domingo, 12 de fevereiro de 2023

FAROESTES INDISPENSÁVEIS, PARTE 4: FORT APACHE




 NÚMERO 5: Fort Apache ["Sangue de Heróis''], de 1948 -->


Minha homenagem à famosa ''trilogia da cavalaria'', que inclui ''She wore a Yellow Ribbon'' [Legião Invencível], de 1949; e ''Rio Grande'' [Rio Bravo], de 1950, mas se sustenta sozinho: dirigido por Henry Ford e reunindo John Wayne, Henry Fonda e Shirley Temple, não podia ser nada menos que uma obra prima.


Dois elementos chamam atenção em Fort Apache: Primeiro, a obra rompe com o estereótipo comum no gênero até então, e que identificava os indígenas com o caos e a selvageria, ameaça sempre presente no caminho dos colonos e aventureiros que desbravavam e civilizavam o Oeste. Os Apaches de John Ford não são o real perigo nem os verdadeiros antagonistas. Esse título cabe, antes de tudo, ao comerciante da reserva indígena, que sintomaticamente é o representante do governo dos Estados Unidos e cuja autoridade é respeitada até pelos oficiais superiores do Exército. O comerciante/governo se aproveitava da boa fé dos nativos para cometer abusos econômicos e espalhar vício entre os mescaleros. Quando os líderes apaches em pé de guerra [Cochise e Geronimo são incluídos no roteiro] se encontram com o comandante Thursday [vivido por Henry Fonda] para explicar a situação, colocam a culpa no comerciante: ''O Grande Pai Branco nos prometeu proteção, mas ele nos trouxe uma morte lenta'', declaram; e resumem o papel do comerciante da reserva, explicando porque voltaram às armas: ''Ele é pior do que a guerra. Esta mata homens, mas ele mata as crianças, as mulheres e os velhos.''





A responsabilidade também recai na liderança militar ianque. O Tenente-Coronel Thursday, que acaba de se mudar para o longínquo Fort Apache na companhia da filha Filadélfia, entende sua escolha para Comandante da guarnição como uma perda de status. Era uma época em que oficiais superiores "cumulavam glórias" nas guerras indígenas, e Thursday se sentia chutado para escanteio, ''liderando homens contra mosquitos e sapos''. O Tenente-Coronel se lamenta durante a apresentação aos oficiais do Regimento: enquanto os Sioux eram guerreiros contumazes, sempre dando trabalho e oportunidade de brilho para os generais que os combatem, eles estavam perdidos em terra dos ''decadentes'' e ''covardes'' apaches. O contraponto a Thursday vem do Capitão York [interpretado por John Wayne], o Comandante anterior: Os apaches não seriam covardes, longe disso, e quando invadidos pelos Sioux em certa ocasião, os teriam colocado para correr. Este primeiro discurso em defesa dos indígenas seria repetido por Wayne ao longo do filme.


John Ford usa Thursday para desconstruir, à sua maneira, o mito do heroísmo da liderança militar da Cavalaria nas Guerras Indígenas. O oficial que buscava antes de tudo glória militar ressoa o General Custer; e assim como o personagem histórico, leva seus homens para o desastre de uma nova Batalha de Little Birghorn. O Comandante sanguinário ecoa racismo contra os "selvagens seminus", com os quais não via necessidade de manter acordos ou de respeitar a palavra dada, e também trai seus subordinados mais próximos. Sua arrogância leva à derrota trágica do Regimento frente aos mescaleros. Ford aproveita para expor a fabricação da narrativa que sustenta o mito das Guerras Indígenas. Anos depois, o falecido Thursday é mencionado e propagandeado nas escolas do Leste do país como um herói, excepcional soldado e exemplo, imagem construída em torno do General Custer por muitas décadas. Nenhum de seus oficiais nega a narrativa oficial, acreditando que ela era necessária para o Regimento e para a nação.




Mas Thursday tampouco é retratado de modo unidimensional. O racismo, a arrogância, a sede por glória e reconhecimento, não o impedem de atos nobres, inclusive em relação a desafetos. Com ordens de eficácia dúbia, ele intencionalmente salva a vida do Capitão York e escolhe morrer junto de seu alto comando. Ainda que desgostoso com o relacionamento entre sua filha Filadélfia [personagem de Shirley Temple] com o Tenente Michael O'Rourke [vivido por John Agar], dá ordens que protegem a vida do rapaz ao perceber o perigo em que metera seus homens. Suas motivações são complexas, a hybris não lhe tira a honra.


