Patrícia Moreira foi escolhida como vítima a ser sacrificada em nome do ''ódio aos racistas'' |
Cresci em um sub-bairro de Senador Camará, região pobre da antiga ''Zona Rural'' do Rio de Janeiro e que com o tempo foi se tornando uma dúzia de ruas cercadas por favelas e mais favelas. Era um local tipicamente habitado por classes populares e repleto, claro, de mulatos e caboclos. Não só cariocas da gema, mas também migrantes do Nordeste, de Minas, de São Paulo, do interior do Estado do Rio. Lembro ainda hoje quando a primeira família negra se mudou para minha rua. Eu era criança, foi lá pra meados da década de 1980, e notei um certo burburinho que havia se formado. Alguns ficaram inconformados com os vizinhos pretos. Era como se de repente o status social do bairro estivesse periclitando, decaindo, ainda que fossem boa gente, trabalhadora, que compartilhavam os mesmos valores e possuíssem mais ou menos o mesmo nível sócio-econômico. Aprendi então que havia racismo no coração de parte do povo brasileiro, no coração de parte dos populares que queriam se diferenciar, d'algum modo, dos demais pobres, dos miseráveis e dos favelados [porque quando a favela chegou a Senador Camará, anos antes, foi outro burburinho....].
Travei outro contato com o racismo na Faculdade de Direito da UFRJ, este ainda mais pessoal. Quando prestei vestibular em 1994, o curso da UFRJ era tido como o mais tradicional do Rio e quiçá do país, embora alguns já dissessem que a qualidade da UERJ era maior. Havia status em estudar no prédio em que funcionou o Senado Imperial, no qual se assinou a Lei Áurea, ali do lado da casa em que havia morado o Marechal Deodoro da Fonseca e do Campo de Sant'Anna, onde foi feito o anúncio da Proclamação da República. A turma era formada por noventa alunos, dos quais menos de cinco por cento podiam ser descritos como não brancos -- e estou incluindo aí um colega de ascendência japonesa. Não havia nenhum preto. [No colégio em que fiz o antigo ginásio -- hoje segundo segmento do ensino fundamental --, uma escola tradicional de Campo Grande pela qual sempre tive muito amor, em uma turma de mais de cinquenta alunos também só havia um preto, e menos de vinte por cento não brancos, contando aí os descendentes de coreanos]. Eu possuía uma boa relação com a maioria, mas sofri agressões verbais de um aluno que havia sido eleito representante da turma. Nenhuma 'racista' em sentido estrito, deixo claro, mas a motivação por detrás delas ficou óbvia pra mim. O sujeito não foi com minha cara; ou melhor, não foi com a minha cor. [posso ser descrito como cafuzo ou caboclo.]
A existência de racismo no Brasil é inegável. Que se trata de uma chaga é consenso. Que deve ser combatido idem. Mas o racismo não é o maior mal a que está sujeita uma sociedade. Um bem pior é a disseminação do mecanismo do bode expiatório como forma de dirimir conflitos e provocar uma unidade de valores. O mecanismo do bode expiatório foi estudado e explicado pelo filósofo e historiador René Girard, que com ele buscou descrever o nascimento da cultura e da civilização, usando para isso a crítica literária, a psicologia, o estudo de religiões e a antropologia. Segundo Girard, o desejo humano é mimético, está inserido em dado contexto social. Desejamos não qualquer coisa, mas as coisas que vemos o próximo desejar. No fim das contas, isso significa que acabamos por desejar objetos semelhantes, ou, pior ainda, os mesmos objetos -- o que inclusive é potencializado ao máximo em uma sociedade regida por valores igualitaristas. A natureza do desejo humano, assim, se torna em fonte segura de conflito com o outro. Estes conflitos se espraiam pelo todo social, em uma espiral de disputa, conflito, agressões e, por fim, violência, regidas pela culpabilização do outro pela não satisfação de nossos desejos, pelo ressentimento e pela necessidade de vingança.
