quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

A Bíblia é a Palavra de Deus?, ou: A Formação do Cânone, parte 1

 


Rua de Jerusalém

Se a composição das Escrituras Judaicas [Tanach] já coloca problemas imensos para a visão protestante e 'protestantizada', ela se torna inviável quando se estuda a formação do cânone do ''Novo Testamento''.


O conceito de 'Sola Scriptura' -- em sentido amplo, o que inclui a 'Prima Scriptura' --, está comprometido até a raiz quando se sabe que o cânone não caiu do céu, mas foi composto ao longo de gerações, e determinado pelas autoridades da Igreja em um processo que só teve fim na primeira metade do século V.


Os protestantes tentam escapar das implicações mais óbvias deste fato evitando confrontá-lo de modo direto. Alguns alegam que a escolha dos livros canônicos não foi arbitrária, que se fundamentou em critérios bem rigorosos. Outros dizem que a principal autoridade na formação do cânone não era exatamente a eclesiástica, mas a apostólica.


As duas afirmações estão parcialmente corretas, inclusive do ponto de vista historiográfico, ainda que se deva qualificá-las: primeiro, quem estabeleceu os critérios e os aplicou na lenta formação do cânone foi a Igreja, cuja autoridade era constituída pelos Bispos, Padres e Monges, que se reuniam em Sínodos para debater as questões mais incisivas. Em segundo lugar, nem todos os escritos canonizados saíram da pena dos Santos Apóstolos, fato plenamente reconhecido tanto pela Igreja dita "Primitiva", quanto pelos acadêmicos, e inclusive pelos Protestantes [o próprio Lutero, diga-se de passagem].


No fim das contas, a posição protestante é insustentável por causa de algo ainda mais grave do que as minúcias acima: a Igreja dita "Primitiva'' não acreditava nem usava o 'Sola Scriptura'. Os cristãos conviveram por décadas sem escritos de qualquer tipo, e sobreviveram por mais de um século sem necessidade de pensar um cânone. A necessidade de uma 'lista oficial' de livros só brotou mais de meio século depois que todos os Santos Apóstolos tinham falecido. Depois que um cânone foi considerado imprescindível, o debate em torno dele durou ainda uns dois ou três séculos.


Convém lembrar que a composição dos textos que entrariam no cânone dependeu de uma transmissão de conhecimentos que era dada de forma oral. O Novo Testamento não está nem acima, não se confunde, nem se encontra ao lado da Tradição. Ele deriva da Tradição, é fruto dela de modo indiscutível.


Todo e qualquer contra-argumento protestante baseado nas Escrituras [como afirmar que São Mateus ou São Lucas ensinam que Cristo constituiu Apóstolos, ou que em Cartas de São Paulo se lê que as Escritura são boas para o ensino] não passam de tergiversações, já que nenhum destes textos existia antes dos anos 50.

Colinas próxima à Nazaré



Começo pela datação dos textos sobre os quais a Igreja dita ''Primitiva'' se debruçava, chamando a atenção para dois pontos fundamentais. Podemos datá-los de duas maneiras: seguindo a posição que os autores cristãos dos primeiros séculos tinham sobre estas obras, algo que podemos chamar de ''atribuição tradicional''; ou colocando a pesquisa histórica na jogada. Como pretendo deixar claro, este último critério complica ainda mais a posição protestante.


Não quero dar a entender que faço dos trabalhos acadêmicos uma régua segura sobre a autoria, a data ou a composição desses escritos. Pelo contrário, muitas das alegações dos historiadores são francamente inconclusivas e por demais frágeis, algo que eles nem sempre deixam claro por razões que fogem ao escopo destas postagens.


