O coco é uma entidade que remonta à celtibéria e que foi relida em festivais cristãos da Península Ibérica
Entre comemorar o Halloween e a 'Reforma Protestante', cristãos ortodoxos e católicos no Brasil não devem ter dúvida: é Halloween na cabeça.
quinta-feira, 31 de outubro de 2024
Halloween, a Véspera do Dia de Todos os Santos
A AMÉRICA COMO ÉDEN E INFERNO, ou: As disputas simbólicas no Imaginário do Descobrimento
''A América Latina existiu desde sempre sob o signo da utopia. Estou convencido mesmo de que a utopia tem seu sítio e lugar. É aqui. Thomas Morus escreveu a própria Utopia inaugural inspirado nas primeiras notícias certas que chegavam à Europa sobre a nossa inocente selvageria. Antes, todo europeu pensava que seus antepassados primevos eram uns patriarcas barbudos, enrolados em sujas túnicas, fedorentos, chorando feios pecados. Foi a visão da nossa indiada louçã, vestida na inocência de sua nudez emplumada, dançando num jardim tropical idílico, que lavou seus olhos daquela visão de judiaria [...] [M]uitos homens santos afirmaram, com base na sua sabedoria teológica ou astrológica, que as ilhas de Fidel com que Colombo topou eram o Éden. Os próprios navegantes, com fundamento na sua experiência direta e visual, disseram o mesmo. Colombo, visivelmente encantado com a beleza inocente da indiada pelada, confessa sem vexame, em carta ao Santo Papa, que o que tinha encontrado era o Paraíso Perdido. “Cri e creio”, escreve ele, “como creram e creem todos os sábios e santos teólogos, que naquela minha comarca é que está o Paraíso Terrestre.”
Darcy Ribeiro, 1986
Pedra da Gávea, na qual a imaginação de brasileiros captou toda uma mitologia sobre fenícios, vikings e egípcios
A Modernidade é incompreensível sem o Descobrimento da América, tema que durante muito tempo foi tratado pela Historiografia em uma dimensão puramente social e econômica. Mas as pessoas que atravessaram o Atlântico, muito diferentes da figura do homo economicus e da razão instrumental iluminista, eram motivadas por visões míticas que impactavam profundamente suas ações.
A busca pelo Éden perdido na forma de Reinos Orientais ou Ilhas
Místicas, já presente no cristianismo antes do cisma -- vide a Jornada de São
Brandão -- e na mitologia celta -- Hy Brasil --, bem como na tupi -- Terra sem
Mal --, é fundamental para compreender o papel e centralidade da América do Sul
na geopolítica contemporânea, do mesmo modo que o mito da Atlântida é
fundamental para compreender a ''terra prometida'' dos puritanos
anglo-holandeses que desembarcaram no norte do continente.
A Ilha de Bem-Aventurança visitada por São Brandão
Este caráter mitológico não passou desapercebido a pensadores influentes
do nosso século, que justificam muitas de suas abordagens a partir de uma
leitura simbólica do Descobrimento. Um exemplo é o russo Alexander Dugin, que vê a
América como uma catástrofe histórica, a ruptura de um tabu que inaugurou uma
era apocalíptica.
“Em seu tempo, a civilização antiga construiu duas colunas no Estreito de Gibraltar, em que estava inscrito Nec plus ultra, que significa “nada há além”. “Não há necessidade de prosseguir” estava inscrito nestes pilares. Quem tentasse, se arrependeria. E enquanto estas colunas protegeram a humanidade, os portões do Oeste ontológica permaneceram selados; fechados pelas inscrições, pelas duas colunas, todas as coisas iam mais ou menos bem. No entanto, alguém desprezível rastejou através delas. E quando o fez, quebrou o selo ontológico fundamental. Vocês sabem o que o cifrão [do dólar] significa? As duas colunas de Hércules, que nas representações antigas eram circundadas por uma fita na forma da letra ‘S’, com o subscrito “proibido ir além destas colunas”. Mas no dólar está escrito não Nec Plus Ultra e sim plus ultra. “Mais Além” está escrito ali, é permitido, e hoje o dólar significa um movimento para além destas colunas, para o interior da zona proibida, para o Oeste Distante [‘Far West’], para o Atlântico. Isto significa que Leviatã, o Monstro do Oceano, que foi mantido preso por um longo tempo, está livre das redes antigas. E quando os navios de Colombo e outros aventureiros europeus rumaram na direção do Oceano Atlântico, com este gesto ritual demoliram os grilhões que prendiam Leviatã, e Leviatã iniciou sua rebelião.”
