segunda-feira, 22 de junho de 2020

O Projeto Nacional de Ciro e o Imperialismo, ou: Nova Roma [Pátria Grande] ou Suécia Tropical?


''O certo é que nossa latino-americanidade, tão evidente para os que nos olham de fora e veem nossa identidade macroétnica essencial, só ainda não faz de nós um ente político autônomo, uma nação ou uma federação de estados nacionais latino-americanos. Mas não é impossível que a história venha a fazê-lo. A meta de Bolívar era opor aos estados unidos setentrionais os estados unidos meridionais. A Pátria Grande de Artigas, a Nuestra América de Martí apontam no mesmo rumo.''

Darcy Ribeiro, "América Latina: a Pátria Grande"






No texto anterior, discordei da abordagem do professor Nildo Ouriques sobre o papel do distributismo, e de modo mais amplo, do catolicismo-romano na tradição trabalhista. Também considerei um exagero a afirmação de que “Projeto Nacional”, recém-lançado livro de Ciro Gomes seria um deslocamento do significado do próprio Trabalhismo e sua substituição pelas ideias de Mangabeira Unger. Vocês podem ler minha análise nesse texto: Ciro, Nildo e o Trabalhismo.

No entanto, o ponto mais fundamental da crítica de Ouriques se apóia em um dos pilares do pensamento político de Getúlio, Jango, Brizola e das maiores lideranças do nacionalismo popular brasileiro: o problema do imperialismo e da geopolítica sul-americana.

Na obra, Ciro Gomes finca o eixo de sua proposta na ideia de Estado-Nação. Segundo ele, tanto o liberalismo quanto o marxismo eram internacionalistas demais para entender o papel fundamental do nacionalismo e do Estado na consecução da soberania popular [1].

Não importaria se esse ou aquele grupo se definia como de direita ou de esquerda, conservador ou progressista, religioso ou materialista: o verdadeiro corte se dava entre patriotas e apátridas.

A abordagem está de pleno acordo com a tradição trabalhista, principalmente com o getulismo e o brizolismo. A carta-testamento do imortal Presidente, que nunca se disse de direita ou de esquerda, se referia a fortes inimigos estrangeiros, forças econômicas e políticas que seriam obstáculos ao esforço de abrir caminho para a realização de nossa grandeza.

Brizola nunca deixou de denunciar o processo de espoliação com que tentavam conter nosso dinamismo. Para o velho caudilho, existia uma elite apátrida, que ele chamava de ''anti-povo'', aliada do sistema internacional, e que traía os destinos do Brasil. Assim, os interesses estrangeiros possuíam aliados dentro do nosso país. [2]

Ele negava também que o trabalhismo fosse ramo da esquerda ou da social-democracia do Velho Mundo, ainda que o PDT tenha aderido à Internacional Socialista. Mais uma vez, o corte não era entre liberalismo e marxismo. Era Pátria ou nada: o projeto europeu sempre foi imperialista, enquanto nós estávamos na semi-periferia do ''sistema-mundo'' capitalista e por isso precisávamos de uma perspectiva diferenciada na luta por nossa independência plena.



Nada disso parece escapar a Ciro em seu livro. E, no entanto, ele se furta a tratar mais detidamente as necessidades geopolíticas da América do Sul e o problema do Imperialismo. Pior ainda, comete o erro de erigir o Estado de Bem Estar Social da Suécia como referência do seu projeto. Ora, a Suécia é uma plutocracia, cuja qualidade de vida foi construída em cima do imperialismo já mencionado. [3]

Há uma contradição cravada no âmago de ''Projeto Nacional". Um louvor à Suécia e ao mesmo tempo o eco das palavras de Darcy Ribeiro, segundo o qual o Brasil tem de construir uma civilização singular, a Nova Roma, em união com os demais países da América Latina e se contrapondo à América anglo-saxã. [4] Nas palavras de Darcy, o Estado-Nação desembocava na Pátria Grande.