Como já usei os sinóticos em uma postagem [clique no link] sobre o mesmo tema, dou aqui como exemplo tão somente o Evangelho de São João: Até o início do século XX, era muito forte a tendência a datá-lo de forma tardia, um pouco antes do Diatéssaron, obra escrita por volta do ano 170 por Taciano, o assírio, que tentou harmonizar em um único texto o relato dos evangelhos hoje canônicos. Os argumentos eram os mesmos usados hoje em dia, e fundamentados em pressupostos teóricos e em uma seleção de ''evidências internas'' aos textos: o quarto evangelho tinha de ser do segundo século porque continha discursos longos, cristologia muito elaborada etc.


Ora, essa apreciação caiu por terra quando nos anos 1930 foram descobertos fragmentos de papiro com o texto de São João. Eles vinham do Egito e, segundo apontaram os métodos de datação, são dos anos 120. A conclusão é que o Evangelho de São João só podia ser do século I, com um consenso historiográfico forte ao redor dos anos 90, e uma franca minoria defendendo uma data anterior ao ano 70.


O exemplo aponta a insuficiência dos métodos pautados apenas por evidências e críticas textuais. É possível alcançar certo conhecimento da composição e da história de um texto dessa maneira, mas as hipóteses levantadas a partir daí são, em larga medida, inconclusivas. Seja como for, ainda que não sejam conclusivos ou definitivos, há muito valor nos métodos definidos pela Academia, de modo que é sempre bom tê-los em mente.


O segundo ponto: os textos hoje canônicos não foram os únicos produzidos no primeiro século da vida da igreja, nem eram os únicos lidos pelas comunidades cristãs. Havia outros e com peso suficiente para constarem de alguns cânones ainda no século IV, ou para pelo menos levantarem dúvidas sobre sua canonicidade [que existiam também em relação a alguns escritos que hoje constam do Novo Testamento].


É impossível falar da Igreja dita ''Primitiva'' ou da formação do cânone sem mencionar, ainda que por alto, a importância das duas Epístolas de São Clemente, da Epístola de Barnabé, do Evangelho dos Hebreus, do Evangelho de São Tiago, da Didaché, do Pastor de Hermas, dos Atos de São Paulo, do Apocalipse de São Pedro etc.


Vou evitar, porém, qualquer texto que saibamos com segurança ser escrito após o cânone de Marcião de Sínope [por volta de 160] pela simples razão de que eles eram tardios, nascidos mais das vezes em ambientes gnósticos sem vínculo com a Igreja, e não eram objeto de debate sério quanto à sua autoridade, confiabilidade, nem muito menos canonicidade. Não precisamos perder tempo com ''evangelhos'' e ''ensinamentos'' supostamente ''secretos'' datados dos séculos III em diante, por exemplo.



Rio Jordão



Proponho a seguinte classificação dos escritos: i. as Epístolas, gênero dos primeiros documentos cristãos conhecidos, e também os primeiros a serem alçados a uma posição de autoridade entre as diversas comunidades; ii. os Evangelhos, dando conta dos ditos e fazeres de Cristo; iii. os demais escritos [de natureza sapiencial, instrutiva, apocalíptica ou dando conta das missões e atos dos Santos Apóstolos].


Pra começar, podemos imaginar o seguinte cenário após a Gloriosa Ressurreição: nos primeiros vinte anos, o "Caminho" -- como alguns chamam o movimento cristão em suas origens -- se espalhava principalmente entre judeus e prosélitos [gentios buscando conversão ao Judaísmo] na Judeia, Galileia e áreas próximas.


Sua base principal era Jerusalém. Suas principais autoridades eram Pedro, João e Tiago [primeiro São Tiago irmão de São João, depois São Tiago o Justo, chamado de ''Irmão do Senhor" ou Adelphotheos]. De forma mais ampla, os Doze Apóstolos. Em um círculos ainda mais amplo, os 72 Apóstolos. É seguro supor a presença de algumas mulheres muito importantes, como a Mãe de Cristo [citada em todos os Evangelhos e também em Atos dos Apóstolos], Maria de Cleofas, Joana de Cusa e outras.


