segunda-feira, 22 de março de 2021

DAS MENTIRAS QUE OLAVETES CONTAM, ou: a balela de que as ideias de Dugin teriam sido condenadas como heréticas pelo Patriarcado de Moscou

 ''Todo o universo de idéias do professor Dugin é um reflexo do drama estrutural, interior da Igreja Ortodoxa.''

Olavo de Carvalho



Dugin lendo ofício em uma Igreja Russa



Alguns discípulos de Olavo de Carvalho decidiram espalhar uma mentira infame entre cristãos ortodoxos, a de que existiria uma condenação formal do Patriarcado de Moscou às ideias de Alexandr Dugin. [1]


Pra manter a invencionice, se utilizam de um texto retirado do livro "Новые религиозные организации России деструктивного, оккультного и неоязыческого характера'' [''Novas organizações religiosas na Rússia e de natureza destrutiva, ocultista e neopagã''], que é um dos oito volumes de uma verdadeira ''enciclopédia'' chamada ''Новые религиозные организации России деструктивного и оккультного характера'' ["Novas organizações religiosas russas de natureza destrutiva e oculta"].



As duas primeiras edições foram publicadas em 1997 como um guia pelo Departamento Missionário do Patriarcado de Moscou, sem no entanto implicar qualquer pronunciamento oficial sobre os diferentes tópicos e movimentos citados por seu autor, de quem falaremos mais adiante. A terceira edição, muito mais ampliada, foi publicada, por sua vez, pela Editora Peregrino entre 1999 e 2002.



O compilador da obra é Igor Vladislavovich Ponkin, que tem certa presença acadêmica e política, e pesquisa movimentos não-cristãos surgidos a partir dos anos 1990.



Ponkin não é nem nunca foi funcionário ou voz oficial do Patriarcado. Em evento acadêmico realizado no fim de 2002, o Padre Andrey Igorevich Khvylya-Olinte, que é também teólogo e doutor em Direito, e exercia chefia no próprio Departamento Missionário, declarou que ''[H]á várias pessoas que se declaram funcionários do Departamento Missionário Sinodal, entre elas Igor Vladislavovich Ponkin, que possui muitos pseudônimos - entre eles "Karelin" e "I. Kulikov ". Ele também não é funcionário do Departamento Missionário Sinodal. Peço a todos que estejam atentos às reivindicações arbitrárias dessas pessoas de serem membros do Departamento Missionário Sinodal" [2].



Além do texto não fornecer a posição da Igreja, seu compilador foi DESAUTORIZADO por figuras com posição formal no Departamento, e que possuem benção do Patriarcado para levar a efeito seus estudos sobre movimentos religiosos. 


A própria ''enciclopédia'' em questão foi analisada ao longo dos anos 2000 por acadêmicos e por figuras vinculadas ao Departamento Missionário, recebendo diversas e sólidas críticas, incluindo aí o teólogo e prestigiado acadêmico Alexander Leonidovich Dvorkin, esse sim premiado pelo Patriarcado e um dos maiores militantes contra o surgimento e crescimento de cultos perigosos [de uma perspectiva ortodoxa] na Rússia. Dentre outras coisas, Dvorkin disse que o livro' de Ponkin "contém muitos erros, dados não verificados e não confiáveis e estatísticas absolutamente fantásticas''. Além disso, continua ele, haveria uma simpatia preocupante com seitas neopentecostais, que, misteriosamente, parecem não ser consideradas perigosas. O que talvez explique uma das abordagens de Ponkin que vamos analisar mais abaixo.



A conclusão é inescapável: Qualquer um que diga que tal texto e o livro do qual ele saiu significa uma posição oficial do Patriarcado de Moscou está mentindo na cara dura. Infelizmente, uma tradução permanece publicada em um ou outro blog de cristãos ortodoxos, certamente por influência de Fábio L. Leite e amigos olavetes.



O objetivo da manutenção dessa mentira é, evidentemente, político. Olavo de Carvalho, ele mesmo um OCULTISTA que se diz católico-romano mas frequenta igrejolas pentecostais buscando curas pra hérnia, que defende uma união entre o Vaticano e a Maçonaria estaduninense, e que possui uma visão de mundo moldada por Fritjof Schuon, sob influência de quem converteu [''reverteu''] toda a família ao Islamismo. Desse sim Fábio Leite gosta.


