustração do homem que, irado contra o próximo, se vê impossibilitado em sua vingança.
(6) A parte irascível da alma, que é de onde surgem a ira e o ódio.
(7) Em um sentido estrito: o elemento irascível pode 'aumentar', 'inchar', vindo a ser fonte de distúrbios psíquicos de várias ordens.
(8) A adoção de determinados comportamentos externos contribui para a aquisição de uma dada disposição, que não é uma 'sentimentalidade' ou 'afetividade' mas sim uma ordem interior que possibilita a liberdade diante das paixões.
(9) Evágrio não faz menção apenas a um ataque por meio de sonhos, mas a aparições também em estado de vigília.
(10) O homem irado busca a solidão e se afasta dos demais.
(11) Uma mudança em relação ao estado anterior provocada por uma disposição para a luxúria.
(12) Ou seja, os demônios sugerem que a vida na solidão do eremitério é cruel e uma forma de indiferença com o próximo.
(13) Não nos deixarmos levar à solidão por causa da ira nem a sair da solidão por causa da luxúria. É necessário discernimento para perceber os planos demoníacos em cada contexto.
(14) Seja ela a ira ou a luxúria.
(15) O Nous tomado por logismoi [pensamentos passionais] não consegue ascender até ao estado de oração pura.
(16) A ira ou a parte irascível da alma não é ruim em si mesma, mas possui uma função: o combate ao mal, ou antes, a luta ou esforço para alcançar ou se adequar ao Bem. A orientação ao prazer, por sua vez, é função da parte erótica ou concupiscível da alma.
(17) O Nous, saindo da contemplação dos logoi, ou razões essenciais dos entes visíveis e invisíveis, engendra não as virtudes mas os vícios.
(18) Uma das atividades do demônio da tristeza: trazer ao homem a memória de seus pecados.
(19) A caridade é uma terapia contra o nosso próprio rancor e o rancor que é dirigido contra nós. Mas o que conta é a disposição amorosa do coração, não o valor do presente em si.