Esta primeira geração espalhava a "Boa Nova" sem qualquer escrito autoral nas mãos. Eles não podiam acreditar ou aplicar o Sola Scriptura pelo simples motivo que o Novo Testamento não existia. Para falar de Jesus Cristo, dependiam dos ensinamentos orais das figuras que foram discípulos do Senhor como também daqueles que chegaram a uma posição de liderança na primeira comunidade cristã [dentre os quais, um sujeito mais tarde conhecido como São Paulo, que certamente já fazia parte d'O Caminho na virada dos anos 30 para os 40], e tidos como pessoas guiadas por Deus.


É bem provável que durante essa primeira geração existissem coleções de ditos de Jesus circulando ao lado de uma vigorosa tradição oral. Mas elas não tinham qualquer peso de autoridade no interior destas comunidades, e a prova é que não conhecemos citação ou alusões a elas nos escritos cristãos, nem mesmo naqueles que datam dos anos 50 e 60 [como as epístolas paulinas]. Onde quer que essas supostas coleções tenham existido, tinham seguramente um status muito subordinado em relação aos ensinamentos das autoridades constituídas e que regiam a vida nas comunidades.


Daí que não precisamos tratar de alguma fonte Q oriunda desses tempos, conforme mencionei em postagem sobre o problema sinótico [clique no link]. Se havia algum documento como Q, e não há qualquer prova concreta disso, nunca adquiriu peso suficiente entre os cristãos sequer para ser copiado para as demais gerações, ou nomeado ou citado de modo direto e indiscutível seja nos textos hoje canônicos, seja naqueles produzidos no primeiro século de vida da Igreja mas que ficaram de fora do cânone, seja ainda nos autores cristãos dos séculos seguintes.


Toda vez que os fiéis d'O Caminho se referiam às Escrituras, estavam falando da Lei e dos Profetas, ou seja, das Escrituras Judaicas [mais tarde chamadas de ''Antigo Testamento"], que conforme argumentei em mais de uma postagem [aqui e aqui], circulavam em mais de uma variante em hebraico e, principalmente, na versão grega conhecida como Septuaginta. Não havia cânone fechado nessas Escrituras nem em hebraico nem em grego.


Esta era a Igreja em sua origem: sem nenhum texto 'oficial' ou 'oficioso', nenhuma Escritura própria senão aquela em comum com os demais judeus, nenhuma compilação chamada ''Novo Testamento''. Apenas a autoridade discipular [os 3 pilares, os Doze Apóstolos, os 70 Apóstolos, os Discípulos dos Apóstolos, os Bispos/Prebísteros e Diáconos estabelecidos nas comunidades], a tradição oral e a alegação de que seus líderes eram Iluminados pelo Espírito Santo [crença que se consolidou na tradição do Pentecostes].



Betânia



Além disso, existiam alguns ritos fundamentais -- o batismo [feito segundo uma fórmula que incluía ''o Pai, o Filho e o Espírito Santo''], e a 'ceia do Senhor' [Eucaristia], cuja instituição era atribuída ao próprio Cristo --, sem os quais ninguém era considerado membro do ''movimento''. E, tudo indica, crenças consideradas perigosas se divulgadas publicamente, e por isso mantidas de forma mais ou menos discreta, como a identificação de Jesus com o Kyrios [Senhor] da Septuaginta, a afirmação de que Ele era o Messias, e de que Ressuscitou dos mortos.


Se esta Igreja aplicasse o Sola Scriptura, o Novo Testamento jamais teria vindo à existência. A Bíblia não era considerada a ''palavra de Deus'' porque a Bíblia não existia. Não havia sequer um cânone fechado das Escrituras Judaicas. E ninguém ligava, ninguém pedia por isso nesta época, não se pensava ser necessário. A vida da Igreja, suas regras, seus ritos, suas práticas não eram determinadas por isso, mas por ensinamentos pessoais transmitidos de mestre para discípulo ou revelados diretamente do Alto.


