quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Halloween, a Véspera do Dia de Todos os Santos

O coco é uma entidade que remonta à celtibéria e que foi relida em festivais cristãos da Península Ibérica

 Entre comemorar o Halloween e a 'Reforma Protestante', cristãos ortodoxos e católicos no Brasil não devem ter dúvida: é Halloween na cabeça.


[Sim, eu sei que um Patriarcado X de outro continente fez uma condenação Y à festa, mas no Brasil isso é um erro].


O Halloween é celebração de origem cristã [tradicional]. O nome vem do inglês ''All Hallows Eve", como é chamada desde o século XVI. Se trata da noite da Véspera da Festa de Todos os Santos, dia Primeiro de Novembro, seguida de um dia de Comemoração dos Mortos, estabelecida no calendário do antigo Patriarcado de Roma no século VIII.


Muita gente fantasia sobre uma obscura origem no ritual do Samhain, que seria praticado pelos celtas. Mais isso é especulação oitocentista baseada em certa tendência protestante da época de ver nos festivais do cristianismo tradicional algum tipo de celebração pagã disfarçada, o que não passa de uma simplificação brutal da religião e da antropologia, além de frágil no âmbito histórico.


E, com certeza, os costumes atuais do Halloween não tem nada a ver com o Samhaim -- nem as abóboras, nem os doces, nem as pilhérias infantis, muito menos as fantasias de Yoda.


E não, as abóboras não vem das ''sinistras'' florestas britânicas. É planta nativa da América que só chegou no Velho Mundo após as Grandes Navegações, quando o Halloween já era comemorado há quase um milênio nas Igrejas. A abóbora foi levada pra Europa pelos portugueses.


"Ah, mas tem tradições de procissões de mortos e entidades e não sei mais o quê". Óbvio que tem, é uma comemoração de ancestrais e uma lembrança da morte, sejam santos deificados ou o morto da família, ora!


Quanto aos protestantes, que preferem se focar no ''dia do evangélico'' e ''dia da Reforma'', bom lembrar que o Halloween é fortíssimo em países que romperam com a Ortodoxia e o catolicismo-romano, particularmente nos EUA, em que se transformou em uma mistura curiosa entre Carnaval e Dia de São Cosme e Damião. "Travessuras ou doces" é uma curiosa repaginação de uma associação entre crianças e os ancestrais mortos. As ofertas às crianças são uma metonímia das oferendas para manter os mortos apaziguados e distantes do dia a dia da comunidade: "Trick or treating".

É possível homenagear tudo isto sem deixar de ser cristão, obviamente. O Halloween, já me repetindo, foi criado por cristãos. 

A AMÉRICA COMO ÉDEN E INFERNO, ou: As disputas simbólicas no Imaginário do Descobrimento

 ''A América Latina existiu desde sempre sob o signo da utopia. Estou convencido mesmo de que a utopia tem seu sítio e lugar. É aqui. Thomas Morus escreveu a própria Utopia inaugural inspirado nas primeiras notícias certas que chegavam à Europa sobre a nossa inocente selvageria. Antes, todo europeu pensava que seus antepassados primevos eram uns patriarcas barbudos, enrolados em sujas túnicas, fedorentos, chorando feios pecados. Foi a visão da nossa indiada louçã, vestida na inocência de sua nudez emplumada, dançando num jardim tropical idílico, que lavou seus olhos daquela visão de judiaria [...] [M]uitos homens santos afirmaram, com base na sua sabedoria teológica ou astrológica, que as ilhas de Fidel com que Colombo topou eram o Éden. Os próprios navegantes, com fundamento na sua experiência direta e visual, disseram o mesmo. Colombo, visivelmente encantado com a beleza inocente da indiada pelada, confessa sem vexame, em carta ao Santo Papa, que o que tinha encontrado era o Paraíso Perdido. “Cri e creio”, escreve ele, “como creram e creem todos os sábios e santos teólogos, que naquela minha comarca é que está o Paraíso Terrestre.”

Darcy Ribeiro, 1986

 

Pedra da Gávea, na qual a imaginação de brasileiros captou toda uma mitologia sobre fenícios, vikings e egípcios

A Modernidade é incompreensível sem o Descobrimento da América, tema que durante muito tempo foi tratado pela Historiografia em uma dimensão puramente social e econômica. Mas as pessoas que atravessaram o Atlântico, muito diferentes da figura do homo economicus e da razão instrumental iluminista, eram motivadas por visões míticas que impactavam profundamente suas ações.

 

A busca pelo Éden perdido na forma de Reinos Orientais ou Ilhas Místicas, já presente no cristianismo antes do cisma -- vide a Jornada de São Brandão -- e na mitologia celta -- Hy Brasil --, bem como na tupi -- Terra sem Mal --, é fundamental para compreender o papel e centralidade da América do Sul na geopolítica contemporânea, do mesmo modo que o mito da Atlântida é fundamental para compreender a ''terra prometida'' dos puritanos anglo-holandeses que desembarcaram no norte do continente.

 

A Ilha de Bem-Aventurança visitada por São Brandão

Este caráter mitológico não passou desapercebido a pensadores influentes do nosso século, que justificam muitas de suas abordagens a partir de uma leitura simbólica do Descobrimento. Um exemplo é o russo Alexander Dugin, que vê a América como uma catástrofe histórica, a ruptura de um tabu que inaugurou uma era apocalíptica.

Em seu tempo, a civilização antiga construiu duas colunas no Estreito de Gibraltar, em que estava inscrito Nec plus ultra, que significa “nada há além”. “Não há necessidade de prosseguir” estava inscrito nestes pilares. Quem tentasse, se arrependeria. E enquanto estas colunas protegeram a humanidade, os portões do Oeste ontológica permaneceram selados; fechados pelas inscrições, pelas duas colunas, todas as coisas iam mais ou menos bem. No entanto, alguém desprezível rastejou através delas. E quando o fez, quebrou o selo ontológico fundamental. Vocês sabem o que o cifrão [do dólar] significa? As duas colunas de Hércules, que nas representações antigas eram circundadas por uma fita na forma da letra ‘S’, com o subscrito “proibido ir além destas colunas”. Mas no dólar está escrito não Nec Plus Ultra e sim plus ultra. “Mais Além” está escrito ali, é permitido, e hoje o dólar significa um movimento para além destas colunas, para o interior da zona proibida, para o Oeste Distante [‘Far West’], para o Atlântico. Isto significa que Leviatã, o Monstro do Oceano, que foi mantido preso por um longo tempo, está livre das redes antigas. E quando os navios de Colombo e outros aventureiros europeus rumaram na direção do Oceano Atlântico, com este gesto ritual demoliram os grilhões que prendiam Leviatã, e Leviatã iniciou sua rebelião.”

