terça-feira, 25 de janeiro de 2022

O OLAVETISMO NÃO É O BOLSONARISMO


Com a morte de Olavo de Carvalho pululam tentativas de explicar o significado e as razões de sua influência. a grande mídia repete quase em uníssono o jargão de que Olavo é o "guru de Bolsonaro", ou o responsável pela criação do bolsonarismo.

Mas isso não é de todo verdade e confunde a confluência de dois movimentos distintos em um momento específico da história brasileira. A trajetória de Olavo de Carvalho e dos círculos que amplificaram suas ideias está bem distante da formação do fenômeno de massas da bozóloucura.

Um dos erros das análises apressadas é identificar a origem visível do olavetismo em meados da década passada, durante a crise que atingiu o governo de Dilma Roussef. Ora, os núcleos de apoio e de seguidores do "filósofo da Virgínia" já estavam mais do que consolidados a essa época.

O líder daquilo que poderíamos chamar de ''novo conservadorismo brasileiro'' surge para o debate público por meio de artigos de jornais publicados semanalmente n'O GLOBO durante a segunda metade dos anos 1990. O articulista chamava a atenção pela verve polemista, e tinha por trás de si o sucesso de livros como "O Jardim das Aflições" [1995] e ''O Imbecil Coletivo" [1996], além de um movimentado e bastante acessado website oficial. O pensamento de Olavo já era marcado por forte diálogo com o conservadorismo norte-americano e denúncia do marxismo, mas era bem menos histérico e monomaníaco. Poderíamos dizer que se tratava de um intelectual assumidamente de direita com grande ar de respeitabilidade. As portas do establishment estavam abertas para Olavo de Carvalho.

A ascensão do olavetismo se abraça à do PT. Conforme Lula ia se tornando o favorito para as eleições presidenciais de 2002, o espaço de Olavo na mídia tradicional cresceu. Naquele ano, tinha espaço também na revista ÉPOCA, no Jornal do Comércio e outros veículos. Montou um site de notícias que unia liberais e conservadores, o Mídia Sem Máscara. E adequou sua retórica a um antipetismo cada vez mais feroz, a ponto de considerar o partido uma instituição literalmente satânica, "que jamais poderia ter vindo a existir". Por trás do PT, denunciava o caráter deletério da ''casta intelectual'', cuja maior e mais degradada representante seria a USP.

Sua visibilidade sofreu um baque com o primeiro mandato de Lula, que não parecia confirmar suas previsões catastróficas de conversão do país ao comunismo. Ele foi perdendo espaço nos jornais, e também brigou com boa parte dos liberais do Mídia Sem Máscara, que se afastaram dele como de um leproso. Nessa fase, Olavo passou a ser considerado um intelectual "marginal", tratado praticamente como ''persona non grata'' pela Academia, tido por irrelevante, obscuro e um tanto ridículo. Mas as portas que lhe foram fechadas nesse ambiente apenas lhe deixaram em paz para crescer em espaços que, menosprezados àquela altura pelo establishment, se revelaram de imensa importância para o debate e a propaganda intelectual e política no século XXI.

O Orkut se tornou a primeira grande rede social acessada em massa pelas classes médias brasileiras. E o reino do olavetismo foi construído nesse mundo virtual, que permitia a convivência, o encontro e a troca de ideias diária de pessoas que, não só não se encontrariam nunca no mundo real, como eram portadoras das percepções menos mainstream sobre o mundo e a sociedade. Ignorado pelas universidades e pela mídia tradicional, ridicularizado até mesmo pelos opositores do PT que gozavam de maior ''respeitabilidade'', Olavo sustentava sua influência e aumentava sua capacidade de mobilização dentro de uma certa elite social por meio de debates nas comunidades do Orkut e, a partir de 2006, no programa popularesco True Outspeak, transmitido pela internet.

Em 2005, o filósofo se muda para a Virgínia, EUA. Para muitos, era uma tentativa de fugir dos inúmeros processos que se acumulavam contra ele em resposta às suas invectivas contra a esquerda, celebridades, acadêmicos etc., processos que ele encarava como sintoma de uma perseguição política. A essa altura, Olavo já havia unido sua persona pública ao neoconservadorismo norte-americano, e se tornado um fiel defensor do governo de George Bush Jr., da "Guerra ao Terror" e do projeto do "Novo Século Americano". Denunciava o PT como agente do Foro de São Paulo, uma terrível organização destinada a constituir no continente uma união socialista nos moldes da soviética, em aliança com o narcotráfico internacional.

O domínio eleitoral do PT e o crescimento quase que "subterrâneo" de suas ideias em meios com boa educação formal e capital social, fez com que se tornasse o principal foco de oposição intelectual aos círculos em torno de Lula. Quem não gostava do PT e da ideologia que naquele momento estava na crista da onda encontrava em Olavo uma fundamentação minimamente coerente para o anti-esquerdismo, além de um universo inteiro de autores desprezados no debate público do país. O próprio Olavo figurava como um ícone, um campeão anti-marxista, com reconhecida capacidade de vencer debates sem ter razão. Em 2009, Olavo deu um novo passo na consolidação do olavetismo com a criação de seu Seminário de Filosofia, que formou milhares de alunos em sua leitura da realidade intelectual e política.