[Dugin, 2017]
O russo associa o mito do continente perdido de Atlântida, que teria sucumbido por conta de sua hybris, com uma cosmografia em que o extremo-oeste é a terra dos mortos. A Descoberta da América se torna o transbordamento do 'infra-mundo' na História, com todas suas consequências nefastas. A América seria o ''extremo-Ocidente'', o Ocidente depois do Ocidente [Ibéria], similar aos infernos, algo fora da realidade propriamente humana. Daí que em sua Geopolítica, a América se transforme na civilização contra-iniciática por excelência, o abismo que deve ser contido a todo custo pelas forças da Ilha-Mundo. Se trata de uma leitura singular de um tema considerado de extrema relevância por autores da Escola Tradicionalista, em especial René Guénon, que também via a Modernidade como o encapsulamento da mentalidade humana por influência das realidades inferiores. Mas a análise simbólica do francês sob o descenso das condições humanas não adentrava em considerações de ordem geopolítica. Em Dugin, o Estreito de Gibraltar se torna a Grande Muralha que protegia o mundo da ''invasão das hostes de Gog e Magog".
Gog e Magog em pintura persa. Para Dugin, as Grandes Navegações liberaram liberaram influências diabólicas na Terra
As cosmografias sagradas e os mitos sobre continentes perdidos não foram, evidentemente, criadas por Dugin, pela Escola Tradicionalista ou sequer pelo ocultismo contemporâneo. Em outras leituras, estas sim pré-modernas, o Extremo-Oeste não é visto sob o signo do Mal. Na Europa, as visões sobre o Oceano Atlântico eram alimentadas pelo imaginário sobre o Índico. Apesar de algumas concepções científicas do fim do século XV considerarem o Índico um ''mar fechado'', no onírico o Atlântico era visto em continuidade com o Oriente. As grandes navegações ibéricas eram impulsionadas pela procura do Paraíso Terrenal, guiados pela estrela da manhã, atravessando o grande oceano em uma busca iniciática.
Uma das principais fontes cristãs sobre o mar ao Oeste eram as narrativas de São Brandão, monge considerado um dos Doze Apóstolos da Irlanda, e que diziam ter alcançado o Éden em navegações pelo Atlântico. Suas aventuras oceânicas eram narradas com todo um simbolismo ascético que não distinguia sua consecução ''exterior'' do estado de iluminação interior. A jornada iniciática lidava também com o espectro do ''não regresso'' envolvido na batalha contra o grande mar e o contato com monstros marinhos. Também se ligava à percepção de queda, de necessidade de retorno, que era típica também nas ordens esotéricas da aristocracia europeia na Cristandade Latina [voltarei a este ponto].
São Brandão dando a Eucaristia para uma sereia em suas jornadas oceânicas e iniciáticas
Ora, um dos traços mais importantes nos mitos das Ilhas Místicas, como as da Jornada de São Brandão e da mitologia céltica e fenícia, é
que são locais ou centros de poder que se tornam visíveis ou invisíveis de
acordo com o momento, estado de percepção etc. Eles não somem no passado -- o
passado faz parte de um símbolo de ocultamento, de perda, é uma metonímia do
''tempo mítico''. Na verdade, o ''tempo mítico'' é uma condição encoberta aos
olhos, mas que pode ser recuperada diante de certas chaves. Os escolhidos ou aqueles que adquiriram essas chaves podem não apenas
enxergar, mas também adentrar esses Paraísos, vivendo ou aprendendo segredos
neles, e trazendo de volta poderes e elementos paradisíacos para os que ficaram
de fora da ''Ilha". Imagem similar está presente nas conversas entre
São Serafim de Sarov e Motovilov: a luz edênica está aqui e agora, para todos o
que podem vê-la.