Ciro defende a integração do nosso subcontinente, citando inclusive a Constituição Federal, mas não mergulha nas ''águas mais profundas'', e trata esse telos quase que entre parênteses, às pressas, sem maior desenvolvimento.

A união cultural, política e econômica da América do Sul é a chave para que escapemos das intervenções consecutivas que os ianques realizam entre nós a fim de manter sua hegemonia. Rumar para o interior, ocupando o território, e se aliando com as potências terrestres da Argentina e do Chile é uma das vias para o Pacífico e para a independência. [5] 

Não há saída sem colocar a geopolítica, e dentro da geopolítica o anti-imperialismo, no coração de um projeto nacional-popular. Obviamente, a integração territorial e cultural não pode deixar de lado os aspectos econômicos, já que não nascemos para ser periferia, e sim um polo de poder de fato e de direito.

Nesse ponto, como bem nota o professor Nildo, faltou bolivarianismo. Não por que devamos imitar essa ou aquela política miúda de um ou outro país que se diz bolivariano, mas no sentido imprescindível da amalgamação sul-americana e propostas concretas para realizá-la.


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[1] A articulação entre marxismo e nacionalismo se demonstrou um problema histórico para o socialismo brasileiro, e um dos obstáculos mais fortes do nacionalismo revolucionário.

[2] O diagnóstico do Imperialismo é um dos meios mais eficazes para sanar as diferenças entre marxistas e nacionalistas na política sul-americana. A figura de Brizola se torna capital nessa questão.

[3] Uma avaliação que se encontra presente inclusive no pensamento de Mangabeira Unger, que acusa a Nova República de ter fracassado, dentre outras coisas, por se limitar a elaborar um projeto de “Suécia Tropical”.

[4] Não se trata de uma confusão banal, pois  internacionalismo social-democrata leva a esquerda brasileira a gravitar em torno dos interesses do Deep State ianque, tal como representados no Partido Democrata. De maneira ingênua, muitos intelectuais desse campo progressista leem a realidade brasileira como mero reflexo de embates da sociedade estadunidense, se aliando de maneira subordinada aos projetos dos Clinton, dos Obama e outros representantes do imperialismo perfumado. Na geopolítica, a dominação de um país é auxiliada pela construção de justificativas ideológicas e “civilizatórias” para sua posição hierarquicamente superior, quando então a dominação imperial se torna em hegemonia. O “obamismo” é uma das expressões recentes dessa característica da estratégia ianque, uma armadilha em que muitos supostos revolucionários caem.

[5] O temor norte-americano de integração sul-americana liderada pelo Brasil, e levada a efeito de leste para o Oeste, com união das costas Atlântica e Pacífica do continente, bem como da Bacia do Prata e da Amazônia, sempre foi explicitada entre os principais elaboradores da geopolítica dos Estados Unidos.

sábado, 13 de junho de 2020

Ciro, Nildo e o Trabalhismo, ou: como Ouriques mirou em Mangabeira e acabou atacando a tradição trabalhista



''A propriedade privada é tão boa que a queremos para todos''
Leonel Brizola




Um dia após seu lançamento, o livro ''Projeto Nacional: o Dever da Esperança", de Ciro Gomes, foi criticado em tons fortes pelo professor Nildo Ouriques, conhecido político nacionalista filiado ao PSOL. No canal do Youtube “Duplo Expresso”, o deputado vaticinou que na obra não há qualquer modelo alternativo para o país. O que Ouriques quer dizer, de fato?


Fora algumas apreciações diretas sobre o pedetista, a maior parte das quais injustas [1] -- como as alegações de que não há uma crítica ao Plano Real ou ao PT no livro, o que é falso --, o verdadeiro problema do deputado não é com Ciro, e sim com Mangabeira Unger, cuja influência ele considera imperdoável.