Foi quase que natural que a direita se voltasse para ele quando a crise e o cansaço com o prolongado predomínio petista e com o avanço das pautas da esquerda liberal em diversos âmbitos se tornou uma avalanche capaz de alterar os rumos eleitorais do país.

Mas não foi a mudança de humores populares que criou o olavetismo. Ele já estava lá. Com tradição, história de crítica à esquerda e ao PT, e gerações de legiões de alunos, seguidores e dependentes treinados nos conceitos e clichês divulgados pelo filósofo. O sucesso estrondoso de "O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota" [2013] e as imagens de fanáticos saindo às ruas para protestar gritando "Olavo tem razão" são anteriores ao fenômeno de massa mais amplo do bolsonarismo.

O Olavetismo é formado por um conservadorismo religioso que, inicialmente reverberando um tradicionalismo católico-romano crítico à Teologia da Libertação e à cúpula da CNBB, foi se aproximando cada vez mais dos evangélicos depois da mudança do "guru" para a Virgínia. Suas ideias debatiam com os princípios da Escola Tradicionalista, principalmente René Guénon e Frithjof Schuon, embora Olavo tenha passado a contestá-los de maneira mais forte a fim de adaptá-los à sua nova versão neocon, americanófila e ligeraimente islamofóbica consolidada com sua migração para a terra dos ianques.

O apego ao sionismo sempre esteve presente, mas também cresceu com o tempo. Na verdade, Olavo foi quase que um vanguardista na união entre conservadorismo brasileiro e filo-judaísmo. Já a verve fanaticamente liberal e anti-estatista nunca mudou. O filósofo da Virgínia sempre foi muito próximo das ideias de Estado Mínimo. Por fim, crítico aos EUA ao longo dos anos 1980 e 1990, Olavo se rendeu à geopolítica dos falcões de Washington, vindo a considerar o Partido Republicano como uma verdadeira trincheira contra o suposto "marxismo cultural" que dominava os Democratas, e, através de elos de uma corrente de influência institucional, o establishment universitário, midiático e político-partidário brasileiro.

Antes da queda derrocada do PT, em 2016, ninguém nos círculos olavéticos falava de Bolsonaro de modo relevante. Foi o ex-capitão do Exército que se aproximou do fenômeno do olavetismo, que dava à sua visão tosca e reacionária de mundo, vinculada ao saudosismo em relação aos porões do regime civil-militar, uma consistência teórica e filosófica que ela não possuía.

O crescimento do Olavetismo foi a reação possível de gerações incomodadas com a superficialidade das discussões acadêmicas e do predomínio das teses da sociologia da USP. Seu impulso se deu principalmente nas altas classes médias e em jovens com imensa curiosidade intelectual e tendências contrárias ao discurso hegemônico imposto pela geração anterior.

As causas de seu sucesso não desaparecem com o falecimento de Olavo, e não dependem dos destinos de Bolsonaro, cujo público raiz é bastante distinto, embora encontrem um terreno comum na sua escolha por submissão aos EUA, a Israel e ao antiprogressismo ferrenho e fanático travestido de anticomunismo radical.
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sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

"O Anticristo" [2009], a Gnose, e a Teodiceia

A tragédia de um bebê caindo pela janela, representação da Queda de Lúcifer, do Primogênito



Um dos tópicos que os céticos supõem ser mais desafiadores para a religião cristã é a Teodicéia. A questão inescapável nesse campo seria compatibilizar um Deus que é todo Bondade e Onipotência com a presença sufocante do mal no mundo.



Não temos exatamente um problema lógico -- embora eu já tenha encontrado multidões fanáticas de ateus achando que descobriram a pólvora. Não há contradição entre o Deus bom e onipotente e a presença de algum mal no mundo.


Desde que esse mal seja necessário, evidentemente.


É aí que a porca torce o rabo para muitos. Uma coisa é dizer que algum mal é necessário para um bem maior de esplendorosa glória. Outra é afirmar, por exemplo, que pedófilos que esquartejam crianças depois de estuprá-las sejam um mal necessário, que nenhum mundo seria possível sem eles ou que algum bem maior ['imortalidade', 'paraíso' etc. ] os justificaria no fim das contas.


Para religiões que identificam Deus com o Bem, inclusive com a Bondade encarada de um ponto de vista moral, é difícil encontrar alguma solução satisfatória do ponto de vista sentimental. Por mais que sejam dadas, sempre se questiona se Deus não poderia fazer diferente, se não poderia intervir etc.


Não quero me adiantar, mas há no fundo dessa pergunta uma disposição ou tentação que é eminentemente satânica, sem deixar de ser, no entanto, profundamente espiritual e divina.