O segundo elemento fundamental da obra é a maneira como John Ford retrata o cotidiano do Regimento. O passatempo das mulheres que vivem ao lado dos maridos e pais militares, o treinamento de recrutas, a diversão dos soldados, os costumes de dança, a corte de um jovem a uma senhorita atraente, serenatas. A vitalidade do Forte se apresenta diante de nossos olhos, com personagens secundários bem desenvolvidos e trabalhados, e sem que se esqueça de citar também, ainda que por alto, determinados costumes indígenas. Por fim, uma exaltação dos valores do soldado comum, cujo nome não é citado nos livros de História, mas que, segundo o Capitão York, é a a verdadeira alma que garante continuidade às Forças Armadas. ''Eles vão lutar por 30 moedas por mês e um pouco de uísque, mas dividirão a última gota da garrafa'', nas palavras de Wayne.




Um filme que critica as motivações do alto oficialato militar sem no entanto deixar de louvar a voz do homem comum que veste a farda; que projeta honra, coragem, capacidade estratégica e resistência legítima nos líderes indígenas, inconformados com as promessas não cumpridas do ''homem branco''; que espelha o comportamento, ainda que idealizado, de diversas categorias sociais dos Estados Unidos do século XIX; e aponta para o contraponto necessário entre o mito e a história na ação e na memória ''coletiva''.

sábado, 11 de fevereiro de 2023

OS DELÍRIOS DA TORCIDA ARCO-ÍRIS, PARTE 1: A TORCIDA DO FLAMENGO FOI CRIADA PELA REDE GLOBO NOS ANOS 1970?

“Poucas instituições serão tão abrangentes, nacionalmente, quanto o Flamengo — a Igreja Católica, sem dúvida, é uma delas, e, talvez o jogo do bicho. E olha que o Flamengo não promete a vida eterna e nem o enriquecimento fácil. Ao contrário, às vezes mata de enfarte e, quase sempre, só dá despesa. Mas uma coisa ele tem em comum com a religião e o bicho: a Fé! Por onde vai, o Rubro‐Negro arrasta multidões fanatizadas”.

Nelson Rodrigues




Aldeia Kariri-Xocó, interior de Alagoas, se prepara para acompanhar mais um jogo do clube de coração: "Quando o Mais Querido joga, nos reunimos e vamos assistir na casa de nossos familiares, quando vencemos comemoramos até altas horas da noite cantanto Toré, e quando prde vamos cada um para sua casa tristes, porém sem deixar a confiança abalada", diziam em 2009.


Torcida arco-íris é como os rubro-negros, principalmente os da antiga, chamam a "torcida anti-Flamengo". Dizem que é a segunda maior do Brasil, o que é discutível. Mas certamente é uma das mais criativas, capaz de elaborar uma profusão de lendas urbanas, fábulas, teorias da conspiração etc. com o intuito de explicar o sucesso perene d'O Mais Querido, que lhes dói amargamente n'alma.

Falarei sobre alguns dos delírios mais recorrentes para servir de referência para os historiadores do esporte, cada vez mais interessados em fenômenos de histeria em massa, como é o caso das ideias birutas da torcida arco-íris, ou então para aqueles que gostem de se divertir lendo sobre crenças absurdas e devaneios alucinados.



INSANIDADE 1: O Flamengo tinha uma torcida pequena antes de um suposto plano maligno elaborado pela Rede Globo nos anos 1970.


Já testemunhei gente educada, culta e informada vociferar essa teoria maluca diante de estupefato público, como quem revelava mistérios ancestrais e professasse verdades arqui-evidentes.

No campo estrito da razão e da análise dos fatos, a narrativa não tem o mínimo sentido. A televisão no Brasil tem uma história. E em 1970, só 20% dos lares tinham um aparelho de TV [metade deles nas cidades de Rio e de São Paulo]. A televisão só se torna efetivamente presente na maior parte dos domicílios pobres ao longo dos anos 1980. Mais ainda: o televisionamento de campeonatos não era comum até o fim da década de 1980. Antes disso, só partidas esporádicas e avulsas eram transmitidas. O marco da entrada da TV na difusão dos campeonatos é a Copa União em 1987. Acompanhar campeonatos sistematicamente pela televisão só se tornou prática comum nos anos 1990. Até então, o rádio era predominante, principalmente nas classes mais baixas.