Olavo, como qualquer pessoa sensata sabe, é agente de desinformação do Estado norte-americano. Mora na Virgínia, milita em prol do neoconservadorismo ianque e do liberalismo econômico, e defende a destruição do Brasil e a administração de nosso território pelos EUA.


O ''guru da Virgínia'' considera a Igreja Ortodoxa, e particularmente o Patriarcado de Moscou, como uma extensão ''da KGB" [sic]. E já declarouy que todas as paróquias cristãs ortodoxas no Brasil estão sob controle de tariqas muçulmanas.



Os delírios não param por aí. O homem que dizem ter escapado de um manicômio sem alta médica depois de tentar viajar por dimensões espaço-temporais com uma barca egípcia, tem não só Alexandr Dugin como inimigo, como o considera uma mera consequência do verdadeiro mal que se esconde no Oriente: para Olavo, o imperialismo russo [sic] e o globalismo são consequência direta da teologia ortodoxa. Por trás do ''eurasianismo'' e de todos os males possíveis e imagináveis que a Rússia espalharia pelo mundo, estaria o erro teológico fundamental: os ensinamentos da Igreja Ortodoxa.

 

Ou seja, Fábio Leite e companhia, incluindo todos aqueles que divulgam a versão mentirosa da suposta condenação de Dugin pelo Patriarcado de Moscou, tem um problemão: para seu guru e mestre, o verdadeiro problema das ideias de Dugin é que elas são moldadas demais pela mentalidade da Igreja.

 


Assim, pra Olavo o problema não é Dugin, e sim a Ortodoxia. Já perguntei a Fábio L. Leite a razão de ele se dizer cristão ortodoxo e ao mesmo tempo concordar com a leitura que seu guru faz da Igreja, mas ele nunca deu qualquer justificativa sólida. Talvez porque seu tempo esteja ocupado demais defendendo Sara Winter, outra olavete histriônica, vinculada ao neonazismo e à bozóloucura, e cuja história se associa à militância em prol de causas geopolíticas afins com os EUA. [3]


Desfeita a artimanha, resta, para aqueles que queiram perder o seu precioso tempo, olhar o texto que eles divulgam. Não é à toa que pessoas simpáticas a Olavo de Carvalho tenham simpatia pela peça. Ela não tem qualquer intenção de propor uma análise honesta. É um conjunto de recortes de pronunciamentos de Dugin em diferentes âmbitos, de conferências políticas a manuais de história da religião, todos eles lançados nos anos 1990, antes da proposta da Quarta Teoria Política. Esses recortes são tratados da forma mais desonesta possível, como é típico na erística reproduzida por olavetes.


Temos ali as mesmas estratégias de "debate’’ que tanto enganam incautos: uma série de distorções, giros argumentativos, denúncias, citações descontextualizadas, muitas das quais demonstram a ignorância do autor sobre os temas tratados. Vou citar apenas alguns exemplos:

 

1. Logo no início do texto é dito que "GUÉNON constitui uma autoridade incontestável para A. DUGIN.'' É uma tentativa de construir um espantalho: Se Guénon é autoridade incontestável para Dugin, e sendo Guénon um muçulmano sufi, logo as ideias de Dugin se desviam da Igreja. Só que Dugin tem críticas a idéias de Guénon, como a da existência de um núcleo esotérico comum a todas as religiões. Além disso, se possuir influência de Guénon é um "demérito’’ pra alguém, então todas as obras e textos de Olavo de Carvalho deveriam ser jogados fora. Olavo chega a PLAGIAR argumentos de Guénon em livros seus, como n’O Jardim das Aflições, confiando no desconhecimento das obras do metafísico francês.

 

2. O texto aponta que “As primeiras pesquisas religiosas de A. DUGIN datam do início dos anos 90 do século passado’’, e logo depois considera essas pesquisas iniciais como parâmetro de análise. Por quê? Qual o sentido disso? Se analisasse os escritos do Bem Aventurado Santo Agostinho por esse mesmo critério, o autor o chamaria de maniqueísta. Se analisasse os escritos de Olavo por esse mesmo critério, concluiria que ele era um astrólogo perenialista vinculado a cultos obscuros dos irmãos Shah.

