segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Tratado sobre a Práxis -- Evágrio Pôntico 1

Abaixo, uma pequena e modesta tradução de um trecho de um das obras mais importantes do monasticismo, escrita por Evágrio Pôntico, eremita e discípulo de São Macário do Egito e de São Gregório Teólogo, e cujos livros possuem grande peso nos ensinamentos patrísticos. Evágrio foi anatematizado pelo V Concílio Ecumênico por conta de sua cosmologia herética. No entanto, a psicologia ascética desenvolvida em seus escritos está na base de toda a Filocalia, sendo perfeitamente ortodoxa. [1]







1 O Cristianismo é o dogma de nosso Salvador Cristo composto das partes prática, natural e teológica. 


2 O Reino dos Céus é a impassibilidade da alma com verdadeira gnose das coisas existentes. 


3 O Reino de Deus é a gnose da Santissima Trindade coextensiva com a constituição do Nous e superior à sua incorruptibilidade.


4 Aquilo que alguém deseja [passionalmente] certamente aspira, e aquilo a que aspira luta por conquistar. O desejo [passional] é a origem de todo prazer: o desejo, então, gera a percepção sensorial, pois aquilo que não tem parte na percepção sensorial está também livre de paixão.


5 Os demônios combatem nus contra os eremitas; eles armam os [monges] mais negligentes da comunidade contra aqueles nos mosteiros e formam grupos [de demônios] contra os que estão trabalhando na virtude. A segunda guerra é muito mais leve do que a primeira já que não é possível encontrar sobre a terra homens mais cruéis que os demônios, ou que aceitem a um só tempo toda sua vilania.




Sobre os Oito logismoi [Nota: pensamentos apaixonados]


6 Os logismoi [2] mais gerais são oito no todo, os quais contém os demais logismoi. Primeiro, o pensamento da gula; e, depois, o pensamento da fornicação [luxúria]; em terceiro, o da avareza; o quarto, o da tristeza; quinto, o da ira; sexto, o da acídia; sétimo, o da vanglória; oitavo, o do orgulho. Se esses logismoi afligem ou não a alma é uma das coisas que não estão em nosso poder; mas se persistem ou não, se colocam ou não as paixões em movimento, é algo que está em nosso poder.


7 O logismoi da gula sugere ao monge que rapidamente caia de seus esforços ascéticos, encarnando o estômago, fígado, baço e hidropisia, e então uma doença duradoura, [e sugestionando] a raridade das coisas necessárias e a ausência de terapeutas. Frequentemente leva também o monge à recordação de determinados irmãos que caíram nessas paixões. Às vezes seu pensamento persuade essas mesmas pessoas que sofreram tais coisas a se reunirem com os castos e a narrarem suas desventuras, como se aquelas coisas tivessem acontecido por conta da ascese deles.


8 O demônio da fornicação [luxúria] força [o monge] a desejar vários corpos: e ataca com ferocidade ainda maior aqueles que são castos, para que parem com a continência como se ela não os levasse a nada; e, poluindo a alma, as dobra em direção a esses atos; e faz a alma dizer certas palavras e também ouvi-las como se o objeto estivesse presente e sendo visto.


9 A avareza sugestiona uma longa velhice e a fraqueza das mãos para o trabalho, fomes que virão e doenças que acontecerão, e a amargura da pobreza, assim como a vergonha de aceitar de outros aquelas coisas que são necessárias.


10 Então a tristeza ocorre às vezes como resultado da privação dos desejos, e às vezes implica na ira. Como consequência da privação dos desejos ocorre da seguinte maneira: certos logismoi levam, por antecipação, a alma a recordar da casa, dos pais e do seu modo anterior de vida. E quando [os logismoi] vêem que a alma não resiste mas que os seguem e que se dissipa em prazeres que ocorrem no intelecto [imaginação], então tomam a alma e a submergem na tristeza e na imaginação de que tais coisas não mais existem e nem podem existir por causa do modo presente de vida. E a alma desafortunada, na medida em que se dissipou naqueles primeiros pensamentos, humilhando-se, diminui a si mesma por causa desses últimos pensamentos.