[Dugin, 2017]

 

O russo associa o mito do continente perdido de Atlântida, que teria sucumbido por conta de sua hybris, com uma cosmografia em que o extremo-oeste é a terra dos mortos. A Descoberta da América se torna o transbordamento do 'infra-mundo' na História, com todas suas consequências nefastas. A América seria o ''extremo-Ocidente'', o Ocidente depois do Ocidente [Ibéria], similar aos infernos, algo fora da realidade propriamente humana. Daí que em sua Geopolítica, a América se transforme na civilização contra-iniciática por excelência, o abismo que deve ser contido a todo custo pelas forças da Ilha-Mundo. Se trata de uma leitura singular de um tema considerado de extrema relevância por autores da Escola Tradicionalista, em especial René Guénon, que também via a Modernidade como o encapsulamento da mentalidade humana por influência das realidades inferiores. Mas a análise simbólica do francês sob o descenso das condições humanas não adentrava em considerações de ordem geopolítica. Em Dugin, o Estreito de Gibraltar se torna a Grande Muralha que protegia o mundo da ''invasão das hostes de Gog e Magog".

 

Gog e Magog em pintura persa. Para Dugin, as Grandes Navegações liberaram liberaram influências diabólicas na Terra

As cosmografias sagradas e os mitos sobre continentes perdidos não foram, evidentemente, criadas por Dugin, pela Escola Tradicionalista ou sequer pelo ocultismo contemporâneo. Em outras leituras, estas sim pré-modernas, o Extremo-Oeste não é visto sob o signo do Mal. Na Europa, as visões sobre o Oceano Atlântico eram alimentadas pelo imaginário sobre o Índico. Apesar de algumas concepções científicas do fim do século XV considerarem o Índico um ''mar fechado'', no onírico o Atlântico era visto em continuidade com o Oriente. As grandes navegações ibéricas eram impulsionadas pela procura do Paraíso Terrenal, guiados pela estrela da manhã, atravessando o grande oceano em uma busca iniciática. 


Uma das principais fontes cristãs sobre o mar ao Oeste eram as narrativas de São Brandão, monge considerado um dos Doze Apóstolos da Irlanda, e que diziam ter alcançado o Éden em navegações pelo Atlântico. Suas aventuras oceânicas eram narradas com todo um simbolismo ascético que não distinguia sua consecução ''exterior'' do estado de iluminação interior. A jornada iniciática lidava também com o espectro do ''não regresso'' envolvido na batalha contra o grande mar e o contato com monstros marinhos. Também se ligava à percepção de queda, de necessidade de retorno, que era típica também nas ordens esotéricas da aristocracia europeia na Cristandade Latina [voltarei a este ponto].  

São Brandão dando a Eucaristia para uma sereia em suas jornadas oceânicas e iniciáticas


Ora, um dos traços mais importantes nos mitos das Ilhas Místicas, como as da Jornada de São Brandão e da mitologia céltica e fenícia, é que são locais ou centros de poder que se tornam visíveis ou invisíveis de acordo com o momento, estado de percepção etc. Eles não somem no passado -- o passado faz parte de um símbolo de ocultamento, de perda, é uma metonímia do ''tempo mítico''. Na verdade, o ''tempo mítico'' é uma condição encoberta aos olhos, mas que pode ser recuperada diante de certas chaves. Os escolhidos ou aqueles que adquiriram essas chaves podem não apenas enxergar, mas também adentrar esses Paraísos, vivendo ou aprendendo segredos neles, e trazendo de volta poderes e elementos paradisíacos para os que ficaram de fora da ''Ilha". Imagem similar está presente nas conversas entre São Serafim de Sarov e Motovilov: a luz edênica está aqui e agora, para todos o que podem vê-la.


Diferente de tradições em que os eventos históricos se dissolvem no tempo mítico, o Cristianismo sacraliza a História. Não é a única religião ou tradição com esse elemento, alguns povos indo-europeus, como os romanos, faziam o mesmo. Nesse caso, porém, Roma estava no centro da História Sagrada, enquanto no cristianismo a 'protagonista', por assim dizer, é a Igreja, que dá significado inclusive à Roma. Dentro dessa perspectiva, o ensejo nascido no fim da Idade Média por reencontrar o Paraíso Terrenal; a percepção de que a Cristandade Latina se encontrava em rápido processo de degeneração e devia retornar às Origens [busca pela Igreja Primitiva, por Reinos e Ilhas Místicas etc.] não era um mero acaso, nem pode ser avaliado apenas de uma perspectiva sociológica.

 

"[A]s Navegações são indissociáveis da busca portuguesa pelo Oriente místico e da procura do Reino do Preste João, que segundo as crenças difundidas desde o século XII, proporcionaria recursos e alianças que tornariam os cristãos capazes de vencer os muçulmanos e os mongóis.  A insistência portuguesa na conquista de Calicute, considerada meio que insana pelos comerciantes de Antuérpia e Veneza, é incompreensível sem este ponto. Quando chega a Calicute, Vasco da Gama pensava estar chegando no Reino do Preste João, só notando seu erro depois de ser corrido da região. Ele chega a confundir um templo de Shiva com um mosteiro cristão e a estátua da divindade com uma imagem da Virgem Maria. [...] Esta busca mística, associada ao ideal cruzadista, e do qual a Reconquista era expressão, se vincula, certamente, às ordens religiosas de teor iniciático que operavam em meio à Aristocracia lusitana. A proximidade da Coroa Portuguesa com a Ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo aumentou de tal maneira que a liderança da organização religiosa-militar foi ocupada cada vez mais pelos Monarcas da Dinastia de Avis, de modo que Dom Manuel I se tornou mestre da Ordem ainda quando Duque, antes mesmo de sua Coroação." [O Sentido da Independência, in: Já Raiou a Liberdade, 2022]

                      

 

A Expansão Marítima Portuguesa está ligada à busca apocalíptica pelo Reino do Prestes João, no Oriente Místico visitado por São Tiago