[Na verdade, a predominância das transmissões de TV, a maior parte delas monopolizada pela TV Globo, tem a ver com nacionalização das torcidas paulistas, um fenômeno pós-1980. Mas este é outro papo.]


O Flamengo assumiu e revalorizou diversos estereótipos preconceituosos com que os adversários se referiam à popularidade do clube entre as classes "subalternas" e "perigosas": Time do Urubu e da Festa na Favela.


Ora, a torcida do Flamengo já era dominante nos estádios muito antes disso. O rubro-negro carioca nunca foi brilhante no Robertão, que entre 1967 e 1970 foi o embrião ou preparatório para a criação do Campeonato Brasileiro de Clubes. Era período de penúria financeira e técnica d'O Mais Querido. Ainda assim, o flamengo foi o clube que teve a melhor média de público nas quatro edições do torneio. Não é preciso recordar que a TV Globo só foi fundada em 1965, e estava longe de ser a Vênus Prateada líder de audência que se surgiria em meados da década seguinte. E que quase ninguém tinha aparelho de TV na época. E que os campeonatos tampouco eram televisionados.

As médias de público do Flamengo eram constantemente as maiores do Maracanã desde a fundação do estádio. As massas mobilizadas pelo Rolo Compressor dos anos 1950 deram à "Magnética" o status de "dona do Maracanã", algo reconhecido até por adversários: Nílton Santos explicou diversas vezes que levou Garrincha para o Botafogo porque não queria nem imaginar o que ele faria caso jogasse com "o apoio da massa rubro-negra". Isto em 1953.

Dos dez maiores públicos em confrontos de clubes na História do Maracanã [ou seja, deixando de lado as partidas que envolviam a seleção brasileira], o Flamengo esteve envolvido em nada menos que nove deles. Quatro antes de 1970.

As pesquisas de opinião não eram tão confiáveis no passado quanto depois da redemocratização. Tampouco eram nacionalizadas. Ainda assim servem de parâmetro para cidades específicas. Ora, a primeira grande pesquisa de torcidas no Rio de Janeiro, a do Instituto Gallup em 1948, mostrava o Flamengo como time de preferência de 42,5% dos cariocas, muito à frente da segunda colocada [a do Fluminense, com 23,5% das respostas]. O Rio de Janeiro era a maior cidade do país então.


Revista Placar de dezembro de 1971 comenta a pesquisa de opinião Gallup, mostrando espanto com o crescimento da torcida do Flamengo mesmo em época de vacas muito magras: um fenômeno cultural e nacional que se explica em âmbito próprio.


A percepção do gigantismo da torcida do Flamengo era algo dado para todos que acompanhassem não só os estádios nos anos 1930 e 1940, como também as festas populares nas ruas quando dos títulos do clube, e também na atração gerada nas excursões da equipe pelo Brasil. Daí que escritores e jornalistas como José Lins do Rêgo e Nelson Rodrigues tratassem o Flamengo como o time da massa já nessa época.

Por fim, o epíteto de "Mais Querido do Brasil" é ainda anterior e remonta a uma das maiores conquistas da história do clube, a Taça Salutaris, primeira e única. Ela foi entregue ao Flamengo depois do concurso realizado pelo Jornal do Brasil em todo o país para descobrir qual a equipe com maior simpatia nacional. Os votos, enviados a partir de cupons disponibilizados em edições do jornal, vinham principalmente da Capital Federal, mas também dos estados vizinhos de São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo. Dos poucos mais de 736 mil votos recebidos pelo JB, 254.851 escolheram o rubro-negro carioca.

Não é possível desprezar a representatividade do concurso, que teve grande impacto. O país tinha menos de 40 milhões de habitantes, apenas um quarto deles vivendo na área urbana. O número de votos enviado para o JB é bastante relevante, e indicava de fato a imensa popularidade do Flamengo já à época.