Ora, eu também tenho diversas reticências contra o ''scholar de Harvard''. Quando Dilma tentou emplacar o ''Pátria Educadora'', fundamentada nas ideias de Mangabeira, escrevi um texto em que levantei diversas ressalvas à perspectiva por trás do plano petista: [Leia nesse link: O Projeto de Brasil de Mangabeira Unger]


Unger adotava a falácia lulista sobre a emergência de uma ''nova classe média'' a partir da ''economia de shopping'' da Era PT, uma nova categoria social formada por mestiços evangélicos cujo perfil religioso seria similar ao do protestantismo individualista nos Estados Unidos. 


Mas nem existia uma ''nova classe média'', nem o pentecostalismo brazuca pode ser entendido por uma abordagem weberiana [2], o que tornava as bases do projeto um nonsense completo.


Além disso, há nele uma tendência, mais ou menos implícita, mais ou menos consciente de acordo com a situação, a ler a experiência civilizatória brasileira como análoga à ianque -- um vício recorrente em intelectuais brasileiros. Em entrevista recente, chegou a dizer que não havia país mais parecido conosco do que os EUA, um disparate completo [3].


[Não vou me alongar sobre esse tema, mas por justiça a Unger, devo dizer que há livros seus em que ele é mais sutil nessa comparação, embora não se livre nunca dessa referência, que, no fundo, é de toda deletéria.]

Só que a inconformidade de Ouriques com "Mangaba", como ele o chama, não vem, aparentemente, de seus limites e defeitos mais evidentes, e sim de alguns de seus elementos mais certeiros. “Não existe Colonialismo Mental”, declara Nildo, citando o título de um dos livros do professor de Harvard cujo impacto mais transparece nas páginas de Ciro.

Mas nos termos colocados por Mangabeira, não só existe um colonialismo mental, como se trata de fenômeno determinante na vida do país. Ele se expressa pela dissociação entre nossas elites, sempre céleres para copiarem instituições e modelos estrangeiros, e a cultura do povo, que é singular, diversa e única em seu desenrolar histórico. 


Ora, um exemplo dado por Unger de esquema importado pelas elites para interpretar e organizar o Brasil segundo parâmetros alienígenas é justamente o marxismo desposado pelo professor Nildo. O marxismo é descrito por Mangaba como uma espécie de fatalismo universalizante, uma fantasia de que teríamos de seguir, necessariamente, os passos sociais e institucionais vivenciados por outras sociedades.

Ouriques não esconde ser um marxista que compreende o trabalhismo como uma via brasileira para a construção do socialismo. Filiando-se a essa ala nacionalista, se sente incomodado que Ciro trilhe um caminho diverso. 

Seria uma posição totalmente legítima não fossem os erros que o psolista atribui ao livro "Projeto Nacional", acusando-o de “ruptura com a história do Trabalhismo”. Para o deputado, as ideias de Ciro são quase que um ovo de serpente colocado no seio do PDT por um professor de universidade ianque, desvinculado dos debates internos ao próprio partido. 

A avaliação está completamente equivocada, e basta citar dois exemplos:

Em primeiro lugar, não fosse o repúdio de Ouriques aos escritos de Unger, que ele qualifica de “intelectual de quinta categoria”, teria de reconhecer que concorda com o autor d’O Colonialismo Mental na crítica à social-democracia europeia. 

Mangabeira denuncia o projeto da Nova República, liderado por PT e PSDB e centrados no mito da “excepcionalidade paulista”[4], como escravidão ao modelo da “Suécia Tropical”. Nildo poderia se abraçar ao acadêmico de Harvard nesse ponto quando critica Ciro, acertadamente, de ainda usar esse referencial, como se ele não fosse a construção de uma Plutocracia, que depende, para sua realização, da permanência do Imperialismo [5].

Em segundo lugar, e ainda mais importante, o pedetista defende a criação de uma nova burguesia pelo Estado, já que a velha classe proprietária brasileira caiu no abismo do rentismo e da conciliação com interesses estrangeiros. Nildo, como bom marxista, não se conforma e acusa Gomes de ter caído na esparrela do empreendedorismo “dos emergentes”, vendida por Mangabeira.