O Infante Dom Henrique, o Navegador, era impactado fortemente pelo Mito do Reino de Prestes João, Monarca descendente dos Reis Magos e cujo Império se converteu ao Cristianismo durante as missões apostólicas do Glorioso São Tiago, que pregou no Oriente. As guerras santas e a expansão marítima defendidas por Dom Henrique faziam parte de sua perspectiva apocalíptica e da urgência de encontrar o Reino que, existindo às bordas do Paraíso Terrenal [Éden] -- ou na Índia ou na Etiópia --, forneceria conhecimento e riquezas para que os cristãos superassem o inimigo muçulmano e as forças do anticristo. Ao mesmo tempo, os Reis Portugueses continuavam citando em suas cartas a leais navegadores as Antílias, ou Ilha das Sete Cidades, para as quais sete bispos visigodos teriam navegado no início do século VIII fugindo da conquista muçulmana


O "conflito esotérico" em torno da descoberta prossegue na colonização do atual Brasil, mas ela não é tão simples quanto parece. Um exemplo perfeito disso é o próprio Nicolas Durand de Villegagnon, fundador da França Antártica na Baía de Guanabara. Villegagnon foi colega de Calvino, Francisco Xavier e Inácio de Loyola na Universidade de Paris. Os dois últimos estão na origem dos Jesuítas e de suas técnicas místicas, enquanto Calvino deu início à Reforma propriamente dita. 

Imagem no piso das ruínas de Cartago, cidade fenícia no Norte Ocidental da África. Os fenícios também estão ligados às narrativas sobre a bíblica terra de Ofir, visitada pelo Rei Salomão e por Hiram, Rei de Tiro, no Líbano. Entre os séculos XVII e XIX, muitos defenderam que esta expedição teria passado pelo Amazonas. Outros, que os fenícios navegaram até o Brasil, deixando em seu território diversas inscrições


Já Nicolas saiu da Universidade para as Ilha de Malta, onde adotou o Manto Sagrado dos Cavaleiros Hospitalários. Ele era um "Templário", digamos assim, e sua Ordem de Cavalaria obedecia diretamente a Carlos V, inimigo de seu país natal, a França. Não à toa, Villegagnon lutou ao lado do Imperador contra o famigerado "Barba Ruiva". A aventura da França Antártica foi financiada e apadrinhada por Gapard de Chantillon, o Conde de Coligny, principal conselheiro de Henrique II, e que diziam ser huguenote. Só que Coligny só se converteu ao calvinismo quatro anos depois da expedição de Villegagnon. É verdade que Durand pediu ajuda a Calvino depois que sofreu um motim na Guanabara, ao entender que estava sozinho em um momento de imensas reviravoltas na Corte francesa. Mas os calvinistas não duraram muito no Forte de Coligny, os debates teológicos em torno da Eucaristia, das Liturgias e do casamento explodiram em conflito aberto. O próprio Villegagnon fez questão de se livrar dos reformados antes retornar à França em 1560.


Agora, qual era a relação desse Cruzado com os Cavaleiros da Ordem de Cristo, que levavam adiante a Colonização portuguesa, e com os Jesuítas, ordem que também mobilizava o mito tupi da Terra Sem Males e a jornada de Sumé para o Oeste, na direção dos Andes --, Sumé que os freis associaram ao Glorioso Apóstolo São Tomé, que evangelizou a Índia [mais uma vez o Oriente Místico], segundo a Tradição Cristã?


A Nova Atlântica, de Francis Bacon, utopia que pode ser comparada à da Babel/Babilônia de Gênesis

É um mistério. Mas os Reformadores calvinistas tiveram mais sucesso na América do Norte, que nasce sob outro signo utópico poderoso, a Nova Atlântida, de Bacon, descrita com o nome hebraico de Bensalem. A Ilha teria se convertido ao cristianismo, mas era governado por um conselho todo poderoso chamado "Casa de Salomão", com ritos próprios, capacidade de forjar milagres e iludir a todos com truques com a luz, e autoridade para decidir que segredos revela ou não à sociedade e ao Estado. O objetivo último de Bensalem era "o conhecimento das causas e o segredo dos movimentos de todas as coisas; a expansão dos limites do Império humano até a conquista de tudo que é possível." 


Enquanto alguns atravessaram oceanos seguindo o mito da Nova Atlântida, outros sacrificaram tudo pela redescoberta do Éden. No campo do mito, o Brasil é desde as origens uma terra santa, e que está sempre pronta a ser redescoberta, como a Ilha no meio do Mar que aparece e desaparece e cuja utopia permanece viva porque incrustada no imaginário.


A Ilha das Sete Cidades teria servido de refúgio para sete hierarcas visigodos que fugiam da conquista muçulmana no início do século VIII. Mito de grande impacto no imaginário português e ainda insuficientemente explorado

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

O MARXISMO E A LUTA ANTIRRACISTA GLOBAL, ou: o negro imaginado como nova classe revolucionária

 

Militância antirracista derruba estátuas de Cristóvão Colombo nos EUA

O racismo biológico europeu chegou com força no Brasil da segunda metade do século XIX, se mesclou com a hierarquia social herdada da escravidão, e nutriu as ideologias que impulsionaram a derrubada da Monarquia e a consolidação da República. O estudo sobre as questões raciais do país fez com que nossos intelectuais criassem alternativas que acreditavam estar fundamentadas em nossa história social e particularidades civilizacionais.


Arthur de Gobineau, um dos principais formuladores do racismo biológico


A mais bem sucedida delas ficou conhecida como escola culturalista, ou escola "baiana", ainda que seu principal nome fosse o pernambucano Gilberto Freyre. Sua obra se adequou com perfeição ao espírito dos tempos e à agenda política da Era Vargas, transformando-a no paradigma predominante por pelo menos duas gerações, e uma referência que ultrapassava em muito o campo intelectual e praticamente se imbricou, em algumas de suas perspectivas, com a própria ideia de brasilidade.


Vem daí, por exemplo, a valorização de um Brasil mestiço e capaz de, a partir de seus próprios parâmetros civilizacionais -- ibéricos/norte-africanos, católico-romanos, sensuais etc. -- escapar do racismo rígido e segregacionista do mundo europeu e, mais particularmente, anglo-saxão. Nesse sentido, o Brasil ficaria "bem na fita" quando comparado aos EUA, à África do Sul ou à Rodésia, países de colonização inglesa. Um dos aspectos dessa valorização era o ''mulatismo'' ou ''morenidade'', a tendência popular de enfatizar a ''cor morena'' em um sistema de classificação que supera, em muito, o conceito de pardo utilizado pelo IBGE, já que grande parte dos brancos e dos pretos também se incluem na categoria de ''morenos''.