Diferente de tradições em que os eventos históricos se dissolvem no tempo mítico, o Cristianismo sacraliza a História. Não é a única religião ou tradição com esse elemento, alguns povos indo-europeus, como os romanos, faziam o mesmo. Nesse caso, porém, Roma estava no centro da História Sagrada, enquanto no cristianismo a 'protagonista', por assim dizer, é a Igreja, que dá significado inclusive à Roma. Dentro dessa perspectiva, o ensejo nascido no fim da Idade Média por reencontrar o Paraíso Terrenal; a percepção de que a Cristandade Latina se encontrava em rápido processo de degeneração e devia retornar às Origens [busca pela Igreja Primitiva, por Reinos e Ilhas Místicas etc.] não era um mero acaso, nem pode ser avaliado apenas de uma perspectiva sociológica.
"[A]s Navegações são indissociáveis da busca portuguesa pelo Oriente místico e da procura do Reino do Preste João, que segundo as crenças difundidas desde o século XII, proporcionaria recursos e alianças que tornariam os cristãos capazes de vencer os muçulmanos e os mongóis. A insistência portuguesa na conquista de Calicute, considerada meio que insana pelos comerciantes de Antuérpia e Veneza, é incompreensível sem este ponto. Quando chega a Calicute, Vasco da Gama pensava estar chegando no Reino do Preste João, só notando seu erro depois de ser corrido da região. Ele chega a confundir um templo de Shiva com um mosteiro cristão e a estátua da divindade com uma imagem da Virgem Maria. [...] Esta busca mística, associada ao ideal cruzadista, e do qual a Reconquista era expressão, se vincula, certamente, às ordens religiosas de teor iniciático que operavam em meio à Aristocracia lusitana. A proximidade da Coroa Portuguesa com a Ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo aumentou de tal maneira que a liderança da organização religiosa-militar foi ocupada cada vez mais pelos Monarcas da Dinastia de Avis, de modo que Dom Manuel I se tornou mestre da Ordem ainda quando Duque, antes mesmo de sua Coroação." [O Sentido da Independência, in: Já Raiou a Liberdade, 2022]
A Expansão Marítima Portuguesa está ligada à busca apocalíptica pelo Reino do Prestes João, no Oriente Místico visitado por São Tiago |
O Infante Dom Henrique, o Navegador, era impactado fortemente pelo Mito do Reino de Prestes João, Monarca descendente dos Reis Magos e cujo Império se converteu ao Cristianismo durante as missões apostólicas do Glorioso São Tiago, que pregou no Oriente. As guerras santas e a expansão marítima defendidas por Dom Henrique faziam parte de sua perspectiva apocalíptica e da urgência de encontrar o Reino que, existindo às bordas do Paraíso Terrenal [Éden] -- ou na Índia ou na Etiópia --, forneceria conhecimento e riquezas para que os cristãos superassem o inimigo muçulmano e as forças do anticristo. Ao mesmo tempo, os Reis Portugueses continuavam citando em suas cartas a leais navegadores as Antílias, ou Ilha das Sete Cidades, para as quais sete bispos visigodos teriam navegado no início do século VIII fugindo da conquista muçulmana
O "conflito esotérico" em torno da descoberta prossegue na colonização do atual Brasil, mas ela não é tão simples quanto parece. Um exemplo perfeito disso é o próprio Nicolas Durand de Villegagnon, fundador da França Antártica na Baía de Guanabara. Villegagnon foi colega de Calvino, Francisco Xavier e Inácio de Loyola na Universidade de Paris. Os dois últimos estão na origem dos Jesuítas e de suas técnicas místicas, enquanto Calvino deu início à Reforma propriamente dita.
Já Nicolas saiu da Universidade para as Ilha de Malta, onde adotou o Manto Sagrado dos Cavaleiros Hospitalários. Ele era um "Templário", digamos assim, e sua Ordem de Cavalaria obedecia diretamente a Carlos V, inimigo de seu país natal, a França. Não à toa, Villegagnon lutou ao lado do Imperador contra o famigerado "Barba Ruiva". A aventura da França Antártica foi financiada e apadrinhada por Gapard de Chantillon, o Conde de Coligny, principal conselheiro de Henrique II, e que diziam ser huguenote. Só que Coligny só se converteu ao calvinismo quatro anos depois da expedição de Villegagnon. É verdade que Durand pediu ajuda a Calvino depois que sofreu um motim na Guanabara, ao entender que estava sozinho em um momento de imensas reviravoltas na Corte francesa. Mas os calvinistas não duraram muito no Forte de Coligny, os debates teológicos em torno da Eucaristia, das Liturgias e do casamento explodiram em conflito aberto. O próprio Villegagnon fez questão de se livrar dos reformados antes retornar à França em 1560.