Depois de vinte anos de vida, já no início da segunda geração de cristãos, e dada a expansão d'O Caminho por cidades cada vez mais distantes ao redor do Mediterrâneo Oriental, e ainda sob a liderança dos Apóstolos [dos Doze e dos Setenta e Dois], surgem os primeiros escritos que serão considerados importantes o suficiente para serem copiados e lidos publicamente nas comunidades como forma de ensinamentos.


Os primeiros documentos deste tipo eram cartas atribuídas a Apóstolos, seus discípulos, ou lideranças de grande status na Igreja. Foram escritas mais ou menos entre o ano 50 e o 140. Daquelas produzidas neste período, foram objeto de discussão para entrada num futuro cânone aquelas atribuídas a São Paulo [cujo número vou determinar na próxima postagem], as duas atribuídas a São Clemente de Roma, as três atribuídas a São João, as duas atribuídas a São Pedro, a de São Tiago, a de São Judas, e a de São Barnabé. O debate sobre quais Epístolas fariam ou não parte de um cânone definitivo prosseguiu até o fim do século IV, como veremos.


As sete Epístolas de Santo Inácio de Antioquia também são do final desse período, mas não vou mencioná-las diretamente por nunca terem sido parte de qualquer cânone dada sua composição reconhecidamente tardia [por volta do ano 140]. Ainda assim, são escritos de importância fundamental para conhecer o primeiro século de existência da Igreja.


No próximo texto, trato portanto desta primeira categoria de escritos que propus, as Cartas.

domingo, 28 de janeiro de 2024

O VASCO NÃO É PIONEIRO NA ESCALAÇÃO DE JOGADORES NEGROS , E SIM O BANGU

 

O Vasco da Gama NÃO FOI o primeiro clube a escalar negros no time e a combater o racismo. É necessário repetir e espalhar essa verdade até os confins do universo.


A pesquisa histórica e o Estado do Rio de Janeiro reconhecem o Bangu Atlético Club como o primeiro a contar com jogadores negros. Desde 1905, um ano antes da criação do Campeonato Carioca, a equipe da Zona Oeste contava com Francisco Carregal no time.

Francisco Carregal era mulato, filho de pai português e mãe preta. Era tecelão, operário da fábrica, e membro do time de futebol, criado e mantido pela direção da Companhia, e formado por operários: pobres de diversas nacionalidades [havia portugueses, italianos etc.]


Em 2001, A Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro concedeu ao Bangu Atlético Club a Medalha Tiradentes pelo pioneirismo na inclusão de mulatos e negros no futebol.

[http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/scpro99.nsf/d1b99e6346101855832567040007dd94/9d5b06472529aa8103256a5d005af5c5?OpenDocument]





Alguns podem alegar que o Bangu fazia isso de maneira um tanto envergonhada. Que era antes uma exceção, não uma causa do clube. Mas isto também é falso.


No início de 1907, a Liga de futebol do Rio de Janeiro estipulou regras para barrar a participação de não brancos nas equipes de futebol. O ofício enviado aos clubes era muito direto: "Comunico-vos que a direção da Liga, em sessão de hoje, resolveu por unanimidade de votos, que não serão registrados como amadores nesta Liga as pessoas de cor".




Nenhum clube se levantou oficialmente contra esta regra segregacionista a não ser o Bangu Atlético Club, que respondeu com ofício em que se dizia ''ofendido'' e se recusando a participar do campeonato daquele ano.


Estamos em 1907, quase uma década antes do Vasco criar seu Departamento de Futebol, e cerca de 15 ano antes do cruzmaltino subir à primeira divisão carioca.


Outros podem lembrar da oposição sofrida pelo Vasco logo que chegou à Primeira Divisão, em 1923, e o abraço de toda a cidade ao Flamengo no memorável "Jogo da Vingança", que levou, dizem algumas fontes, quase 50 mil pessoas ao Estádio das Laranjeiras, a maior parte torcendo freneticamente pelo fim da invencibilidade dos "camisas negras".