Gilberto Freyre, intelectual pernambucano cujas teses culturalistas sepultaram as teses racistas no Brasil


A abordagem culturalista não satisfazia, no entanto, uma gama de pensadores marxistas que tinham posição central no Sudeste e irradiavam suas ideias a partir da USP, universidade criada pela elite paulista derrotada militar e politicamente pelo getulismo nos anos 1930. Florestan Fernandes é considerado o nome fundador dessa escola ''uspiana'' ou paulista, que se tornou hegemônica nas universidades a partir dos anos 1960, e que a partir desta posição conquistou a esquerda política. O Movimento Negro Unificado [MNU], fundado em São Paulo em 1978 e dominado por ativistas da Convergência Socialista [de viés trotskista], se tornou um braço político desta ordem de ideias difundida a partir da USP.

A escola paulista construiu seu caminho atacando a obra de Gilberto Freyre. Para isso utilizou como espantalho o "mito da democracia racial", que atribui caluniosamente ao intelectual pernambucano, retratado como um sujeito que considerava a escravidão brasileira ''branda'' ou até ''benéfica''. A difamação criou uma legião de militantes que, mesmo sem ler a obra de Freyre, a rotulavam como "racista" -- ironia perversa, já que a principal consequência do culturalismo foi a de enterrar as teorias racistas que predominavam no Brasil. A estratégia destes marxistas foi facilitada pelo fato de Freyre ser um conservador que se aproximou das agendas políticas do Estado Novo português. E assim, uma disputa que se pretendia acadêmica e intelectual era movida, na verdade, por uma luta político-ideológica, bem ao gosto da ''sociologia militante" de Florestan.

Florestan Fernandes, pai da ''escola paulista'' de estudos raciais


A escola paulista e o MNU, modelados pelas dicotomias marxistas, são as forças motrizes por trás do ímpeto de retratar o Brasil como um país bi-racial: o Estatuto da Igualdade Racial do governo Lula constrói a categoria de ''negro'' por meio da soma da autodeclaração de pardos e pretos nas pesquisas e censos do IBGE. A militância, bem estabelecida em órgãos do Estado como o Ministério da Igualdade Racial, e protegida pela legislação, usa truques semânticos para transformar a nova categoria de "negro" em sinônimo de afro-descendente, numa imitação canhestra do critério do one drop rules que rege o sistema de classificação racial norte-americano: qualquer sinal de ancestralidade não-europeia tornaria o sujeito em filho de uma suposta "diáspora africana" nas Américas, mesmo que ele no fundo seja um caboclo amazônico.

Para parasitar e eclipsar a existência de caboclos, mamelucos, morenos, pardos, cafuzos, curibocas etc. -- em um verdadeiro apagamento histórico e estatístico denunciado por intelectuais como Manolo Florentino, Antônio Risério e José Murilo de Carvalho --, o marxismo da escola paulista tem de empreender um combate ferrenho à figura do mestiço e à própria ideia de mestiçagem que se tornaram centrais na identidade brasileira. A mestiçagem teria, na verdade, origem ''genocida'' [''estupro coletivo'' etc.] e sua continuidade seria uma falha ética e política. A expressão mais radical dessa ordem de ideias é o veto moral ao relacionamento amoroso entre negros e brancos, rotulado de ''palmitagem".

O pardo, autodeclaração de metade dos brasileiros, se torna arma estatística da luta marxista antirracista ao mesmo tempo que é apagado da história social


A negação do mestiço e da mestiçagem tem sua explicação em uma característica fundamental do pensamento marxista: a sociologia do conflito que norteava a produção de seus principais intelectuais faz do negro o agente revolucionário por excelência. O racismo seria, no fundo, uma manifestação global da luta de classes, difundido no mundo pelo imperialismo europeu e norte-americano, e portanto atrelado à ''infra-estrutura econômico-social''. Ou seja, o ''negro-classe'' substitui o proletariado como ator que conduziria ao fim da dominação burguesa por meio de uma derrubada violenta da ordem capitalista. A luta antirracista é, para esta intelectualidade e militância, uma senha para a utopia comunista, construída pela figura abstrata do "negro global", em torno do qual se levantou toda uma mitologia de ordem histórica, sociológica e geopolítica.

O conceito de racismo estrutural difundido por Sílvio de Almeida é uma expressão recente desta nova roupa do revolucionário marxista, e caiu no gosto da militância de esquerda, que reproduz a hipótese como se fosse teoria consensual das ciências humanas. Para Sílvio de Almeida, a sociedade é modelada por estruturas racistas. Para além das intenções dos indivíduos e do arcabouço jurídico que rege as instituições, há um estrato profundo, inscrito nas relações econômicas e sociais, que reproduziria cotidianamente o racismo, que é assimilado aqui à própria ideia de desigualdade e exploração de classe.

Sílvio de Almeida popularizou um conceito de racismo estrutural que é nova roupa da agenda marxista


Este estrato profundo, esta infra-estrutura por assim dizer, mantém o branco no poder por meio de mecanismos que não são explicitados e provados na teoria, mas que implicam, em tese, na impossibilidade de que negros cometam racismo, já que se trata, em última instância, de uma estrutura sócio-política, e não apenas de um ato individual. Daí porque se popularizou na militância de esquerda o repúdio ao que chamam ironicamente de ''racismo reverso'' quando confrontados com atos de ódio racial cometidos por negros. Ora, não há espaço nesta teoria para o racismo cometido por negros, o que implica em transformar as leis contra o racismo em um instrumento contra brancos -- no jargão marxista, em um instrumento de classe. É óbvia a tentativa de vender uma sociologia e uma agenda marxista por trás dessa tese ''antirracista''.


É parte integrante do marxismo do ''negro-classe'' um conjunto imenso de ideias a-históricas, cujo conjunto forma quase que uma religiosidade sectária, defendida de modo ferrenho com métodos copiados de organizações dedicadas à violência revolucionária, mas readaptados ao mundo das redes sociais -- cultura do cancelamento, expulsão de adversários de espaços públicos, reivindicação de submissão pública por meio de atos de humilhação que copiam os autos de fé do início do mundo moderno. Esta religiosidade sectária, uma cosmovisão articulada em torno da figura do ''negro-classe-global'', construiu uma África imaginada [isenta de escravismo, patriarcalismo, opressão social, hierarquias etc], continente-utopia cujas máculas seriam responsabilidade do europeu-branco-burguês, satanizado como a força sinistra por trás de toda a história. O europeu-branco se torna o novo Caim mitológico e dá início a seus crimes roubando a sabedoria do Egito e a vendendo como filosofia própria na Grécia e depois no mundo helênico [em versões matizadas, a filosofia do branco eclipsa e anula à força os saberes do negro-classe-global, que passam a ser vistos como folclores ou superstições, sem legitimidade social]. No Brasil, o mito afrocêntrico fez de Zumbi dos Palmares e da Revolta dos Malês símbolos de luta antirracista e anti-escravista, e da Princesa Isabel uma hipócrita defensora dos interesses de sua própria classe, em uma inversão que seria incompreensível para abolicionistas como José do Patrocínio. A lenda de que a escravatura terminou no país por causa da resistência do negro-classe oprimido é veiculada pela imagem do quilombo como símbolo de luta revolucionária, organização de luta popular, e ao mesmo tempo a reencarnação da África fantasia. O quilombo é o novo soviete.