Agora, qual era a relação desse Cruzado com os Cavaleiros da
Ordem de Cristo, que levavam adiante a Colonização portuguesa, e com os
Jesuítas, ordem que também mobilizava o mito tupi da Terra Sem Males e a jornada de Sumé para o Oeste, na direção dos Andes --, Sumé que os freis
associaram ao Glorioso Apóstolo São Tomé, que evangelizou a Índia [mais uma vez
o Oriente Místico], segundo a Tradição Cristã?
A Nova Atlântica, de Francis Bacon, utopia que pode ser comparada à da Babel/Babilônia de Gênesis |
É um mistério. Mas os Reformadores calvinistas tiveram mais sucesso na América do Norte, que nasce sob outro signo utópico poderoso, a Nova Atlântida, de Bacon, descrita com o nome hebraico de Bensalem. A Ilha teria se convertido ao cristianismo, mas era governado por um conselho todo poderoso chamado "Casa de Salomão", com ritos próprios, capacidade de forjar milagres e iludir a todos com truques com a luz, e autoridade para decidir que segredos revela ou não à sociedade e ao Estado. O objetivo último de Bensalem era "o conhecimento das causas e o segredo dos movimentos de todas as coisas; a expansão dos limites do Império humano até a conquista de tudo que é possível."
Enquanto alguns atravessaram oceanos seguindo o mito da Nova Atlântida, outros sacrificaram tudo pela redescoberta do Éden. No campo do mito, o Brasil é desde as origens uma terra santa, e que está sempre pronta a ser redescoberta, como a Ilha no meio do Mar que aparece e desaparece e cuja utopia permanece viva porque incrustada no imaginário.
segunda-feira, 28 de outubro de 2024
O MARXISMO E A LUTA ANTIRRACISTA GLOBAL, ou: o negro imaginado como nova classe revolucionária
Militância antirracista derruba estátuas de Cristóvão Colombo nos EUA |
O racismo biológico europeu chegou com força no Brasil da segunda metade do século XIX, se mesclou com a hierarquia social herdada da escravidão, e nutriu as ideologias que impulsionaram a derrubada da Monarquia e a consolidação da República. O estudo sobre as questões raciais do país fez com que nossos intelectuais criassem alternativas que acreditavam estar fundamentadas em nossa história social e particularidades civilizacionais.
Arthur de Gobineau, um dos principais formuladores do racismo biológico |
A mais bem sucedida delas ficou conhecida como escola culturalista, ou escola "baiana", ainda que seu principal nome fosse o pernambucano Gilberto Freyre. Sua obra se adequou com perfeição ao espírito dos tempos e à agenda política da Era Vargas, transformando-a no paradigma predominante por pelo menos duas gerações, e uma referência que ultrapassava em muito o campo intelectual e praticamente se imbricou, em algumas de suas perspectivas, com a própria ideia de brasilidade.
O Quilombo dos Palmares se tornou mito a-histórico da reprodução no Brasil de uma África-fantasia idílica, cuja imitação no mundo hodierno seria fundamental para a luta revolucionária |
domingo, 27 de outubro de 2024
O que há de bom na Astrologia?, ou: os Padres da Igreja eram olavetes e ocultistas?
"A capacidade de unir os Reinos do Céu e da Terra permaneceu a chave para o mistério teológico dos ícones e permitiu-lhes resistir às mais severas tempestades teológicas, psicológicas e emocionais."
Padre Andreas Andrepoulos
Minha declaração sobre a astrologia causou estupor -- sincero ou fingido, não sei -- em algumas pessoas, que a vincularam à figura do Olavo de Carvalho e a práticas ocultistas. Este tipo de reação escandalizada vinda de certas figuras envolvidas direta ou indiretamente com a política não é nada incomum, e surgem de ímpeto polemista misturado com um conjunto de preconceitos contra religiosos e espiritualistas em geral. O ímpeto polemista está em vincular tudo o que não se gosta a um rótulo que serve de 'xingamento' e 'demonização' do interlocutor: Assim, a esquerda chama de fascista tudo que não é espelho; a direita chama de comunista tudo a que ela se opõe; russófilos duginistas se veem em uma guerra santa contra o olavetismo; e há olavetes que imaginam o Brasil invadido e dominado por Alexandr Dugin. Este tipo de rotulação maniqueísta se dá em um campo erístico sem qualquer seriedade, e assim eu não preciso me ocupar dele. As críticas que fiz a Olavo de Carvalho nos últimos quinze anos falam por si só.