 


3.  O autor também "acusa"  Dugin de reconhecer  a primazia do não ser”. Ele não nos dá nenhuma justificativa para o escândalo. Provavelmente porque confunde esse conceito com a ideia de "Nada’’. Mas o próprio Guénon esclarece que se trata de algo completamente distinto. O "não-ser’’ é aquilo que está para além do que a teologia escolástica chamou de "Ser". É a Realidade Absoluta e Inominável, absolutamente transcendente e que não pode ser contida por qualquer manifestação. O conceito não traz nenhum problema para os cristão ortodoxos, apenas para a teologia ocidental derivada do tomismo.

 

4.  O autor admite que a obra “O Fim do Mundo. Escatologia e Tradição’’, de 1998, é proposta por Dugin como um “manual de história”. Mas por algum motivo maluco, acrescenta que, por possuir posições pessoais do sociólogo, tem de ser lida como obra de "caráter dogmático". A absurdidade e desonestidade é gritante. E ressalto: o manual de história data de 1998, vinte e três anos atrás. O que fazia Olavo de Carvalho em 1998? Já tinha saído da tariqa? Já tinha parado de se definir religiosamente como um "cristão-muçulmano-hindu-judeu’’? Aliás, o que escrevia Olavo de Carvalho sobre os EUA em 1998? Muitos de seus discípulos mais fanáticos ficariam surpresos.

 

5.   Outro escândalo é com a declaração de que “O Cristianismo não substituiu, mas elevou e consolidou a fé antiga pré-cristã.’’ Se fica ofendido com frases como essa, o que o autor pensaria de São Justino Mártir e de São Clemente de Alexandria? Tudo que é verdade na história espiritual da homem é também cristão. As sementes do Verbo foram jogadas para todos os lados. Não há problema algum na consideração feita por Dugin.

 

6.   O autor implica com os diálogos empreendidos por Dugin com muçulmanos. Imagino que ficaria também doente com algumas posições de São Gregório Palamas quando capturado por muçulmanos, e que vão muito além de tudo o que Dugin tenha dito sobre o tema. Mas o verdadeiro flagrante do que está por trás do autor se dá quando analisa frases a respeito de Crowley. Segundo ele, "DUGIN culpa o próprio cristianismo pelo aparecimento das concepções anti-cristãs de A. Crowley’’. É verdade, Dugin responsabiliza mesmo o esvaziamento espiritual do "cristianismo ocidental'' como cenário perfeito para a proliferação de pessoas como Crowley. O autor quer tomar as dores de católico-romanos e anglicanos, estas sim heresias de acordo com a perspectiva cristã-ortodoxa. Parece que Dvorkin não estava tão errado ao apontar as simpatias de Ponkin pelo protestantismo.

 

Enfim, muito mais coisa poderia ser citada, mas a essa altura já deve estar evidente que o texto é uma piada de mau gosto do qual nada, absolutamente nada se aproveita. Além disso, a Quarta Teoria Política foi desenvolvida mais de uma década depois.


A grande questão que resta é a seguinte: Por que alguns cristãos ortodoxos colocam sua fé em segundo lugar quando se trata de defender os projetos de Olavo de Carvalho? Para agradar ao líder da seita, eles trabalham até mesmo com o Pai da Mentira pra desinformar membros da Igreja. 


Nunca é demais lembrar: Dugin é nosso irmão de fé. Já Olavo de Carvalho, o liberalismo ianque, Bozó, Sara Winter e gente semelhante defendem publicamente posições verdadeiramente incompatíveis com a Ortodoxia.


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[1] https://vidaortodoxa.blogspot.com/2014/06/patriarcado-de-moscou-condena-dugin.html

[2] https://iriney.ru/main/dokumentyi/rukovodstvo-missionerskogo-otdela-razoblachaet-samozvanczev.html

[3] ''Olavo tem declarações publicadas em livro dizendo que a Igreja Ortodoxa possui erros em seus ensinamentos, esses erros estando na origem do ''imperialismo russo''.