Mas diferente da tradição inventada por Mário Filho e consolidada na memória e na identidade vascaínas, a oposição ao Vasco da Gama na ocasião NÃO TINHA MOTIVAÇÃO RACIAL.


A prova máxima disso é que o time do Vasco da Gama de 1923 era, em boa parte, contratado de equipes do subúrbio carioca. Aqueles negros e mulatos que atuavam pelo Vasco já atuavam normalmente em outros clubes da cidade, sem problema algum.

O América campeão em 1922

O escândalo foi o Vasco tê-los contratado e estabelecido um regime de profissionalismo, o grande debate que movimentava aqueles tempos. Havia uma questão social aí, além de uma discussão sobre a natureza do próprio esporte? Certamente. Era um problema de segregação racial? De forma nenhuma. Boa parte dos times do Rio já contavam com negros e mulatos em sua equipe, ainda que não fizessem disso uma questão ideológica.


A principal motivação do "Jogo da Vingança", em que a Capital da República apoiou o Flamengo contra o Vasco, era nacionalista, como muito bem exposta pelo próprio Mário Filho em diversas crônicas. A oposição ao Vasco não se voltava contra os negros da equipe, mas pelo fato de ser um time lusitano. O sentimento mobilizado foi um proto-nacionalismo, que no Rio de Janeiro tomava contornos, naqueles tempos, de um certo anti-lusitanismo popular.


[Lembrando que o Rio de 1920, primeira metrópole brasileira, tinha 20% da sua população formada por portugueses.]


A torcida vascaína no Rio nunca foi associada pelo imaginário dos rivais aos ''negros'', e sim aos portugueses. A caricatura que se usava contra os vascaínos era a do 'dono da mercearia' ou da 'padaria', figura do comércio carioca tradicionalmente associada a portugueses. O escudo do clube, a Cruz Pátea [que erroneamente é chamada de 'cruz de malta'], o nome da instituição, o símbolo do Almirante, tudo faz menção às Grandes Navegações Portuguesas. O apelido depreciativo usado contra os vascaínos é ''bacalhau".

O pioneirismo quanto à presença de negros e mulatos nos times do Rio de Janeiro pertence ao time de operários do Bangu Atlético Clube, equipe da Zona Oeste suburbana da Gloriosa Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. O time de Francisco Carregal.


E antes que os vascaínos lembrem daquilo que eles convencionaram chamar de "Resposta Histórica" [a carta do Presidente do Vasco à AMEA, em 1924], convém lembrar que ela não era um documento contra o racismo. Não existe nada contra o racismo neste documento.






E não sou o único afirmando isto. Ricardo Pinto, doutor em História Comparada pela UFRJ, faz o mesmo no artigo abaixo.

[https://www.netvasco.com.br/n/277038/fundador-do-centro-de-memoria-do-vasco-diz-em-artigo-que-nenhum-grande-clube-do-rio-lutou-contra-o-racismo-no-futebol]


Seria uma conspiração? rs...Não, são tendências no interior da pesquisa histórica.


"Inicialmente, devo reforçar que a famosa carta de 1924, na verdade um ofício enviado a AMEA[4] e publicado pela imprensa, apresentada também por Mario Filho, em seu livro, ficou conhecida como grande marco da luta contra o racismo no futebol, foi um evento importante para o cenário futebolístico do Rio de Janeiro. No entanto, a partir das pesquisas, verificamos que o fato não apresentou nenhuma ressonância fora das fronteiras do Estado do Rio e em nada tem a ver com a luta contra o racismo, seja no esporte ou fora dele."

Claro que gera muita paixão por mexer com a memória construída em torno de um clube de massas. Mas é necessário reafirmar o pioneiro do Bangu contra a pseudo-narrativa consolidada em torno do Vasco da Gama.