Taça Salutaris, conferida pelo Jornal do Brasil em 1927 ao clube Mais Querido do Brasil


Sempre se procurou resposta para o tamanho e a difusão da torcida rubro-negra pelo país. O peso de ser um clube do Rio de Janeiro, capital do Império e depois primeira capital da República, além de primeira metrópole do Brasil e centro difusor de certa ideia de nacionalidade, está sem dúvida por trás da massificação do Flamengo. Mas não explica porque este clube e não, digamos, o Botafogo ou o Fluminense.

Alguns remontam a simpatia do Flamengo aos treinos que fazia na Praia do Russell. Outros, ao espírito festeiro e inclusivo da República de atletas na sede do clube, menos elitista que seus principais rivais. As cores vermelha e preta também entram no pacote de explicações, por serem ligadas a movimentos anarco-sindicalistas que, nas principais metrópoles brasileiras, foram uma das fontes de elaboração do imaginário do trabalhismo. Ou por serem as cores de Exu e suas energias, bastante poderosas na mentalidade do povo carioca.

O que se sabe ao certo é que muitos rubro-negros famosos e a própria diretoria do clube buscaram associar a identidade do Flamengo a uma identidade nacional possível: um Brasil mestiço, que integrava ricos e pobres, que era alegre e confiante. O principal nome deste projeto é o Presidente José Bastos Padilha, talvez o mais importante do clube, e que dá nome ao Estádio da Gávea, quando a sede no bairro foi erguida por ele nos anos 1930.

Esta identidade rubro-negra é reconhecida e, ainda que implicitamente, reforçada e reproduzida pelos próprios preconceitos sociais que os rivais levantam em relação ao rubro-negro: é o clube dos "marginais", que com camisa do Flamengo assaltariam nas ruas; é o "time do urubu", isto é, dos pretos; é o preferido dos pobres; clube dos "espertos e malandros"; time "da favela". Os rubro-negro são "arrogantes", fazem a festa antes mesmo do título garantido.

Todos estes estereótipos, criados ao longo de diversas décadas, repercutem o caráter eminentemente popular do Flamengo, que independe dos momentos de maior ou menor poderio da equipe. Projetos midiáticos de crescimento da própria torcida foram elaborados por São Paulo e Corinthians nas duas décadas passadas, em época em que o rubro-negro carioca estava mergulhado em dívidas e mal conseguia se segurar na primeira divisão do Campeonato Brasileiro. Mas todas as pesquisas realizadas apontavam a contínua tendência de crescimento nacional da torcida do Flamengo, principalmente entre os mais jovens, o que levou Márcio Braga, um dos mais famosos ex-Presidentes d'O Mais Querido, à declaração lapidar em entrevista no início da década passada: "É um fenômeno cultural".

E organicamente nacional, para desespero da Arco-Íris.


Mosaico da torcida rubro-negra dá a chave para a compreensão do gigantismo da torcida do Flamengo: Somos uma Nação


Sejam quais forem as raízes da força do Flamengo no imaginário do brasileiro comum do Oiapoque ao Chuí, nada tem a ver com Roberto Marinho, a TV Globo ou conspirações tenebrosas elaboradas por engravatados em salões perfumados do Jardim Botânico.

A resposta talvez venha das arquibancadas pelo grito da própria Magnética: Somos uma Nação!

domingo, 5 de fevereiro de 2023

FAROESTES INDISPENSÁVEIS, PARTE 3



NÚMERO 4: Red River [''Rio Vermelho''], de 1948 --> O espaço mítico do Velho Oeste permite que se conte suas histórias a partir de múltiplas vozes e perspectivas. O ''barão do gado'' é uma dessas figuras mais das vezes malévola que faz papel de sombra ameaçadora a engolir comunidades inteiras, aterrorizando pequenos posseiros e contratando gangues de caubóis e ladrões. Mas nessa obra monumental do lendário cineasta Howard Hawks, ele se torna o pivô de uma jornada heroica, a abertura da trilha de Chrisholm, essencial para que rebanhos vindos do Texas alcançassem as ferrovias do Kansas, de onde partiam para alimentar os vitoriosos da Guerra Civil na Costa Leste.