Os russos seriam imperialistas porque a Ortodoxia seria uma Religião Imperial e o verdadeiro agente histórico por trás do ''eurasianismo''. O grande perigo vindo da Rússia não seria Alexandr Dugin, que não passaria de um instrumento do erro teológico da Igreja Ortodoxa.
Eis a prova nas declarações do próprio Olavo:
''10. O verdadeiro agente histórico por trás do eurasismo
Um exemplo de força histórica que transcende infinitamente as fronteiras e a duração de Estados e Impérios é a Igreja Ortodoxa, da qual o prof. Dugin se diz um crente. Foi ela que deu unidade e conteúdo cultural ao império de Kiev. Sobreviveu a ele quando o centro de poder moscovita instaurou um novo império. Sobreviveu à queda desse império e às seis décadas de terror que se seguiram, e saiu incólume ao ponto de poder inspirar ao prof. Dugin um novo projeto imperial russo. As sucessivas formações nacionais e estatais que apareceram e desapareceram do mapa russo ao longo dessa história são apenas sombras que o corpo gigantesco da Igreja Ortodoxa projeta sobre o mundo oriental, conservando sua unidade de propósitos enquanto as forças políticas surgem e se desfazem no ar como bolhas de sabão. Prof. Dugin: olhe para a sua Igreja, e saberá o que é um agente histórico. As unidades geopolíticas nascem da iniciativa dos agentes históricos e só parecem agir por si próprias porque os agentes genuínos, além de discretos por natureza, atuam num ritmo de fundo, mais lento do que a própria formação e dissolução das unidades geopolíticas.
A força da Igreja Ortodoxa como agente histórico penetrou fundo no cérebro do próprio prof. Dugin, moldando a sua noção “holista” do império teocrático. [...] O projeto eurasiano é o único caminho para a Igreja Ortodoxa se ela não quiser permanecer confinada aos limites da nação russa, fracassando em sua declarada missão como religião universal. Enquanto isso, a Igreja Católica Romana pode se expandir confortavelmente para as últimas fronteiras do Paraguai e da China sem necessidade de carregar um Império em suas costas. E isso é o que acontece de fato, enquanto a Igreja Ortodoxa, através do professor Dugin, está ainda procurando por uma saída para o mundo e não vê outros meios de encontrá-la senão se constituindo em um Império Mundial. Todo o universo de idéias do professor Dugin é um reflexo do drama estrutural, interior da Igreja Ortodoxa. Toda a conversa sobre fronteiras geopolíticas é apenas um arranjo estratégico para tentar, mais uma vez, realizar o impossível sonho de um grande e portentoso agente histórico que, ao escolher ser um religião imperial, se condena ou a permanecer presa em fronteiras nacionais ou dar início a uma guerra mundial.''
Na avaliação de Olavo, a solução está na Igreja Católica-Romana, sendo a Ortodoxia um equívoco de consequências catastróficas [globalismo, império teocrático universal etc.]
Não preciso acrescentar que o mesmo pseudo-filósofo declarou que TODAS as paróquias ortodoxas no Brasil são meros tentáculos e disfarces de tariqas muçulmanas.
Como um ortodoxo pode conciliar sua lealdade a Olavo de Carvalho ao pensamento do sujeito sobre a Igreja Ortodoxa é algo que caberia a Fábio Leite responder e explicar.
Além de olavete, Fábio é também amigo de Sara Winter, uma maluca que resolveu criar um acampamento potencialmente terrorista em Brasília e está sendo investigada pelo STF por ameaças ao Ministro Alexandre de Moraes.
Winter declarou que sua intenção é ''ucranizar'' o Brasil, e que tomou a iniciativa do acampamento por causa de Olavo de Carvalho. A Ucrânia foi um país fracionado por guerras civis impulsionadas pela OTAN.
Não à toa, as recentes operações da PF contra os disseminadores de Fake News tem levado Fábio a uma intensa atividade nas redes sociais, protestando contra a terrível ''arbitrariedade'' do ato e um tal ''golpe'' do STF.
Tudo indica que as ligações de Fábio Leite com Olavo de Carvalho são íntimas demais. Transcendem uma inspiração ideológica, são discipulares. Ele pode ser visto tranquilamente como um representante da seita olavética na Ortodoxia. Talvez até um infiltrado, caso se resolva mexer nesse vespeiro. O que seria um perigo, já que ele é formado num seminário e pode ser ordenado.
Não seria estranho que um seminarista ortodoxo fosse ao mesmo tempo discípulo de um pseudo-guru que acredita que a Rússia é culpada pela tragédia do imperialismo/globalismo e que coloca a responsabilidade desse crime na agência histórica e nas doutrinas da Igreja ortodoxa.
Olavo passou pela tariqa de F. Schuon, que infiltrava seguidores seus em diversas religiões a fim de influenciá-las. A seita possuiria a ''verdade'', e seus adeptos tratariam de ler as doutrinas das instituições religiosas segundo essa ''luz''.
Um possível padre cristão ortodoxo com lealdades nebulosas com um pseudo guru ocultista com ideias fortemente anti-ortodoxas seria problemático para o crescimento da Ortodoxia em nosso país. Como fiéis da Igreja, precisamos estar atentos pra isso.''



