Continuação da tradução do ''Tratado sobre a Práxis'', iniciada na postagem anterior. Nesse trecho, Evágrio Pôntico começa a ensinar sobre o tratamento às diferentes paixões apresentadas nos tópicos anteriores.
Contra os Oito Logismoi [pensamentos apaixonados]
15 A leitura, a vigília
e a oração interrompem o Nous errante (1). A fome, o trabalho e a vida eremítica
secam [murcham] o desejo inflamado (2). A salmodia, a paciência e a misericórdia colocam fim ao temperamento excitado (3). -- E tais práticas em períodos e medidas
apropriadas. Pois o excessivo e inapropriado são apenas para períodos curtos; e
aquelas [práticas] que duram mais que um curto período são mais prejudiciais do
que úteis.
16 Sempre que a alma aspirar por diversos
alimentos, deixe-a restrita a pão e água, de modo que se torne grata até por
esse pequeno bocado. Pois é a saciedade que leva ao desejo de muitos alimentos;
a fome, no entanto, vê como benção sua provisão de pão.
17 A privação de água contribui muito
para a castidade. Que os trezentos israelitas que acompanhavam Gideão e que
conquistaram Midiã te convençam [Juízes 7:5 a 7].
18
Assim como a ocorrência simultânea da vida e da morte de alguém não se encontra
entre as coisas possíveis, assim também a coexistência em uma pessoa da
caridade (4) e da avareza é impossível. Pois a caridade é não somente
destruidora do dinheiro mas até mesmo de nossa própria vida temporal.
19 Aquele que se afasta de todos os prazeres mundanos é
uma torre inacessível ao demônio da tristeza. Pois a tristeza é a privação do
prazer presente ou expectado (5). É impossível repelir esse inimigo quando se
tem apego a algo mundano. Porque ele [o demônio] certamente estabelece a armadilha e opera
a tristeza onde quer que veja inclinação [ao apego].
20 A Ira e o ódio fazem o temperamento
(6) crescer (7): os atos de misericórdia e a mansidão diminuem até o
temperamento já existente (8).
21''Não deixe o sol se pôr sobre sua
ira'' [Ef 4:26] para que os demônios não aterrorizem a alma durante a noite,
acovardando a mente para a guerra do dia seguinte. Pois as temíveis aparições [demoníacas]
surgem naturalmente dos distúrbios do temperamento (9); não há nada que torne
mais o Nous um desertor do que o temperamento
perturbado.
22 Quando, conseguindo
um pretexto, a parte irascível de nossa alma é perturbada fortemente, então os
demônios sugestionam que é bom que nos tornemos eremitas (10), de modo que não
solucionemos as causas de nossa tristeza e nos livremos da perturbação. Quando
a parte erótica [da alma] é fortemente aquecida, então nos tornamos de novo amantes
de nosso semelhante (11), nos considerando duros e selvagens (12), para que,
uma vez que desejamos corpos, encontremos corpos. Não nos deixemos persuadir, mas façamos o oposto [do sugerido] (13).
23 Não se
entregue ao pensamento da ira, combatendo em sua imaginação aquele que te
entristeceu; nem tampouco ao pensamento da luxúria, imaginando prazeres ainda
maiores. Pois o primeiro [pensamento] obscurece a alma e o segundo inflama a
paixão (14); ambos, no entanto, tornam o Nous imundo e incapaz de
ofertar a Deus uma oração pura (15), fazendo com que se caia imediatamente nas
mãos do demônio da acídia, a partir do qual todos os demais [demônios] surgem para se
aproveitar dessas condições e despedaçar a alma como cães selvagem diante de um
cervo.
24 É da
natureza do temperamento lutar contra os demônios ou lutar tendo em vista algum
prazer (16). Assim, os anjos nos sugerem os prazeres espirituais e suas
bençãos, nos exortando a voltar nosso temperamento contra os demônios. Os
demônios, por sua vez, nos atraem aos prazeres mundanos, pressionando o
temperamento para que, contra a natureza, lute contra os homens, de modo que o Nous,
obscurecido e decaído da gnose, traia as virtudes (17).