Mas há uma diferença muito importante com a visão de Unger sobre um suposto surgimento de uma “classe média evangélica”: a proposta de Ciro se dá nos marcos da Doutrina Social da Igreja e do distributismo, tal como deixado explícito nas páginas de "Projeto Nacional":

Igualmente, o progressismo do século XXI deveria defender a iniciativa privada e o microempreendedor do poder sem limites dos grandes conglomerados e corporações. Da mesma forma, deveríamos defender a democratização e a generalização da propriedade privada, e não sua posse pelo Estado, porque hoje vivemos num mundo em que cidadãos em suas casas podem ser cada vez mais proprietários de bens de produção. Essa também é uma revolução que nossa sociedade está começando a experimentar e que acaba não com o trabalho, mas com os empregos. Em vez da oposição à propriedade privada de alguns bens de produção, devemos lutar é por sua universalização.’’

Sobre o Trabalhismo, escreve Gomes:


Ele é também a materialização brasileira da Doutrina Social da Igreja e tem essa intenção de origem. Considere, por exemplo, este trecho: “É necessário que mercado e Estado ajam de concerto um com o outro e se tornem complementares. O livre mercado pode produzir efeitos benéficos para a coletividade somente em presença de uma organização do Estado que defina e oriente a direção do desenvolvimento econômico, que faça respeitar regras equitativas e transparentes, que intervenha também de modo direto, pelo tempo estritamente necessário, nos casos em que o mercado não consegue obter os resultados de eficiência desejados e quando se trata de traduzir em ato o princípio redistributivo”.25 Poderia ter saído de uma obra do trabalhista Alberto Pasqualini ou de alguma conferência de Keynes, mas é tão somente um excerto da Doutrina Social da Igreja. Essa comunhão entre a luta por justiça social e o cristianismo caracteriza o trabalhismo desde seu início. Ele advoga um modelo político e econômico que equilibra a garantia da propriedade privada com sua função social. Esse equilíbrio se expressa de forma muito feliz na famosa frase de Leonel Brizola: “A propriedade privada é uma coisa tão boa, que a queremos para todos”. Apresenta-se como uma alternativa tanto ao denominado “socialismo real” quanto à tradição econômica liberal. Continua a ser a verdadeira alternativa nacional ao “petucanismo”, a autodenominada “esquerda” democrática, que quando chegou ao poder aderiu ao neoliberalismo com maior ou menor força.’’


Atingimos aqui o cerne da nossa questão:

E evidente que ela não passou desapercebida pelo professor Ouriques. Daí sua declaração de que Ciro está “flertando com o Papa Francisco I”, sua defesa de que os trabalhistas se afastem de qualquer compromisso religioso, e sua avaliação absurda de que a decadência política de Getúlio se iniciou com a aproximação com a Igreja Católica-Romana [6].


Desse modo, Ouriques perde inteiramente a razão ao dizer que “Projeto Nacional” constitui um rompimento com o trabalhismo. Pois o trabalhismo não é apenas marxismo pra brasileiro deseducado, e sim uma tradição política própria, que tem como um de seus fundamentos mais perenes a Doutrina Social da Igreja, tal como defendido não apenas por Vargas, mas também por Pasqualini e João Goulart. 

Todos os momentos políticos capitais do Trabalhismo foram amparados pelos vínculos com os ensinamentos sociais do cristianismo católico-romano, desde a ideologia do Estado Novo, passando pela Consolidação das Leis do Trabalho, até a luta pelas Reformas de Base.

Portanto, diferente do que diz Nildo Ouriques, o livro de Ciro oferece sim um modelo alternativo ao da Nova República. Mas esse modelo não é marxista nem coloca a luta de classes no centro de suas motivações, embora reconheça claramente sua existência. Trata-se de um projeto escorado na mais autêntica e patriótica tradição do Trabalhismo, que remete diretamente à Getúlio e seu escopo de criação de uma Democracia Social. 

É verdade que Ciro não pretende liderar uma revolução, como bem afirma Nildo. Mas o próprio Vargas declarou no início dos anos 1950 que os tempos exigiam agir dentro da ordem. Não se trata, portanto, de novidade ou invenção de Mangabeira Unger também. O que não significa ausência de um horizonte de quebra com a organização social e econômica atual.