Já o conjunto de preconceitos bebe de fontes materialistas e seculares, e carrega sua própria dose de alienação e hipocrisia, já que os movimentos seculares em geral foram impulsionados por sujeitos mergulhados em crenças e práticas espiritualistas, algumas delas ligadas ao que se convencionou chamar de ''ocultismo''. Como apontou Jason A. Josephson-Storm, em "Myth of Disenchantment. Magic, Modernity and the birth of Human Sciences", longe de varridas da vida pública, as crenças e práticas espirituais continuam norma entre governantes, empresários, cientistas e populações do mundo contemporâneo. Apesar do discurso 'oficial', o mundo continua encantado pra maioria esmagadora da civilização que se abraçou fanaticamente ao secularismo. Da Enciclopédia dos Iluministas, que considerava a Magia uma ciência, passando por revolucionários que conspiravam em lojas Maçônicas, e até mesmo a filósofos como Adorno, a elite política e intelectual do Ocidente se abraça à ideia similares ao ''sobrenatural".
A minha postagem também pode causar ojeriza em determinada sensibilidade religiosa. Mas nesse caso se trata do choque entre espiritualidades que se consideram mutuamente exclusivas. Quando um religioso condena como superstição a espiritualidade X ou Y, ele não pretende que suas próprias práticas religiosas caiam sob o mesmo epíteto. Superstição, evidentemente, é a religião do outro, e esse tipo de embate é perfeitamente natural e compreensível. Mas tampouco podem ser consideradas reflexões sérias caso não superem o nível do ''estranhamento'' puro e simples.
Isto posto, vou esmiuçar um pouco mais a postagem que fiz no X e mostrar porque o suposto escândalo não passa de ignorância e/ou hipocrisia. O texto não visa debater a ciência contemporânea, assunto que me interessa de forma bem marginal. Tenho uma abordagem instrumentalista da ciência contemporânea: a considero a melhor que existe para o que se propõe. Mas aquilo a que ela se propõe me parece bastante insuficiente para o coração humano.
A imagem no início deste texto traz Cristo no centro do Zodíaco. A representação se encontra no Mosteiro Dekoulou, na Grécia. As condenações dos Padres da Igreja a certas ciências e artes da Antiguidade [como a matemática ou o teatro] se baseavam em alguns critérios, se ligam a um dado contexto. No caso da Astrologia, há condenação explícita ao culto pagão que acompanhava a consulta divinatória e à própria noção que acompanhava a tentativa de predição, a saber, que as ações humanas eram governadas e determinadas pela natureza.
"Estes são, então, os nomes dos doze signos e seus respectivos meses:Áries, que recebe o sol no dia 21 de março.Touro, no dia 23 de Abril.Gêmeos, no dia 24 de maio.Câncer, no dia 24 de Junho.Virgem, no dia 25 de Julho.Libra, no dia 25 de Setembro.Escorpião, no dia 25 de Outubro.Sagitário, no dia 25 de Novembro.Capricórnio, no dia 25 de dezembro.Aquário, no dia 25 de janeiro.Peixes, no dia 24 de Fevereiro.[...]Ora, os gregos declaram que todos os nossos assuntos são controlados pelo nascer, pelo pôr e pela colisão destas estrelas, isto é, o Sol e a Lua: pois é com estes assuntos que a astrologia tem que lidar. Sustentamos, no entanto, que recebemos dos signos sinais de chuva e seca, frio e calor, umidade e secura, e dos vários ventos, e assim por diante, mas nenhum sinal de qualquer espécie quanto às nossas ações. Pois fomos criados com livre arbítrio pelo nosso Criador e somos mestres de nossas próprias ações. Na verdade, se nossas ações dependem do curso das estrelas, fazemos tudo por necessidade: e a necessidade exclui a virtude ou o vício. Mas se não possuímos virtude nem vício, não merecemos louvor ou punição, e Deus também se revelará injusto, pois dá coisas boas a alguns e aflige outros. Não, Ele não continuará mais a guiar ou prover Suas próprias criaturas se todas as coisas forem carregadas e arrastadas pelas garras da necessidade. E a faculdade da razão será supérflua para nós: pois se não somos senhores de nenhuma de nossas ações, a deliberação é bastante supérflua. A razão, na verdade, nos é concedida apenas para que possamos nos aconselhar e, portanto, toda razão implica liberdade de vontade.Sustentamos assim que as estrelas não são as causas nem a origem dos eventos nem da destruição do que é perecível. São antes sinais de chuvas e mudanças de ar. Mas, talvez, alguém possa dizer que, embora não sejam as causas das guerras, são sinais delas. E, na verdade, a qualidade do ar produzido pelo sol, pela lua e pelas estrelas produz de várias maneiras diferentes temperamentos, hábitos e disposições. Mas os hábitos estão entre as coisas que temos em nossas mãos, pois é a razão que os governa, dirige e muda."