O Quilombo dos Palmares se tornou mito a-histórico da reprodução no Brasil de uma África-fantasia idílica, cuja imitação no mundo hodierno seria fundamental para a luta revolucionária


Uma das tentativas mais recentes de dar respeitabilidade a essa mitologia está na obra do sociólogo Jessé de Souza, que embora seja um emulador de Bourdieu e Charles Taylor, tenta justificar e dar razoabilidade à tese do racismo estrutural, e ao mesmo tempo ressignificar o culturalismo de Freyre, fazendo das igreja cristãs as instituições que explicam a difusão do racismo. O agostinianismo traria em seu cerne um verdadeiro ''platonismo vulgar'', cuja hierarquia entre logos/nous e paixões/corpo forneceria a gramática do ''racismo universal''. Apesar de suas invectivas contra o ''identitarismo de esquerda'', a obra de Jessé de Souza se adequa perfeitamente, portanto, à ideologia marxista do "negro-classe", que defende uma revolução total contra o branco, o Ocidente, o cristianismo, o logocentrismo, o patriarcalismo, e o capitalismo.

A cosmovisão sectária do novo marxismo exige do fiel ativista uma praxis revolucionária que consiste em manifestar a África-fantasia em seu cotidiano. A intenção é ''recriar'' ou ''revitalizar'', quase que de modo mágico, a suposta ancestralidade que foi reprimida pela cultura europeia-branca-burguesa dominante: o ativista tem de ser candomblecista, e ao mesmo tempo negar o sincretismo; tem de adotar nomes africanos, vestimentas e produtos que o vinculem à origem ancestral em grande parte inventada; tem de cantar jongo e dançar capoeira, aprender iorubá etc. A práxis caricatural que tenta etnicizar o novo revolucionário criou, paradoxalmente, um mercado de produtos para "negros" que é explorado por jovens de classe média, tez morena [branca ou parda], e com tendências socialistas. É até possível dizer que uma das principais consequências da política de cotas na Nova República é dinamizar e retroalimentar esse nicho de mercado.

A busca por etnicização da militância se fundamenta no mito da África-fantasia e de sua diáspora mundial em luta contra o europeu-branco-burguês


O marxismo do negro-classe se vinculou ao identitarismo mais radical de matriz ianque, conhecido também como ''ideologia woke'', que deseja fazer tabula rasa da história [uma de suas manifestações típicas é o ataque a monumentos que, segundo essa leitura canhestra, celebram a ''memória coletiva racista'', ou então o veto e censura ao cânone filosófico, literário e artístico ocidental] e reformular os parâmetros culturais por meio de remodelação da linguagem cotidiana. Segundo eles, há uma forma de se expressar que flagra uma imaginação e perspectiva racista. Uma vez pronunciada, essa linguagem recria demiurgicamente a sociedade opressora. O controle da linguagem e do imaginário é vital para a construção de um novo homem, escopo perene da militância marxista, e que adotou diversas roupagens no último século, mas que nunca abandonou seus tons totalitários.

Cleópatra VII é disputada pelo afrocentrismo, que acha absurdo uma Rainha da Dinastia Ptolomaica [com origem na Macedônia] ser retratada por uma mediterrânea como Elizabeth Taylor



Uma das grandes contradições do movimento marxista do negro-classe é que ele pouco preocupa o topo da hierarquia social. Mais das vezes, são financiados por instituições e organizações estrangeiras, abraçados pelo mundo corporativo e pelo establishment financeiro. Seus militantes tem origem na alta classe média e seus agregados ideológicos. E seus principais alvos no mundo real são justamente as classes populares que se consideram mestiças e cristãs. O marxismo do negro-classe é, no fundo, uma engenharia social reivindicada por uma elite social [classe média universitária] e moldada por agendas desenvolvidas principalmente nos Estados Unidos, financiada por grandes corporações empresariais, e que move uma guerra cultural contra as classes populares com o intuito de ''exorcizá-las'' e libertá-las dos elementos que formaram sua identidade [mestiçagem, religião cristã, sincretismos culturais etc.].

A revolução marxista nunca é o que diz ser.

domingo, 27 de outubro de 2024

O que há de bom na Astrologia?, ou: os Padres da Igreja eram olavetes e ocultistas?

 "A capacidade de unir os Reinos do Céu e da Terra permaneceu a chave para o mistério teológico dos ícones e permitiu-lhes resistir às mais severas tempestades teológicas, psicológicas e emocionais."


Padre Andreas Andrepoulos





Estes dias, eu disse no Twitter [hoje chamado X] que a "Astrologia como técnica ''preditiva'' de eventos e, pior de tudo, de ações humanas, não passa de piada de salão. O sentido desta ciência é estabelecer um mapa do cosmos baseado em certas premissas hierofânicas e analógicas que regem a interdependência entre os planos da realidade. A astrologia é uma das formas possíveis de conhecer um universo que é todo ele símbolo e espelho. Como tal, ela se apóia em uma cosmologia fundamentada em um abordagem holista das noções de relação e causalidade. São ciências típicas do que se convencionou chamar de ''mistérios menores''.


Minha declaração sobre a astrologia causou estupor -- sincero ou fingido, não sei -- em algumas pessoas, que a vincularam à figura do Olavo de Carvalho e a práticas ocultistas. Este tipo de reação escandalizada vinda de certas figuras envolvidas direta ou indiretamente com a política não é nada incomum, e surgem de ímpeto polemista misturado com um conjunto de preconceitos contra religiosos e espiritualistas em geral. O ímpeto polemista está em vincular tudo o que não se gosta a um rótulo que serve de 'xingamento' e 'demonização' do interlocutor: Assim, a esquerda chama de fascista tudo que não é espelho; a direita chama de comunista tudo a que ela se opõe; russófilos duginistas se veem em uma guerra santa contra o olavetismo; e há olavetes que imaginam o Brasil invadido e dominado por Alexandr Dugin. Este tipo de rotulação maniqueísta se dá em um campo erístico sem qualquer seriedade, e assim eu não preciso me ocupar dele. As críticas que fiz a Olavo de Carvalho nos últimos quinze anos falam por si só.