O distributismo, com sua exigência de democratização da propriedade privada, sua denúncia do 'rentismo' e do consumismo, fornecem meios para uma verdadeira guinada. Mas ela não será marxista, como os udenistas e os comunistas, cada um à sua maneira, pensavam que seria.

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[1] Embora negue, o psolista cobra de Ciro um "mea culpa" público por sua participação no Plano Real, o que é de todo irrelevante na medida em que o pedetista critica os fundamentos do governo apátrida de Fernando Henrique Cardoso. De lá para cá, já se passou mais de um quarto de século.

[2] Como já argumentei em outros espaços, o pentecostalismo é lido no Brasil muito mais em continuidade com experiências extáticas e um mentalidade mágica repleta de uma sensibilidade "macumbeira" do que qualquer coisa parecida com o protestantimo tradicional ou mesmo com a rede evangélica ianque.

[3] São formações sócio-culturais com matrizes, bases e eventos fundantes e originários completamente diferentes. Os países mais próximos de nós, evidentemente, são nossos vizinhos sul-americanos. Afirmar uma semelhança profunda do Brasil com os EUA apenas porque temos um território grande, termos sido colonizados por europeus, ou passarmos pela experiência do escravismo é de uma superficialidade algo patética, dada a diferença cabal nesses e em diversos outros processos. Só para ficar nos elementos citados por Unger: o território continental norte-americano foi conquistado a partir de uma expansão conquistadora após a independência, enquanto o Brasil interiorizou o Império português; os colonizadores dos EUA foram anglo-saxões, e não ibéricos, existindo um mundo de diferença entre ambas as sociedades e culturas; o escravismo foi elemento foi estruturante no Brasil do Oiapoque ao Chuí, enquanto nos Estados Unidos só tinha dimensão significativa nos Estados do Sul, e isso abstraindo as imensas distinções entre as relações étnicas ianques e brasileiras.

[4] Ressalto que a análise de Mangabeira está em passo com a que faço há anos nesse e em outros espaços, em que classifico a Nova República de "paulistocentrismo".

[5] Embora seja falsa a análise de Nildo de que Ciro não dê importância ao fenômeno do Imperialismo, é verdade que o pedestista subestima o fenômeno do bolivarianismo.

[6] O imortal Presidente se aproximou do catolicismo-romano ainda nos primeiros anos da década de 1930, quando o próprio trabalhismo ainda era uma ideia e um movimento em construção, se é que podemos considerá-lo mais do que uma semente nesse período.

quinta-feira, 4 de junho de 2020

O PDT QUE COSPE NA MEMÓRIA DE GETÚLIO, ou: a estratégia que causa vergonha alheia



Postagem do PDN Nacional cita características getulistas como exemplos de ''fascismo'' e não percebem que boa pare do que foi ''denunciado'' faz parte de uma cultura política legitimamente brasileira e popular
O PDT fez uma postagem elencando seis características que permitiriam reconhecer Bozó como fascista. Trata-se de verdadeiro tiro pela culatra e desprezo pela história do próprio partido.

A primeira característica seria um suposto discurso racialista do [des]governo. Lamento informar, mas os exemplos dados de piadinhas politicamente incorretas de natureza racista não são a mesma coisa que racialismo.

O discurso de Bozó é RACISTA de fato, nos termos em que a Quarta Teoria Política aponta. Não por causa de piadinhas, mas de visões fundamentais que orientam a perspectiva bozólouca. Quando Weintraub declara ódio aos ''povos indígenas'' porque só há um povo em nosso território, o ''brasileiro'', sem qualquer sutileza, distinção ou especificidades, está sendo efetivamente racista. Está caindo no mesmo erro de Getúlio Vargas, a quem o PDT remete a sua fundação.