"Como a própria palavra 'mundus', derivada de 'motus' (explicação etimológica!), dá a entender, o mundo está em perpétuo movimento. É redondo como uma bola e comparável a um ovo. Na beirada externa há uma casca, o céu, que envolve o mundo inteiro. Debaixo dela situa-se, à semelhança da clara do ovo, o éter puro, que serve de envoltório para o ar em movimento, exatamente como a clara encerra a gema. Na parte mais central, correspondente ao germe, está a Terra. No centro da terra situa-se o Inferno. Repleto de fogo e enxofre, sua forma dilata-se na parte inferior e estreita-se na superior. A região mais central chama-se Érebo, e é habitada por dragões e serpentes que vomitam fogo. Há lugares que exalam vapores nauseabundos; são conhecidas sob o nome geral de Aqueronte. [...] Todas essas descrições eram entendidas muito realisticamente; representam o primeiro esboço do plano do inferno elaborado por Dante. [...] O fogo é o mais nobre dos elementos. Dentro dele se escalonam as esferas dos sete planetas. Os nomes destes provêm dos movimentos irregulares a que estão sujeitos. O firmamento arrasta-os com enorme velocidade de Leste a Oeste, em sentido contrário, portanto, ao seu curso natural. [...]A revolução das sete esferas dá origem a sons maviosíssimos, cuja harmoniosa consonância produz a mais admirável das melodias. Contudo, esta harmonia das esferas não chega aos nossos ouvidos, por originar-se para além do ar, que é o único meio em que nós percebemos os sons. Ademais, ela é demasiadamente forte para ser percebida pelo ouvido humano. A escala da música celeste vai da Terra ao Firmamento, e supõe-se que nossa escala foi inventada a exemplo dela. Entre a Terra e o Firmamento há sete tons, assim distribuídos: um tom inteiro da Terra à Lua; meio tom da Lua a Mercúrio; meio tom de Mercúrio a Vênus; três tons de Vênus ao Sol; um tom inteiro do Sol a Marte; meio tom de Marte a Júpiter; meio tom de Júpiter a Saturno; e três meios tons de Saturno ao Círculo do Zodíaco. [...] Da Terra ao Céu, pois, sete tons e mais nove ''consonâncias''; a estas correspondem as nove musas dos filósofos. As "consonâncias" são inatas na própria natureza humana. Acima do fogo encontra-se a oitava esfera, o Céu, que dista 109.375 milhas da Terra. [...] O Céu superior chama-se Firmamento, em razão da firmeza de sua estrutura, situada no meio das águas [....] Como se vê dentro desse esboço, o universo medieval caracteriza-se por sua continuidade, sua coesão singular e seu simbolismo religioso. É um imenso globo material com dois pólos espirituais: a matéria superior vai até o céu dos espíritos bem-aventurados, e a inferior até o inferno dos espíritos condenados. Às nove penas do inferno correspondem as nove bem-aventuranças do céu. Nós, homens, ocupamos um posto intermediário entre estes dois pólos, até que a separação final dos bons e dos maus venha incorporar-nos definitivamente a um ou outro."