Já o conjunto de preconceitos bebe de fontes materialistas e seculares, e carrega sua própria dose de alienação e hipocrisia, já que os movimentos seculares em geral foram impulsionados por sujeitos mergulhados em crenças e práticas espiritualistas, algumas delas ligadas ao que se convencionou chamar de ''ocultismo''. Como apontou Jason A. Josephson-Storm, em "Myth of Disenchantment. Magic, Modernity and the birth of Human Sciences", longe de varridas da vida pública, as crenças e práticas espirituais continuam norma entre governantes, empresários, cientistas e populações do mundo contemporâneo. Apesar do discurso 'oficial', o mundo continua encantado pra maioria esmagadora da civilização que se abraçou fanaticamente ao secularismo. Da Enciclopédia dos Iluministas, que considerava a Magia uma ciência, passando por revolucionários que conspiravam em lojas Maçônicas, e até mesmo a filósofos como Adorno, a elite política e intelectual do Ocidente se abraça à ideia similares ao ''sobrenatural".


A minha postagem também pode causar ojeriza em determinada sensibilidade religiosa. Mas nesse caso se trata do choque entre espiritualidades que se consideram mutuamente exclusivas. Quando um religioso condena como superstição a espiritualidade X ou Y, ele não pretende que suas próprias práticas religiosas caiam sob o mesmo epíteto. Superstição, evidentemente, é a religião do outro, e esse tipo de embate é perfeitamente natural e compreensível. Mas tampouco podem ser consideradas reflexões sérias caso não superem o nível do ''estranhamento'' puro e simples.


Isto posto, vou esmiuçar um pouco mais a postagem que fiz no X e mostrar porque o suposto escândalo não passa de ignorância e/ou hipocrisia. O texto não visa debater a ciência contemporânea, assunto que me interessa de forma bem marginal. Tenho uma abordagem instrumentalista da ciência contemporânea: a considero a melhor que existe para o que se propõe. Mas aquilo a que ela se propõe me parece bastante insuficiente para o coração humano.


A imagem no início deste texto traz Cristo no centro do Zodíaco. A representação se encontra no Mosteiro Dekoulou, na Grécia. As condenações dos Padres da Igreja a certas ciências e artes da Antiguidade [como a matemática ou o teatro] se baseavam em alguns critérios, se ligam a um dado contexto. No caso da Astrologia, há condenação explícita ao culto pagão que acompanhava a consulta divinatória e à própria noção que acompanhava a tentativa de predição, a saber, que as ações humanas eram governadas e determinadas pela natureza.


É uma crítica que os Padres fariam a qualquer determinismo, seja ele qual for. Serviria para boa parte das hipóteses da ciência atual, inclusive. Se aplicaria, com perfeição a todo o universo mecanicista divulgado pelos pensadores iluministas, que derribariam no século XVIII a cosmologia pré-moderna e consolidariam uma interpretação cientificista [no sentido oitocentista] do universo, do homem e da sociedade.


Muitos religiosos criticam a astrologia pelos motivos errados, mobilizando até argumentos de pensadores cientificistas contemporâneos sem entender que o ponto fulcral da condenação dos Padres é o culto idolátrico a forças naturais e a abolição da liberdade humana em nome de um determinismo cósmico, dois aspectos que foram reforçados pelo discurso secular que eclipsou o cristianismo no Ocidente. Voltarei a esse ponto depois já que o discurso científico atual pode ser usado também como um tipo novo de técnica divinatória, característica que levou à condenação da astrologia pelos Santos Padres.


Se o culto idolátrico e o determinismo são erros da astrologia, qual verdade pode existir por trás dela? Ora, todo cristão que lê as Escrituras Sagradas ou frequenta uma igreja será bombardeado por imagens que retratam o mundo pelas mesmas lentes da cosmologia que fundamentava a prática astrológica, e não as da prática científica contemporânea. Nas Escrituras e na Igreja, as águas de cima foram separadas das de baixo. Os Céus se ligam à Terra pela escada de Jacó. Cristo desce ao Hades para libertar Adão e todos os Justos, e depois ascende aos Céus à vista de todos. E um dia voltará à Terra nas nuvens do céus, também à vista de todos, para o Juízo Final.


A Cruz no meio dos quatro rios do Paraíso, a esfera celeste acima.


Os mesmos Padres que condenaram a astrologia diziam, repetindo São João Damasceno, que os céus tinham 'sete esferas' ou 'zonas' de 'natureza mais sutil', formando uma hierarquia. Cada uma dessas esferas hierárquicas era governada por um astro na seguinte ordem segundo sua distância para a terra, que está no centro do universo: Saturno, Júpiter, Marte, Sol, Vênus, Mercúrio e Lua. São João Damasceno também menciona os doze signos do Zodíaco, cada um deles formado por um conjunto de estrelas visitado pelo sol e pela lua em suas jornadas celestes.

Tudo isso pode ser lido em "A Fé Ortodoxa'', obra de imenso prestígio na Igreja. Nela se resume à perfeição, no Livro II, a relação precisa entre os Padres da Igreja e a astrologia:

"Estes são, então, os nomes dos doze signos e seus respectivos meses:

Áries, que recebe o sol no dia 21 de março.
Touro, no dia 23 de Abril.
Gêmeos, no dia 24 de maio.
Câncer, no dia 24 de Junho.
Virgem, no dia 25 de Julho.
Libra, no dia 25 de Setembro.
Escorpião, no dia 25 de Outubro.
Sagitário, no dia 25 de Novembro.
Capricórnio, no dia 25 de dezembro.
Aquário, no dia 25 de janeiro.
Peixes, no dia 24 de Fevereiro.

[...]