O erro consiste em acreditar que no Brasil há uma etnia homogênea que corresponde à brasilidade e que está presente de Oiapoque ao Chuí. Foi baseado nessa crença racista que Vargas perseguiu comunidades alemãs no sul do país e não teve força pra alterar a política indigenista assimilacionista que norteou durante muito tempo o Estado brasileiro. A própria imposição de uma ideologia da mestiçagem em termos físicos é eminentemente racista, porque parte do princípio de que um não mestiço não pode ser brasileiro nem participar da brasilidade.

Se racismo é suficiente para apontar o fascismo, Getúlio, que impôs cotas para imigrantes, reduziu a entrada de estrangeiros, impediu o desembarque de judeus etc., seria muito mais racista que Bozó, que faz piadinhas de português e japonês.

Mas o racismo é um princípio basilar da Modernidade, não apenas do fascismo. Ele está presente em toda ideologia devedora do iluminismo, já que é indissociável do progressismo. Uma prova disso é que a República Velha, fortemente marcada pelo ideologia liberal, era fortemente racista. Oswaldo Aranha, grande aliado de Getúlio, acreditava em ''embranquecimento do Brasil'' pelo menos até o fim dos anos 1930. A sociedade norte-americana, de forte matriz liberal, é racista ao extremo, e não apenas contra pretos. O racismo é um elemento estruturante da falida sociedade ianque.

A modernidade é racista porque hierarquiza os povos segundo seus princípios etnocêntricos retirados da experiência histórica do Ocidente. Quem não participa desses dogmas e formas sociais é considerado ''primitivo'', ''bárbaro'', ''atrasado'', e portanto passível de ''reeducação''. Para o liberal, civilização é sinônimo de Ocidente. Assim, o racismo não é suficiente para delimitar alguém como fascista, pois servia tanto a Churchill quanto a Hitler.

A NR é anti-racista por princípio, e por isso mesmo nega o fascismo, o socialismo e também o liberalismo, considerando este último o racismo triunfante de nosso tempo.

A Era Vargas realizava uma propaganda oficial da imagem do Presidente. O personalismo, por sua vez, faz parte da tradição política não só do PDT quanto do Brasil. 

A segunda característica citada pela postagem do PDT Nacional seria o Culto ao Líder. Como os sequazes dos bozós gritam 'mito, mito!' babando na gravata, então seriam ''fascistas''. Mais uma vez se trata de um tiro no pé dado por um partido que se diz fundado por Getúlio. O imortal Presidente incentivou, a partir do DIP, um culto à sua personalidade.

O Trabalhismo se fundamentou nessa ligação direta entre o líder e sua massa, que muitos teóricos do populismo confundem erroneamente com demagogia. O personalismo foi uma marca não apenas de Vargas mas de seus herdeiros. Brizola, por exemplo, era um líder personalista, uma estrela em torno da qual girava o PDT.

De todo modo, o culto ao líder está longe de ser um elemento típico do fascismo. Ele existiu em países comunistas, que tem inclusive seu panteão de mártires. Tanto no Brasil, com o heroico Prestes e a mártir Olga, como no âmbito internacional: Trotsky, Stalin, Fidel, Che Guevara, Mao etc. foram, todos eles, líderes personalistas cuja figura atinge uma dimensão mitológica para determinados grupos.

Se estendermos nosso olhar, percebemos que o personalismo é atacado, principalmente, pelo liberalismo, que abraça fanaticamente a impessoalidade de mecanismos procedimentais como solução para a vida social. Fora da ideologia liberal, há uma tendência generalizada pela ênfase na relação pessoal dentro de um arcabouço cultural que oriente as crenças e práticas da comunidade.

O povo brasileiro é forjado em uma cultura política fortemente personalista. Confiamos mais em pessoas do que em instituições liberais tais como partidos políticos. As instituições em que nosso povo mais confia são aquelas que se organizam em torno de fundamentações pré-modernas, como o Exército e as Igrejas.

Como nosso povo também faz piadinha de japonês e é personalista, o PDT deve estar dizendo que o Brasil é fascista. O PDT está se propondo a combater o povo brasileiro?