"Naquele mundo no qual todas as coisas eram passíveis de ser vistas como hierofanias, isto é, como algo a mais do que pareciam à primeira vista, uma cosmologia simbólica impunha-se com naturalidade. O universo era interpretado como um imenso conjunto de símbolos. Sabe-se que na origem o termo grego symbolon designava cada uma das metades de um objeto que fora dividido pra que sua junção funcionasse como uma senha, daí o sentido literal de ''sinal que faz reconhecer". Logo, não pode ser confundido com o signo, que é apenas um substituto ou representação de algo, sem ter semelhança estrutural com a coisa que representa. Da mesma forma que o signo, a alegoria também é uma convenção. O símbolo, pelo contrário, é um produto psíquico espontâneo, que exprime algo que não poderia se formulado com precisão nem compreendido de outra maneira. Portanto, "a função do símbolo é religar o alto e o baixo, criar entre o divino e o humano uma comunicação tal que eles se unam um ao outro" [Davy, 1997]. É o encontro de duas realidades numa só, ou melhor, expressão da única realidade sob outra forma. O símbolo é inferior à realidade simbolizada, mas por intermédio daquele o homem se aproxima desta, restabelecendo a unidade primordial. [...] Há uma lógica simbólica que fornece a chave para o entendimento da mensagem, sem anular o significado potencialmente diverso de cada símbolo: a mentalidade simbólica persegue a unidade do múltiplo. O papel do símbolo é projetar o indivíduo no Além, romper os limites de tempo e lugar, fundir o microcosmo (homem) e (universo). Daí o símbolo ser uma hierofania, revelar uma realidade sagrada para quem tiver sensibilidade para decodificá-lo. Não se requer para tanto uma operação consciente, intelectual, mas automática, inconsciente. Nas palavras do pseudo Dioniso Areopagita (quer dizer, atribuídas a este discípulo de São Paulo, mas na verdade escritas na Síria por volta do ano 500), cuja obra exerceu grande influência ao longo da Idade Média, "o sensível é reflexo do inteligível". [...] De acordo com esta visão simbólica do universo, o próprio homem é um símbolo. A relação do homem com a natureza não é de sujeito e objeto, porque ele se encontra integrado no mundo exterior; para a Idade Média ''não existem fronteiras nítidas entre o indivíduo e o mundo" [Gurevitch, 1990]. Segundo a concepção vinda da Antiguidade e aceita por quase toda a Idade Média, o homem é um microcosmo, não apenas um fragmento do Todo, mas uma réplica dele em ponto menor: sua carne é feita de terra, seu sangue de água, seu fôlego de ar, seu calor de fogo, ou seja, nele se encontram os quatro elementos constitutivos do mundo. Mais ainda, cada parte de seu corpo corresponde a uma parte do universo: a cabeça ao céu, o peito ao ar, o ventre ao mar, as pernas à terra, os ossos às pedras, as veias aos galhos de árvores, os cabelos às ervas, os sentidos aos animais. As etapas de sua vida são seis, como os dias da Criação: infância, adolescência, juventude, maturidade, velhice, decrepitude. Em suma, pela mentalidade simbólica, "o homem não se sente um fragmento impermeável, mas um cosmos vivo abeto a todos os outros cosmos vivos que o rodeiam, [por isso] não se reduz à existência fragmentada e alienada do homem civilizado do nosso tempo" [Eliade]."
Anselmo da Cantuária tinha uma explicação cosmológica para as Musas, associando-as ao movimento harmônico das esferas celestes |
Enfim, os cristãos citados aqui, todos eles figuras de extrema relevância nessa religião, criticavam a astrologia no que ela tem de determinista e de técnica preditiva. Mas aceitavam sua cosmologia subjacente, a estrutura que rege a relação entre os diferentes seres e elementos do cosmos, e a associavam diretamente a uma dada antropologia e psicologia. Obviamente, eles nunca ouviram falar de Olavo de Carvalho ou do Ocultismo contemporâneo, que causam um Grande Medo em alguns temperamentos. Eram apenas estudiosos das ciências e ideias pré-modernas, que se refletem nas Escrituras Sagradas, nos ritos, imagens, e ensinamentos do Cristianismo.
Alguns podem achar um tédio ou desperdício de tempo se ater a abstrações deste tipo. Afinal, os jornais não providenciam apenas ''horóscopos'', eles entretém o público com as informações do dia no campo político, econômico, esportivo, gastronômico, internacional, cultural etc. Mas eu avisei na postagem do X: não é um assunto para todo mundo. É chamado de ''mistérios menores", diz respeito a um nicho de pessoas com um tipo especifico de disposição. Aparentemente, Deus não é um progressista: ele distribuiu vocações e dons de maneira muito desigual entre os homens.