''Red River'' une qualidades difíceis de serem sintetizadas: o épico trata da vida dura de caubóis em meio a uma viagem angustiante repleta de perigos de morte, um retrato da unificação do mercado americano em torno do Leste industrializado após o fim da Guerra Civil, uma aula de sociologia sobre as hierarquias no interior da vida rural americana, e ao mesmo tempo uma tragédia clássica que consegue extrair o melhor de atores até então subestimados -- ou porque não haviam ainda conquistado as telas [Montgomery Clift] ou porque seu talento não havia sido devidamente explorado [John Wayne].

Thomas Dunson é um homem duro e de fortes convicções, que não volta atrás depois de tomar uma decisão. Sua obsessão por se transformar num grande proprietário o leva a abandonar sua caravana, deixando para trás a mulher amada. Já nas primeiras cenas se estabelecem traços definitivos da personalidade do anti-herói vivido por Wayne. A promessa de retornar para buscar a amada se revela um terrível erro, que não escuta os conselhos do fiel amigo ''Groot'' Nadine, que por sua vez se cala diante da teimosias irredutível de Dunson.
Thomas consolida seu domínio sobre grande porção de terra no Texas ao roubá-la de 'Don Diego' pela força das armas. A violência do anti-herói faz referência aos conflitos de fronteira e os tratados que garantiram aos americanos o controle da região. O grupo se completa com a chegada de um menino sobrevivente de um ataque indígena à caravana: Matt Garth, vivido na fase adulta por Montgomery Clift, e é criado como filho pelo grande proprietário.

Com as premissas estabelecidas, o filme dá um salto temporal de catorze anos, para o fim da Guerra Civil. Dunsan, Groot e Matt comandam vastos pastos, um bom número de caubóis e dez mil cabeças de gado. Mas o mercado do sul não consegue absorver a produção do rancho ''River D''. A solução é abrir uma perigosa e incerta rota para as ferrovias do Missouri para escoar o rebanho para as ricas cidades do Leste. A viagem promete meses de perigos, que vão desde a possibilidade de estouros da boiada, o enfrentamento de condições climáticas extremas e ataques em sua passagem pelo território indígena [Oklahoma].

A pior ameaça, no entanto, é o temperamento do próprio Dunson, que mergulha na tirania e na paranoia. A transformação do líder em tirano é tratada de maneira soberba: Wayne começa o filme com um chapéu branco, e agora tem um negro; seus cabelos se tornam grisalhos; um tiro na perna torna sua caminhada torta; vive agora abraçado a uma garrafa de uísque.

As dificuldades da jornada criam as condições para motins, resolvidos pela força e pela aplicação de uma rotina de exaustão que impeça qualquer fuga dos empregados. O medo reina no grupo e o conflito recrudesce quando se descobre uma rota mais fácil para a maravilha tecnológica da ferrovia e que evitaria o caminho mais longo para o norte. Mas Dunson não muda suas decisões. Sua teimosia o mergulha em um estado de semi-loucura provocada pelo excesso de álcool e ausência de sono. A rebelião completa é evitada por um desafio menor mas ainda assim muito mais doloroso, com o enfrentamento entre Matt e seu pai, uma relação amorosa que se desenvolve na grande linha trágica do filme: o homem que pretende alcançar a imortalidade através do filho, o filho que se sente compelido a se provar para o pai, a confiança que se esvai por meio de uma traição motivada pela intenção de proteger a vida de todos, incluindo aí propriedade do ''barão do gado'', ameaçada pela hybris.

A grandiosidade da narrativa tem seu ponto fraco na inclusão de uma personagem feminina, nova versão do tipo clássico da ''prostituta de bom coração'': Tess Millay, cuja chegada confere tons mais psicanalíticos à trama. É ela também que está no meio da resolução do conflito entre pai e filho, em desfecho criticado por muitos como um anti-clímax.

Planos gerais exuberantes, um realismo excruciante na condução do gado pela trilha, os aspectos históricos, um roteiro magistral e atuações grandiosas tornam ''Red River'' um dos maiores clássicos do Faroeste e uma obra magna da carreira de Hawks, que ainda teria fôlego para se superar dez anos depois [mas essa é outra história]. John Wayne, por sua vez, mostra capacidade insuspeita de sair da zona de conforto, se preparando para a consagração como ator nas décadas seguintes.