A terceira característica seria o ultra-nacionalismo, uma menção que não deixa de ser engraçada por duas razões. A primeira é que Bozó é um dos presidentes mais entreguistas de nossa Historia. Ele bate continência para secretários de segundo escalão dos Estados Unidos, país pelo qual tem completa e explícita devoção. A Primeira Dama se emocionou quando se viu frente a frente com o Premier de Israel, a quem ela dá uma dimensão escatológica. Não há no governo atual nenhum traço de qualquer nacionalismo, a não ser uma propaganda superficial que visa polarizar com o ''comunismo''.

O mais destacado presidente nacionalista da República brasileira foi o fundador do trabalhismo, Getúlio Vargas. Não há qualquer comparação entre o nacionalismo de Bozó e aquele propugnado pelos revolucionários de 1930 e 1937. A Carta-Testamento de Getúlio é uma ode ao nacionalismo, sua política cultural era fortemente patriótica.

De modo que, mais uma vez, um item citado pela postagem cabe muito mais a Vargas que a Bozó. Dá a entender que, se Getúlio estivesse vivo hoje, o PDT cuspiria nele.

O quarto elemento é uma suposta ''exaltação à masculinidade'', que o autor das imagens retirou de algumas frases machistas do mentecapto-mor. Mas existe maior exaltação à masculinidade do que ser considerado um caudilho, como se faziam perceber Getúlio e Brizola? Do que dizer que ''constituições são como virgens'', frase atribuída por muitos ao Imortal Presidente?

A postagem do PDT tem medo de discursos que valorizem a virilidade. Curioso para um partido marcado por líderes caudilhistas da fronteira gaúcha.


As frases de Bozó não deveriam sequer ser consideradas uma exaltação à masculinidade, que é de toda necessária, já que não existe problema algum com a virilidade. Trata-se, antes de tudo, de depreciação da feminilidade, uma característica onipresente em qualquer movimento moderno, inclusive no feminista anti-essencialista, que pensa que mulheres tem de se comportar como homens burgueses para se sentirem cidadãs plenas.

De todo modo, esse tipo de preconceito contra a feminilidade transcende as fronteiras ideológicas e é herdeira da perspectiva burguesa liberal da mulher como uma dona de casa de mentalidade infantil e alma angélica, típica da era vitoriana. A inferiorização da mulher por Bozó lembra valores reacionários da sociedade liberal ianque dos anos 1950, não o fascismo.

Em quinto lugar está o anti-iluminismo, essa sim uma característica forte no fascismo. Mas não há nenhuma sistematização ou orientação explicitamente anti-iluminista no Reino dos Bozós. Assim como as piadinhas politicamente incorretas ou o discurso pseudo-patriótico em meio a um entreguismo generalizado, o anti-iluminismo de Jair se resume a apelos a uma base eleitoral religiosa e à relativização do discurso técnico-cientificista.

Os revolucionários de 1930 tomando o poder pela força e amarrando seus cavalos em Obelisco no Rio de Janeiro. Getúlio se orgulharia em seu Diário de ter subido ao Catete como Ditador. O Imortal Presidente possuía uma alma marcial.

Se essas posturas do mentecapto-mor são suficientes para caracterizá-lo como ''anti-iluminista'', o que dizer então de Getúlio Vargas? O Estado Novo possuía ideólogos que explicitamente afirmavam na Revista "Cultura Política'' que o país deveria se erguer em cima da alma nacional, que só poderia ser encontrada no ''inconsciente do povo'', não na razão. O discurso estadonovista era fortemente anti-liberal, denunciando essa ideologia por seus valores universais incompatíveis com a especificidade do inconsciente brasileiro. O PDT Nacional deveria reler o que escreviam Azevedo Amaral e Almir de Andrade em veículos semi-oficiais da Era Vargas.

Fernando Callage, outro ideólogo estadonovista, identificava a revolução de Getúlio com o estabelecimento de uma democracia social, acrescentando que as bases desse regime eram a cristianização da sociedade e a Doutrina Social da Igreja Católica -- conceito que estava plenamente presente em discursos de Getúlio. Trocentas vezes menos iluminista que qualquer coisa que se veja no Reino dos Bozós.