quarta-feira, 10 de março de 2021

Lula e o mito do paraíso perdido

 O mito mais estapafúrdio difundido em certo círculos do sistema político-partidário não é o fanatismo em torno de chavões e rompantes toscos de Bozó. E sim a narrativa esdrúxula de um suposto paraíso perdido do governo Lula.



O primeiro mandato do PT, entre 2002 e 2006, foi quase que uma continuação das políticas macro-econômicas de Fernando Henrique Cardoso. Para ser justo com o sapo barbudo, temos de admitir que ele foi muito melhor que seu rival uspiano. Existiram de fato diversos itens em seu governo que o tornavam bem superior a tudo que se viu na destruição nacional empreendida pelo PSDB.

A maior virtude foi conseguir enterrar a ALCA. Conduzida com mão de ferro por diplomatas do nível de um Celso Amorim, o Brasil rompeu com a subserviência ao unilateralismo ianque e se tornou líder na construção de mecanismos multilaterais que poderiam apontar, futuramente, para uma multipolaridade: os Brics, a aposta no Mercosul, os investimentos nos vizinhos, os diálogos da UNASUL. Houve também dedicação ao programa nuclear e à defesa do país.

Mas todas essas iniciativas, por melhores que fossem, sofriam uma restrição muito forte: a base industrial cada vez menor. E nosso processo de desindustrialização era alavancado justamente pela política macroeconômica neoliberal a que Lula sempre esteve abraçado.

É verdade que ele buscou apoiar, principalmente em seu segundo mandato, a construção civil. Mais uma vez, por mais que a existência de políticas industriais seja preferível a política industrial nenhuma, as do governo Lula foram evidentemente insuficientes.



E ele deu sorte. A partir de 2005, as commodities viveram um boom no mercado internacional, permitindo aliviar as contas públicas e dar ao petista a oportunidade de sustentar políticas de transferência de renda que impulsionaram o consumo da ''Ralé" como nunca visto depois do primeiro Plano Cruzado. O país cresceu a um ritmo que não conhecia desde o fim dos anos 1970.

Mas era um crescimento ilusório. Não havia aumento da produtividade, a indústria não participou da festa. Os setores que se expandiram eram os de serviços de baixa qualificação. Aquilo que alguns economistas apontaram como ''economia de shopping''.

Mas o PT vendeu a miragem como símbolo da formação de uma ''nova classe média''. Essa ''Ralé'' e essa classe popular periclitante, que dava ''rolê em shoppings'', e que trabalhava como lojistas, cabelereiros e garçons, seriam a marca da ascensão popular e da nova sociedade igualitária que o PT estaria criando. O próprio critério da divisão das classes em faixas de renda já denunciava toda a ideologia nacional-consumista que estava por trás do olhar petista. Para mostrar que acreditava de fato na estupidez, o PT decidiu realizar um acordo com as principais lideranças evangélicas, abandonando a antiga base católica-romana que foi um dos esteios de construção do partido.

Sim, a força política da IURD e de Silas Malafaia se consolidou no governo Lula. Foi ele quem abriu as portas dos palácios do governo para essa gente. A teologia da prosperidade era a versão religiosa do nacional-consumismo petista. Nesse sentido, o PT caía na esparrela propagandeada por Mangabeira Unger.