Ora, os gregos declaram que todos os nossos assuntos são controlados pelo nascer, pelo pôr e pela colisão destas estrelas, isto é, o Sol e a Lua: pois é com estes assuntos que a astrologia tem que lidar. Sustentamos, no entanto, que recebemos dos signos sinais de chuva e seca, frio e calor, umidade e secura, e dos vários ventos, e assim por diante, mas nenhum sinal de qualquer espécie quanto às nossas ações. Pois fomos criados com livre arbítrio pelo nosso Criador e somos mestres de nossas próprias ações. Na verdade, se nossas ações dependem do curso das estrelas, fazemos tudo por necessidade: e a necessidade exclui a virtude ou o vício. Mas se não possuímos virtude nem vício, não merecemos louvor ou punição, e Deus também se revelará injusto, pois dá coisas boas a alguns e aflige outros. Não, Ele não continuará mais a guiar ou prover Suas próprias criaturas se todas as coisas forem carregadas e arrastadas pelas garras da necessidade. E a faculdade da razão será supérflua para nós: pois se não somos senhores de nenhuma de nossas ações, a deliberação é bastante supérflua. A razão, na verdade, nos é concedida apenas para que possamos nos aconselhar e, portanto, toda razão implica liberdade de vontade.

Sustentamos assim que as estrelas não são as causas nem a origem dos eventos nem da destruição do que é perecível. São antes sinais de chuvas e mudanças de ar. Mas, talvez, alguém possa dizer que, embora não sejam as causas das guerras, são sinais delas. E, na verdade, a qualidade do ar produzido pelo sol, pela lua e pelas estrelas produz de várias maneiras diferentes temperamentos, hábitos e disposições. Mas os hábitos estão entre as coisas que temos em nossas mãos, pois é a razão que os governa, dirige e muda."

Desse modo, não é o ''mapa dos cosmos'' fornecido pelos astrólogos/astrônomos -- e nesse ponto da conversa convém lembrar que a distinção entre astrologia e astronomia não existia nos tempos pré-modernos -- que é criticado pela Igreja. Não é sequer a ideia de que há influência dessas esferas celestes nos eventos e atos humanos [como guerras]. São João Damasceno aceita esta visão com uma postura que escandalizaria quem se indignou com minha postagem. Ele apenas ressalta que esta influência não pode implicar em determinismo, destino, necessidade natural. Nem em ''culto idolátrico'', pois os astros são inanimados [não são deuses] e estão sob governo da Vontade Divina.


Seria São João Damasceno um Olavo de Carvalho da Antiguidade? Seria ele um ocultista em pleno século VII e VIII? Não me parece crível. Com pequenas variações, considerações similares podem ser encontradas em São Dionísio Areopagita, São João Crisóstomo, São Máximo Confessor etc. Este último vai até além ao ensinar que a Divina Liturgia [que os ocidentais chamam de Santa Missa] é uma cosmologia em ação, uma Mistagogia -- é desnecessário lembrar que a própria arquitetura das Igrejas é projetada para refletir o cosmos e a história sagradas. Segundo São Máximo, todos os seres existentes são unificados pelo Logos Divino, e a própria Natureza era uma forma de encarnação do Logos. O homem é a imagem acabada desta cosmologia: "Não é o homem que é parte do Cosmos, mas todas as partes do Cosmos são partes do homem. O homem não é um microcosmo em um Macrocosmo, e tampouco é moldado no interior de um macrocosmo, mas ele é o verdadeiro cosmos, já que ele dá unidade e sentido completo a todas as partes da criação."

Esta cosmografia perdurou na Cristandade Latina e é crucial para entender o cristianismo no todo e em partes, como a magnífica obra de Dante Alighieri pode servir de exemplo acabado. Etienne Gilson e Philotheus Boehner descrevem assim parte da filosofia de Santo Anselmo da Cantuária:

"Como a própria palavra 'mundus', derivada de 'motus' (explicação etimológica!), dá a entender, o mundo está em perpétuo movimento. É redondo como uma bola e comparável a um ovo. Na beirada externa há uma casca, o céu, que envolve o mundo inteiro. Debaixo dela situa-se, à semelhança da clara do ovo, o éter puro, que serve de envoltório para o ar em movimento, exatamente como a clara encerra a gema. Na parte mais central, correspondente ao germe, está a Terra. No centro da terra situa-se o Inferno. Repleto de fogo e enxofre, sua forma dilata-se na parte inferior e estreita-se na superior. A região mais central chama-se Érebo, e é habitada por dragões e serpentes que vomitam fogo. Há lugares que exalam vapores nauseabundos; são conhecidas sob o nome geral de Aqueronte. [...] Todas essas descrições eram entendidas muito realisticamente; representam o primeiro esboço do plano do inferno elaborado por Dante. [...] O fogo é o mais nobre dos elementos. Dentro dele se escalonam as esferas dos sete planetas. Os nomes destes provêm dos movimentos irregulares a que estão sujeitos. O firmamento arrasta-os com enorme velocidade de Leste a Oeste, em sentido contrário, portanto, ao seu curso natural. [...]A revolução das sete esferas dá origem a sons maviosíssimos, cuja harmoniosa consonância produz a mais admirável das melodias. Contudo, esta harmonia das esferas não chega aos nossos ouvidos, por originar-se para além do ar, que é o único meio em que nós percebemos os sons. Ademais, ela é demasiadamente forte para ser percebida pelo ouvido humano. A escala da música celeste vai da Terra ao Firmamento, e supõe-se que nossa escala foi inventada a exemplo dela. Entre a Terra e o Firmamento há sete tons, assim distribuídos: um tom inteiro da Terra à Lua; meio tom da Lua a Mercúrio; meio tom de Mercúrio a Vênus; três tons de Vênus ao Sol; um tom inteiro do Sol a Marte; meio tom de Marte a Júpiter; meio tom de Júpiter a Saturno; e três meios tons de Saturno ao Círculo do Zodíaco. [...] Da Terra ao Céu, pois, sete tons e mais nove ''consonâncias''; a estas correspondem as nove musas dos filósofos. As "consonâncias" são inatas na própria natureza humana. Acima do fogo encontra-se a oitava esfera, o Céu, que dista 109.375 milhas da Terra. [...] O Céu superior chama-se Firmamento, em razão da firmeza de sua estrutura, situada no meio das águas [....] Como se vê dentro desse esboço, o universo medieval caracteriza-se por sua continuidade, sua coesão singular e seu simbolismo religioso. É um imenso globo material com dois pólos espirituais: a matéria superior vai até o céu dos espíritos bem-aventurados, e a inferior até o inferno dos espíritos condenados. Às nove penas do inferno correspondem as nove bem-aventuranças do céu. Nós, homens, ocupamos um posto intermediário entre estes dois pólos, até que a separação final dos bons e dos maus venha incorporar-nos definitivamente a um ou outro."