Antes que alguém cite as influências positivistas em Getúlio, cabe lembrar que elas também estão presentes na formação militar de Bozó e na de generais do atual [des]governo. Além disso, o positivismo também teve larga influência na emergência de fascismos europeus.

Parece que essa postagem do PDT Nacional não passa de uma auto-flagelação. O único motivo para que ela exista é o ódio do partido à sua própria história e ao seu fundador. Ou então, quem a produziu não é pedetista de fato. Parece o Lula se rindo de Brizola quando o caudilho o apresentou a Vargas no túmulo do Presidente em São Borja. Ou alguém duvida dos tons místicos messiânicos e cristãos da Carta-Testamento de Getúlio?

Por último, o autor da peça identifica fascismo em Bozó pelo desejo de retorno a um ''passado idílico''. Naquele jeito de forçar a barra pra fazer a realidade atual caber na “denúncia”, se sugere que o paraíso perdido dos bozóloucos seria o regime civil-militar.

Ora, o mesmo poderia ser dito do desejo trabalhista de retornar a uma era desenvolvimentista de estímulo à industrialização e de ampliação dos direitos sociais. Se a década de 1970 causa alguma saudade nos bozóloucos, é inevitável concluir que a Era Vargas também gera o mesmo tipo de sentimento em getulistas. Todos eles tem a Revolução de 1930 como momento mítico e as políticas e orientações estipuladas naquele período como modelos a serem ‘’redescobertos’’ e recuperados.

O imaginário brasileiro é profundamente marcado pelo sebastianismo, pela metafísica da saudade e pela busca do Paraíso Perdido. 

Mais uma vez, essas pessoas deveriam voltar os olhos para os ideólogos da Era Vargas, que afirmavam que sua revolução possuía caráter restaurador, não para repetir o passado, mas para se vincular de novo à alma popular. Esse conceito tem teor muito mais fortemente fascista do que o reacionarismo estéril de Bozó, já que o passado só se repete como farsa. Todo fascismo entendia revolução como restauração de certos princípios nacionais quebrados pela sociedade liberal.

Por fim, a saudade daquilo que foi perdido não é característica exclusiva do fascismo. O povo brasileiro está permeado por um imaginário da saudade: nossas artes todas a proclamam. Todos queremos recuperar a Guajupiá, que está não no passado, mas no futuro. Por isso caminhamos para ela, assim como os navegantes portugueses buscavam através dos Oceanos o Reino do Preste João, a Ilha de São Brandão e o Éden. Ou como os africanos escravizados sabiam que teriam de recriar seu mundo após sobreviverem à dor da travessia de Calunga grande. Somos todos fiéis aguardando e promovendo o desencantamento dessa terra, quando participaremos do Retorno de Dom Sebastião.

Quem criou essa postagem do PDT Nacional provou que nada tem de getulista. Todos as características que foram associadas ao fascismo cabem ao Pai do Trabalhismo, não a Bozó. E já que o autor se vê como um guerreiro anti-fascista, não resta nenhuma outra conclusão possível senão considera-lo um inimigo da herança de Vargas.

Pior ainda, ele mal entende o povo brasileiro e seu imaginário. Com essa postura pequeno-burguesa, falando para um público de DCE de universidade, cujo tempo mítico está não no sebastianismo nem na Terra Sem Mal tupi e sim na Guerra Civil Espanhola, eles não vão conquistar um só voto de quem realmente interessa, as classes populares.

Diferente do autor da postagem, nós brasileiros temos sim uma mentalidade mágica, somos nacionalistas, valorizamos a virilidade, colocamos relações pessoas acima do procedimentalismo, somos messiânicos, e temos uma crônica e insaciável saudade daquilo que ainda não vivemos.

O movimento que pode reivindicar a herança de Getúlio, levando-a para o século XXI, é o Nova Resistência.