11 A Ira é uma paixão muito ativa: diz-se que é um movimento fervente do temperamento [3] contra aquele que cometeu uma injustiça ou aquele de quem se pensa que cometeu uma injustiça. Essa coisa mesma, a ira, torna a alma selvagem por todo o dia, e, mais ainda, aprisiona o Nous durante as orações, espelhando o rosto da pessoa que ofendeu [o monge]. Isso acontece quando a ira persiste por longo tempo e se transforma em ódio, levando a distúrbios noturnos, definhamento do corpo, palidez, e ataques de animais peçonhentos. Essas quatro coisas podem ser encontradas ocorrendo depois que o ódio se seguiu de vários pensamentos.


O demônio do meio dia
12 O demônio da acídia, que também é chamado de ''demônio do meio dia'' [Sl 90:6], é o mais pesado de todos os demônios. Aparece ao monge por volta da hora quarta e circula ao redor de sua alma até a hora oitava. Primeiro, faz o sol parecer lento ou sem movimento, como se o dia tivesse cinquenta horas. Depois pressiona [o monge] a olhar continuamente para as portas e pular para fora de sua cela, se fixar no sol para ver quanto falta para a hora nona, e procurar aqui e ali, talvez por um dos irmãos. Mais ainda, torna presente um ódio pelo lugar e com respeito a esse modo de vida e ao trabalho manual; e [torna presente] o pensamento de que a caridade abandonou os irmãos e que não há ninguém que console [o monge]; e se, durante esses dias, há alguém que tenha entristecido o monge, o demônio acrescenta isso para aumentar o ódio. Leva o monge também ao desejo por outros lugares em que ele poderia facilmente encontrar as coisas necessárias e exercitar uma arte ou o comércio, aquilo que é mais fácil e avançado; e, acrescenta, agradar o Senhor não depende de um lugar; mas, diz, em todo lugar o Divino deve ser adorado [Jo 4:21 a 24]. Junta também a essas coisas a recordação dos familiares e do modo anterior de vida; faz o tempo de vida parecer longo, trazendo diante dos olhos as dores do ascetismo; e, como se diz, coloca em movimento tudo quanto faça o monge abandonar sua cela, abandonar a arena. Nenhum demônio se sucede imediatamente a esse; uma condição de paz e uma alegria indescritível toma a alma depois da luta.


13 O logismoi da vanglória é um tipo muito sutil de pensamento que ocorre àqueles que tem realizações, e que tendem facilmente a tornar públicas suas lutas e a correr atrás das glórias que vem dos homens [1 Tess 2:6]: representando demônios lamentando e mulheres sendo curadas e algum tipo de multidão tocando as vestes do monge. Então profetiza ao monge o sacerdócio e lhe faz imaginar sendo procurando nas portas, e a maneira como, caso ele não vá por vontade própria, será carregado amarrado. E então deixando o monge exaltado nessas vãs esperanças que o levam para longe, para a tentação ou pelo demônio do orgulho ou então pelo demônio da tristeza, que traz a ele pensamentos contrários a essas esperanças vãs; acontece também às vezes de entregar ao demônio da fornicação [luxúria] o santo sacerdote já atado.


14 O demônio do orgulho se torna para a alma a fonte da mais severa queda. Seduz a alma a não confessar que Deus é quem a ajuda, a pensar que ela mesma é a causa das realizações e a se inflar contra os irmãos como se fossem ignorantes porque não sabem essa coisa mesma a seu respeito. A Ira e a tristeza se seguem a esse demônio e, como último dos males, um êxtase das faculdades mentais, loucura e à visão de multidões de demônios no ar.



[Continua]


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[1] Minha tradução foi realizada em cima da tradução realizada pelo monge Teophanes [Constantine], do Monte Athos, Grécia.

[2] O termo significa, no ascetismo ortodoxo, ''pensamentos apaixonados'', ou seja, já permeados pelos movimentos das paixões, ou pelas faculdades da alma movidas a partir do apego ao mundo.

[3] A Psicologia Patrística, seguindo Platão, divide a alma humana em três partes principais: a erótica ou apetitiva [também chamada de concupiscente ou desejante], a irascível ou tímica, e a Intelectiva ou noética. O temperamento é uma operação da parte irascível da alma.