25 Cuidado
para nunca deixar um irmão ir embora depois de lhe ter provocado a ira, ou você
não será capaz em vida de evitar o demônio da tristeza durante a oração: ele se
tornará sempre para você um espinho (18).
26 As
doações minoram o rancor. Que Jacó te convença, ele que obteve para si as
graças de Esaú com presentes. Esaú que havia saído para encontrá-lo com
quatrocentos homens [Gen 32:7]. Mas que nós, que somos pobres, atendamos essa
necessidade com uma refeição (19).
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(1) Evágrio usa uma divisão tripartite da alma: primeiro cita as práticas necessárias à terapia do Nous. A leitura a que ele se refere é a das Sagradas Escrituras, e em voz alta, tal como recomendado por ele em outras obras. A vigília não implica necessariamente abandono completo do sono, mas no hábito regular de se levantar à noite para a realização de orações, prostrações e meditações. Evágrio não faz referência, em suas obras, à oração incessante por meio da repetição de passagens dos salmos -- embora seja seguro que conhecesse essa prática, que é mencionada por discípulos seus. A oração aqui tem o caráter de petição ou de agradecimento.
(2) Práticas voltadas para a cura da parte erótica, ou concupiscível, da alma. A fome, ou jejum, inclui a abstenção de água, conforme esclarecido mais à frente, quando se menciona especificamente a fornicação. O trabalho diz respeito ao labor manual e a longas caminhadas. A vida eremítica ao hábito de buscar a solidão. O desejo inflamado citado pelo autor tem um conteúdo principalmente sexual, trata-se antes de tudo da luxúria.
(3) Práticas voltadas ao tratamento da parte irascível da alma, ou temperamento. A salmodia inclui também o modo como se recita os salmos.
(4) Evágrio usa nesse ponto a palavra 'ágape', ou seja, amor, e não 'esmola'.
(5) A tristeza pode ser causada também pela frustração do homem que, irado contra o próximo, se vê impossibilitado em sua vingança.
(6) A parte irascível da alma, que é de onde surgem a ira e o ódio.
(7) Em um sentido estrito: o elemento irascível pode 'aumentar', 'inchar', vindo a ser fonte de distúrbios psíquicos de várias ordens.
(8) A adoção de determinados comportamentos externos contribui para a aquisição de uma dada disposição, que não é uma 'sentimentalidade' ou 'afetividade' mas sim uma ordem interior que possibilita a liberdade diante das paixões.
(9) Evágrio não faz menção apenas a um ataque por meio de sonhos, mas a aparições também em estado de vigília.
(10) O homem irado busca a solidão e se afasta dos demais.
(11) Uma mudança em relação ao estado anterior provocada por uma disposição para a luxúria.
(12) Ou seja, os demônios sugerem que a vida na solidão do eremitério é cruel e uma forma de indiferença com o próximo.
(13) Não nos deixarmos levar à solidão por causa da ira nem a sair da solidão por causa da luxúria. É necessário discernimento para perceber os planos demoníacos em cada contexto.
(14) Seja ela a ira ou a luxúria.
(15) O Nous tomado por logismoi [pensamentos passionais] não consegue ascender até ao estado de oração pura.
(16) A ira ou a parte irascível da alma não é ruim em si mesma, mas possui uma função: o combate ao mal, ou antes, a luta ou esforço para alcançar ou se adequar ao Bem. A orientação ao prazer, por sua vez, é função da parte erótica ou concupiscível da alma.
(17) O Nous, saindo da contemplação dos logoi, ou razões essenciais dos entes visíveis e invisíveis, engendra não as virtudes mas os vícios.
(18) Uma das atividades do demônio da tristeza: trazer ao homem a memória de seus pecados.
(19) A caridade é uma terapia contra o nosso próprio rancor e o rancor que é
dirigido contra nós. Mas o que conta é a disposição amorosa do coração, não o
valor do presente em si.