Bom, por que estou falando de teodicéia?


Porque já vi diversas interpretações de "Anticristo" [2009], de Lars Von Trier , uma das obras que tratam com maior profundidade de tópicos teológicos, filosóficos e de metafísica.

A união erótica como símbolo da condição divina


Com muita propriedade, já discorreram sobre o filme notando os paralelos com Nietzsche, Schopenhauer, Schelling. Fizeram associações óbvias com os mitos cristãos de origem, o gnosticismo, ocultismo, bruxaria, explicações para a queda, tantra, xamanismo. Elaboraram sobre o embate entre o inconsciente e a razão, o repúdio à psicoterapia e à psicologização do sagrado, o erotismo e sua perversão sado-masoquista, o simbolismo da violência, o significado profundo do poder sexual. Lars von Trier foi acusado de misógino, de manipulador do público, de exagerado, de divulgador de soft-porn, e até de anticristão [!!!].


São todos temas fundamentais pra compreender as múltiplas camadas da obra, sem dúvida.


Aliás, se há filme evoliano por excelência, ele é "Anticristo".


Mas o grande mal-estar, o grande problema com o qual o diretor luta não é a depressão, a saúde mental ou nem mesmo esses sutis tópicos metafísicos. É o desconforto com a Teodicéia.


Não há cena mais reveladora do mal-estar do que a descoberta, já no fim da película, que a personagem de Charlotte Gainsbourg podia ter evitado que seu filho pequeno se atirasse pela janela, e que não o fez para continuar transando com seu marido [vivido por William DaFoe].


Pois é a imagem de uma condição divina anterior ao Éden. Eis a Queda de Lúcifer, do anjo inocente que se atira no abismo. E a Divindade, representada pelo casal copulando -- um dos símbolos mais poderosos --, sabia, testemunhou e ''deixou acontecer''.


Todo o restante do filme se desenvolve sob esse paradigma inicial, apresentado parcial e poeticamente nas primeiras cenas de "Anticristo".


A Natureza é, conforme diz a personagem de Gainsbourg [que não tem nome próprio no filme: a chamarei de 'Ela'], "A Igreja de Satã" [o Templo de Satã, como diria Stanilas de Guaita]. A Natureza é o choro de uma criança perdida e abandonada, como Ela percebe em um dos períodos na cabana da família na floresta, num local chamado de Éden.

Essa degradação já está presente quando o casal adentra o Éden, ou seja, quando vai para a cabana na floresta. No estado edênico já encontramos o mal, não instanciado nas formas da desobediência, da dor, da morte, mas como potência, como possibilidade ameaçadora. De onde essa possibilidade viria? Onde sua primeira instanciação?


Ela, que escreve uma tese sobre ''feminicídio'' ao tratar da caça às bruxas do início da Idade Moderna, percebe que estava errada. O feminicídio existe não por circunstâncias, mas por necessidade. A necessidade do mal.


Mas se é por necessidade, então está na natureza das coisas. E se as coisas são más, então as mulheres também são más. É ilusório negar a possibilidade de bruxas, de sabás lançando feitiços, pactuando com o capeta, assassinando crianças, se envolvendo em orgias e frenesis, espalhando a destruição. As mulheres são governadas pela natureza, que é nada mais do que um ciclo perene e aparentemente inescapável de destruição autocentrada e sem sentido.


A inversão da imagem erótica inicial: o sexo eivado de narcisismo e sado-masoquismo, expressão do Sabá e do pacto diabólico que perpetua um mundo de dor e morte



O eros, que no início representa a condição divina na forma da cópula de um casal apaixonado, é agora o pior dos males. É viciante, intoxicante, uma lei férrea de desejo levando ao êxtase efêmero e até narcisista, mas também à procriação e, portanto, ao sofrimento e à morte.


E o homem agora é só a imagem da razão divisora do interior [mente] e do exterior [natureza], que visa controlar e guiar a mulher, portadora de forças inconscientes que a ciência conhece por caricaturas [como a ridícula pirâmide de medos com que o marido-terapeuta-confessor pretende descortinar a psique da mulher], e portanto pisando em um campo minado que vai tragá-lo, castrá-lo, aprisioná-lo, e, no fim, matá-lo.


Os elementos metafísicos e espirituais em "Anticristo" são tratados todos com imenso cuidado, zelo, conhecimento e força imagística por Lars von Trier. Mas o mal estar do diretor permanece no fim. Depois do luto, da dor e do desespero, não há exatamente uma redenção. Pelo contrário, se concretiza o feminicídio como ápice da misoginia gnostikoi. Porque a resposta só está naquela condição divina que permitiu a queda da Estrela da Manhã.


O problema com que Lars von Trier está lidando é o do fundamento da própria existência. A existência como uma tragédia, uma catástrofe.

Afinal, a inexistência é melhor que a existência?


Uma pergunta que pode ser colocada com verdadeiro senso de transcendência, ou com um sorriso diabólico. Quem sabe com ambas as disposições ao mesmo tempo.