Entusiasmado por ter descoberto que a revolução viria do consumo, Lula deu entrevistas dizendo que o brasileiro deveria parar de esperar que a indústria se recuperasse. Que o agronegócio, vendendo carne e soja, poderia sustentar a prosperidade do país e os rolêzinhos em shoppings. Poucas declarações foram tão ridículas e patéticas.

Do mesmo modo, os mecanismos de transferência de renda e os empregos precários em um comércio de baixa qualificação não possuíam base para alterar em nada a estrutura perversa de propriedade e renda. Quem mais perdeu na brincadeira foi a baixa classe média e as classes populares mais estabelecidas, açoitadas pela inflação de serviços que se originava por causa de um consumo desenfreado sem base produtiva real. A concentração de propriedade nas classes mais abastadas continuou, fortalecidas pela financeirização dos agentes econômicos, que atingiu não só a pequena burguesia, mas mesmo as indústrias, que, afinal, tinham de sobreviver de alguma forma.



Pouco adiantou também construir universidades a rodo pelo país afora. Sem emprego para absorver a mão de obra que saía dessas instituições, tudo o que se conseguia era aumentar o número de desempregados de diploma nas mãos e acentuar a perda de cérebros para outros países.

As pequenas mudanças de rumo econômico no segundo mandato, com a adoção de políticas anticíclicas de matiz keynesiano, não alteraram em nada o quadro geral. O Brasil dependia cada vez mais da exportação de matérias primas e do agronegócio, sua economia se tornava refém do rentismo [financeirização] e de um poderoso cartel de bancos, os mecanismos de financiamento do Estado eram viciados e uma bomba a explodir a curto prazo, o consumismo não possuía base produtiva real, a desigualdade de propriedade e renda estava intacta.

Em meio a essa brincadeira, Lula deu voz no governo a todas as ONGs pós-modernas e identitáias liberais que destruíram a imagem da esquerda diante da população. Financiamento de paradas gays, abraço à ideologia de gênero, ''marchas das vadias'' que invadiam igrejas, tentativas de legalizar o abortismo por meio do STF: a parafernália completa da lacração encontrou terreno propício para proliferar no pântano petista.



É verdade que Lula não destruiu o Estado, como o funesto PSDB. Ele revalorizou o serviço público. Mas não o suficiente para retirar a Petrobrás da Bolsa de Nova Iorque, por exemplo, ou para reverter a política de terceirização dos quadros da empresa [os terceirizados eram maioria no fim da era Lulla-lá].

No terreno político, o petista tentou o mesmo que Bozó: não depender do Centrão. Não queria dar cargos em estatais pra todo aquele fisiologismo. Para sobreviver, inventou o mensalão, crime a que Bozó não esteve disposto. Depois que ''deu ruim'', fez também o mesmo que seu atual rival, se rendeu por completo às oligarquias parlamentares. A roubalheira que se sucedeu nos anos posteriores foi mera consequência desse arranjo. O Rio de Janeiro, governado por Cabral, Picciani, Eduardo Paes etc., todos com forte apoio lullista, sabe muito bem o que é isso.

Lula fez um governo muito melhor do que Fernando Henrique e Bozó. Mas isso porque está sendo comparado com dois dos piores governantes que já tivemos em nossa história. De modo geral, seus mandatos não passaram de uma grande perda de tempo. O Brasil perdeu tempo com Lula. Saímos de seu governo piores do que entramos, delirando com um inexistente potencial revolucionário do bolsa-família, dando postos chaves da política para Edir Macedo, acreditando em unicórnios e elefantes cor-de-rosa que nos tornariam uma potência mesmo sem indústria, copiando as políticas identitárias do partido democrata ianque, e criando um fosso difícil de ser superado entre a sensibilidade do partido governante e a população de valores conservadores.



Não há paraíso perdido nenhum. O governo Lula foi capítulo da Nova República, elo que, de Fernando Henrique, nos levou ao Reino dos Bozós. Seu sentido profundo é a camisa de força liberal que nos agrilhoa nas últimas quatro décadas.

Quem pensa qualquer coisa diferente disto, ou é liberal como Lula, ou está fantasiando em total desconexão com a realidade.