É possível dizer, como fazem teólogos católico-romanos, que a Revelação Divina não versa prioritariamente sobre o mundo natural. Que estas descrições são símbolos cujo cerne é uma mensagem espiritual. O que implica, no fim das contas, que a imagem de mundo ofertada pelos padrões científicos atuais é verdadeira em seu próprio âmbito. E eu não disse, em lugar algum, que não é, ou que ela não cumpra seus objetivos, e que não ofereça um ''mapa" adequado ao propósito do empreendimento científico atual, que é o de prever fenômenos com precisão matemática e o de gerar tecnologias de controle do mundo perceptível.


Possível representação do Cosmos de Dante Alighieri



A capacidade de predição de fenômenos segundo uma causalidade natural precisa e matematizável está no coração da ciência contemporânea. "Deus não joga dados", na crítica que Einstein fez a certas interpretações da Quântica. Einstein expressava assim o determinismo férreo e 'naturalista' da ciência usada para demolir aquilo que podemos chamar de cosmovisão tradicional. Um determinismo naturalista que seria condenado segundo os critérios usados pelos Padres para denunciar a prática astrológica [mas não a influência das esferas celestes, dos elementos, dos ventos, dos demônios e anjos].


A questão não é discutir inocuamente se a descrição de mundo realizada pelos métodos científicos atuais é ou não verdadeira em seu próprio âmbito. E sim entender que as imagens fornecidas pela Igreja, pelas Escrituras Sagradas, pela Tradição cristã vem de outra cosmologia, que reflete uma metafísica e uma antropologia bem distintas. E só segundo estas últimas faz sentido falar dos anjos em pé sobre os quatro cantos da terra, ou dos Doze Apóstolos enviados para os confins do mundo. A imaginação, a narrativa, a escatologia e a prática cristãs estão todas permeadas por esse ''mapa do universo'' e pela relação entre seus componentes. Como diz Hilário Franco Júnior:

"Naquele mundo no qual todas as coisas eram passíveis de ser vistas como hierofanias, isto é, como algo a mais do que pareciam à primeira vista, uma cosmologia simbólica impunha-se com naturalidade. O universo era interpretado como um imenso conjunto de símbolos. Sabe-se que na origem o termo grego symbolon designava cada uma das metades de um objeto que fora dividido pra que sua junção funcionasse como uma senha, daí o sentido literal de ''sinal que faz reconhecer". Logo, não pode ser confundido com o signo, que é apenas um substituto ou representação de algo, sem ter semelhança estrutural com a coisa que representa. Da mesma forma que o signo, a alegoria também é uma convenção. O símbolo, pelo contrário, é um produto psíquico espontâneo, que exprime algo que não poderia se formulado com precisão nem compreendido de outra maneira. Portanto, "a função do símbolo é religar o alto e o baixo, criar entre o divino e o humano uma comunicação tal que eles se unam um ao outro" [Davy, 1997]. É o encontro de duas realidades numa só, ou melhor, expressão da única realidade sob outra forma. O símbolo é inferior à realidade simbolizada, mas por intermédio daquele o homem se aproxima desta, restabelecendo a unidade primordial. [...] Há uma lógica simbólica que fornece a chave para o entendimento da mensagem, sem anular o significado potencialmente diverso de cada símbolo: a mentalidade simbólica persegue a unidade do múltiplo. O papel do símbolo é projetar o indivíduo no Além, romper os limites de tempo e lugar, fundir o microcosmo (homem) e (universo). Daí o símbolo ser uma hierofania, revelar uma realidade sagrada para quem tiver sensibilidade para decodificá-lo. Não se requer para tanto uma operação consciente, intelectual, mas automática, inconsciente. Nas palavras do pseudo Dioniso Areopagita (quer dizer, atribuídas a este discípulo de São Paulo, mas na verdade escritas na Síria por volta do ano 500), cuja obra exerceu grande influência ao longo da Idade Média, "o sensível é reflexo do inteligível". [...] De acordo com esta visão simbólica do universo, o próprio homem é um símbolo. A relação do homem com a natureza não é de sujeito e objeto, porque ele se encontra integrado no mundo exterior; para a Idade Média ''não existem fronteiras nítidas entre o indivíduo e o mundo" [Gurevitch, 1990]. Segundo a concepção vinda da Antiguidade e aceita por quase toda a Idade Média, o homem é um microcosmo, não apenas um fragmento do Todo, mas uma réplica dele em ponto menor: sua carne é feita de terra, seu sangue de água, seu fôlego de ar, seu calor de fogo, ou seja, nele se encontram os quatro elementos constitutivos do mundo. Mais ainda, cada parte de seu corpo corresponde a uma parte do universo: a cabeça ao céu, o peito ao ar, o ventre ao mar, as pernas à terra, os ossos às pedras, as veias aos galhos de árvores, os cabelos às ervas, os sentidos aos animais. As etapas de sua vida são seis, como os dias da Criação: infância, adolescência, juventude, maturidade, velhice, decrepitude. Em suma, pela mentalidade simbólica, "o homem não se sente um fragmento impermeável, mas um cosmos vivo abeto a todos os outros cosmos vivos que o rodeiam, [por isso] não se reduz à existência fragmentada e alienada do homem civilizado do nosso tempo" [Eliade]."


Anselmo da Cantuária tinha uma explicação cosmológica para as Musas, associando-as ao movimento harmônico das esferas celestes


Enfim, os cristãos citados aqui, todos eles figuras de extrema relevância nessa religião, criticavam a astrologia no que ela tem de determinista e de técnica preditiva. Mas aceitavam sua cosmologia subjacente, a estrutura que rege a relação entre os diferentes seres e elementos do cosmos, e a associavam diretamente a uma dada antropologia e psicologia. Obviamente, eles nunca ouviram falar de Olavo de Carvalho ou do Ocultismo contemporâneo, que causam um Grande Medo em alguns temperamentos. Eram apenas estudiosos das ciências e ideias pré-modernas, que se refletem nas Escrituras Sagradas, nos ritos, imagens, e ensinamentos do Cristianismo.


Alguns podem achar um tédio ou desperdício de tempo se ater a abstrações deste tipo. Afinal, os jornais não providenciam apenas ''horóscopos'', eles entretém o público com as informações do dia no campo político, econômico, esportivo, gastronômico, internacional, cultural etc. Mas eu avisei na postagem do X: não é um assunto para todo mundo. É chamado de ''mistérios menores", diz respeito a um nicho de pessoas com um tipo especifico de disposição. Aparentemente, Deus não é um progressista: ele distribuiu vocações e dons de maneira muito desigual entre os homens.