O bode expiatório é morto para aplacar os ''deuses'', os demônios alimentados pelos indivíduos e escondidos no anonimato da coletividade |
O processo de crescimento contínuo de vingança e da violência torna a sociedade um inferno e compromete sua própria existência, o grupo fica ameaçado a mergulhar no caos. Neste ponto entra em ação o mecanismo do bode expiatório. Diante da debaclé geral a coletividade se agarra à sobrevivência pela escolha de um vítima sacrificial que será o foco de um consenso de ódio. A vítima é responsabilizada em última instância por todo o caos, ódios, vingança e ciclo de violência que acomete a sociedade, e através deste ato de projeção da culpa e do sacrifício do indivíduo escolhido, a sede contínua por vendeta é aplacada e a coletividade retorna, momentaneamente, a um estado de paz. O processo é zerado e se inicia novamente, até que o perigo da orgia de violência leve a escolha de um outro bode expiatório. Esta dinâmica pode ser antecipada, como explica Girard. A sociedade pode sacrificar vítimas expiatórias antes mesmo que o caos se instaure, como forma de evitar o ciclo de violência. Segundo o pensador francês, é este mecanismo que está por trás dos fundamentos das religiões arcaicas e da sociedade, é ele que abre espaço para a vida em comum. No cerne da vida social, portanto, se encontra a institucionalização da maior das selvagerias, realizada para que os homens não precisem enfrentar seus próprios demônios internos.
Em entrevista hoje ao Jornal do Brasil [O racismo que fere e precisa ser combatido], a militante Mônica Fraga escreve a seguinte pérola sobre Patrícia Moreira, a jovem que foi flagrada chamando de ''macaco'' o goleiro Aranha, do Santos, em partida de futebol realizada contra o Grêmio em Porto Alegre: ''A questão não é que com esta ou aquela pessoa a repercussão ou as consequências estão sendo duras demais. Ela foi flagrada, outros não, mas ela representa a síntese dos e das racistas neste país.'' O artigo da moça clama pelo combate ao racismo. Mas o faz justificando o uso do mecanismo acima descrito, que é visto assim como meio de alcançar a unidade de valores que ela pensa ser benéfica para dirimir os conflitos raciais brasileiros. Patrícia, uma menina que cometeu um erro no meio de uma turba, de uma torcida de futebol, algo que ocorre todo santo dia em qualquer estádio do país, deve ser transformada, pensam os militantes, em síntese do mal que se deseja extirpar. Pouco importa se é duro demais para ela, se extrapola o que realmente fez. O que importa é o bem que se pretende tirar disto, a pacificação racial do Brasil. Não basta que ela seja esculachada em redes sociais, em rede nacional de televisão, que perca o emprego, que sua casa seja apedrejada, que seja processada. A lei deve cair sobre ela com braço forte, poderoso, impiedoso, sem deixar 'pedra sobre pedra', para descarná-la, destruí-la, uma representação de nosso ódio ''a todos os racistas do país''. Se ela sobreviver, marquemos sua testa com algum sinal hediondo, para que seja para sempre proscrita entre nós. Suas desculpas públicas não podem ser aceitas, ela tem de repeti-las indefinidamente, de joelhos, enquanto lhe alvejamos, quem sabe, com sacos cheios de urina e cocô de gato.
Em Israel, o sacerdote separava dois bodes: um seria morto pelos pecados dos povo no culto do Judaísmo do Templo, e o outro seria solto do deserto para satisfazer Azazel |
Quando destruirmos este indivíduo em particular em todas as suas dimensões, quando a detonarmos social, moral, psicológica e fisicamente, aí, se iludem certos ideólogos, virá a paz. Mas é uma certa paz que esconde um contínuo ódio interno, e que vai tão somente abrir espaço para que todo o ciclo volte a se repetir. O sacrifício de indivíduos no altar construído pela violência da turba repleta de ira e desejo descontrolado não é sinônimo de justiça. É a re-institucionalização do Culto a Azazel. [1]
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[1] The Scapegoat Dilemma
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[1] The Scapegoat Dilemma