''O certo é que nossa
latino-americanidade, tão evidente para os que nos olham de fora e veem nossa
identidade macroétnica essencial, só ainda não faz de nós um ente político autônomo,
uma nação ou uma federação de estados nacionais latino-americanos. Mas não é
impossível que a história venha a fazê-lo. A meta de Bolívar era opor aos
estados unidos setentrionais os estados unidos meridionais. A Pátria Grande de
Artigas, a Nuestra América de Martí apontam no mesmo rumo.''
Darcy Ribeiro, "América Latina: a Pátria Grande"
Darcy Ribeiro, "América Latina: a Pátria Grande"
No texto anterior, discordei da
abordagem do professor Nildo Ouriques sobre o papel do distributismo, e de modo
mais amplo, do catolicismo-romano na tradição trabalhista. Também considerei um
exagero a afirmação de que “Projeto Nacional”, recém-lançado livro de Ciro
Gomes seria um deslocamento do significado do
próprio Trabalhismo e sua substituição pelas ideias de Mangabeira Unger. Vocês
podem ler minha análise nesse texto: Ciro, Nildo e o Trabalhismo.
No entanto, o ponto mais
fundamental da crítica de Ouriques se apóia em um dos pilares do pensamento
político de Getúlio, Jango, Brizola e das maiores lideranças do nacionalismo
popular brasileiro: o problema do imperialismo e da geopolítica sul-americana.
Na obra, Ciro
Gomes finca o eixo de sua proposta na ideia de Estado-Nação. Segundo ele, tanto
o liberalismo quanto o marxismo eram internacionalistas demais para entender o
papel fundamental do nacionalismo e do Estado na consecução da soberania
popular [1].
Não importaria se esse ou aquele grupo se definia como de direita ou de
esquerda, conservador ou progressista, religioso ou materialista: o verdadeiro
corte se dava entre patriotas e apátridas.
A abordagem está de pleno acordo com a tradição trabalhista, principalmente
com o getulismo e o brizolismo. A carta-testamento do imortal Presidente, que
nunca se disse de direita ou de esquerda, se referia a fortes inimigos estrangeiros, forças econômicas e políticas que seriam
obstáculos ao esforço de abrir caminho para a realização de nossa grandeza.
Brizola nunca deixou de denunciar o processo de espoliação com que tentavam
conter nosso dinamismo. Para o velho caudilho, existia uma elite apátrida, que
ele chamava de ''anti-povo'', aliada do sistema internacional, e que traía os
destinos do Brasil. Assim, os interesses estrangeiros possuíam aliados dentro do
nosso país. [2]
Ele negava também que o trabalhismo fosse ramo da esquerda ou da
social-democracia do Velho Mundo, ainda que o PDT tenha aderido à Internacional
Socialista. Mais uma vez, o corte não era entre liberalismo e marxismo. Era
Pátria ou nada: o projeto europeu sempre foi imperialista, enquanto nós
estávamos na semi-periferia do ''sistema-mundo'' capitalista e por isso
precisávamos de uma perspectiva diferenciada na luta por nossa independência
plena.
Nada disso parece escapar a Ciro em seu livro. E, no entanto, ele se furta
a tratar mais detidamente as necessidades geopolíticas da América do Sul e o
problema do Imperialismo. Pior ainda, comete o erro de erigir o Estado de Bem
Estar Social da Suécia como referência do seu projeto. Ora, a Suécia é uma plutocracia,
cuja qualidade de vida foi construída em cima do imperialismo já mencionado. [3]
Há uma contradição cravada no âmago de ''Projeto Nacional". Um louvor
à Suécia e ao mesmo tempo o eco das palavras de Darcy Ribeiro, segundo o qual o
Brasil tem de construir uma civilização singular, a Nova Roma, em união com os
demais países da América Latina e se contrapondo à América anglo-saxã. [4] Nas palavras de Darcy, o Estado-Nação desembocava na Pátria Grande.
Ciro defende a integração do nosso subcontinente, citando inclusive a Constituição Federal, mas não
mergulha nas ''águas mais profundas'', e trata esse telos quase que entre parênteses, às pressas, sem maior
desenvolvimento.
A união cultural, política e econômica da América do Sul é a chave para
que escapemos das intervenções consecutivas que os ianques realizam entre nós a
fim de manter sua hegemonia. Rumar para o interior, ocupando o território, e se
aliando com as potências terrestres da Argentina e do Chile é uma das vias para o
Pacífico e para a independência. [5]
Não há saída sem colocar a geopolítica, e dentro da geopolítica o anti-imperialismo,
no coração de um projeto nacional-popular. Obviamente, a integração territorial e cultural não pode deixar de lado os aspectos econômicos, já que não nascemos para ser periferia, e sim um polo de poder de fato e de direito.
Nesse ponto, como bem nota o professor Nildo, faltou bolivarianismo. Não
por que devamos imitar essa ou aquela política miúda de um ou outro país que se
diz bolivariano, mas no sentido imprescindível da amalgamação sul-americana e propostas
concretas para realizá-la.
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[1] A articulação entre marxismo
e nacionalismo se demonstrou um problema histórico para o socialismo
brasileiro, e um dos obstáculos mais fortes do nacionalismo revolucionário.
[2] O diagnóstico do Imperialismo
é um dos meios mais eficazes para sanar as diferenças entre marxistas e
nacionalistas na política sul-americana. A figura de Brizola se torna capital
nessa questão.
[3] Uma avaliação que se encontra
presente inclusive no pensamento de Mangabeira Unger, que acusa a Nova
República de ter fracassado, dentre outras coisas, por se limitar a elaborar um
projeto de “Suécia Tropical”.
[4] Não se trata de uma confusão
banal, pois internacionalismo
social-democrata leva a esquerda
brasileira a gravitar em torno dos interesses do Deep State ianque, tal como
representados no Partido Democrata. De maneira ingênua, muitos intelectuais
desse campo progressista leem a realidade brasileira como mero reflexo
de embates da sociedade estadunidense, se aliando de maneira subordinada aos
projetos dos Clinton, dos Obama e outros representantes do imperialismo
perfumado. Na geopolítica, a dominação de um país é auxiliada pela construção
de justificativas ideológicas e “civilizatórias” para sua posição
hierarquicamente superior, quando então a dominação imperial se torna em
hegemonia. O “obamismo” é uma das expressões recentes dessa característica da
estratégia ianque, uma armadilha em que muitos supostos revolucionários caem.
[5] O temor norte-americano de
integração sul-americana liderada pelo Brasil, e levada a efeito de leste para
o Oeste, com união das costas Atlântica e Pacífica do continente, bem como da
Bacia do Prata e da Amazônia, sempre foi explicitada entre os principais
elaboradores da geopolítica dos Estados Unidos.