Isso é conhecimento banal dentro dos debates acadêmicos sobre História Social e Cultural do futebol carioca. Citei a posição de Ricardo Pinto, professor de História Comparada da UFRJ. Mas o marco recente mais notável neste tema é Antônio Jorge Soares, em artigo publicado em 2001.


Em "O Racismo no futebol do Rio de Janeiro nos anos 20: uma história de identidade" o autor afirma, dentre outras coisas:

1) A visão de que o Vasco saiu da AMEA em 1924 por causa de um conflito contra o racismo é uma TRADIÇÃO INVENTADA por Mário Filho e outros, e que é reproduzida acriticamente por torcedores, imprensa e até por pesquisadores. É uma história de construção de identidade, não necessariamente a explicação correta para o que aconteceu no período;

2) A pesquisa demonstra que o debate em 1923/24 era sobre o problema do amadorismo/profissionalismo, que traz à tona questões de ordem classista e distinções sociais, mas não necessariamente raciais.


Quem estiver interessado neste debate acadêmico especifico pode recorrer à leitura do artigo. Eu separei imagens de alguns trechos. E também faço as seguintes citações:




"Observe-se que não são poucos os textos acadêmicos que reproduzem a “história do Vasco” como o clube que rompeu com o racismo no futebol. Tais artigos utilizam exclusivamente as interpretações contidas no livro de Mário Rodrigues Filho (1947, 1964), “O negro no futebol brasileiro” Esse livro se tomou “uma fonte inesgotável de dados”, que mais têm servido à construção de histórias de identidade do que auxiliado o processo de levantamento de novas fontes e de elaborações mais rigorosas sobre a dinâmica da instituição e popularização do futebol no Brasil (Soares, 1998, 1999). [...]Observe-se que, para ser justificada, a história do Vasco como o clube que rompeu com o racismo necessita apresentar indícios sobre as barreiras raciais existentes no futebol da época. Não se pode justificar tal história pelo simples fato do Vasco ter formado em 1923 uma equipe com negros, mulatos e brancos, por vários motivos: a) se existisse segregação, diretamente relacionada à questão racial, o Vasco não teria participado com essa equipe no Campeonato de 1923; b) o Vasco não foi o primeiro clube de futebol a ter negros e mulatos em suas equipes de futebol (Rodrigues Filho, 1964; Soares, 1998); c) na década de 20, negros e mulatos, ainda que poucos, já habitavam outros espaços sociais mais valorizados do que o esporte [...]Por exemplo, Mattos (1997, p. 87) afirma um processo de segregação explícita, no primeiro plano de sua narrativa, sem apresentar nenhum novo indício: a AMEA teria exigido que o Vasco retirasse os jogadores negros do time; depois atenua sua afirmação, dizendo que a AMEA “não proibiu que os negros fossem escalados nos times, mas criou uma série de regras a serem obedecidas pelos clubes” Entre tais regras figurava a de que os times só poderiam ser formados por trabalhadores que não exercessem funções subalternas e por estudantes. Para Mattos e os autores supracitados, o “ethos” do amadorismo funciona apenas com elemento dissimulador do racismo e da segregação. Devemos destacar que as atuais narrativas sobre esses eventos confundem, não distinguem ou não apresentam nuanças sobre os conceitos de: racismo, segregação, preconceito racial e distinção social. Assim, a repetição dessa história ou quase história, sem dados empíricos e sem fineza conceituai, valida e legitima a versão a ponto de transformá-la em um mito. "


Bom, eis aí o estado da questão.


O outro Pentateuco: o Samaritano

 


Se há quem se abale por saber que o texto massorético, em que se fundamenta as Escrituras Judaicas e os protestantes/evangélicos, foi elaborado por Rabinos durante a Idade Média, e que existiam diversas variantes do texto hebraico na Palestina do século I, imagina se eu falar do 'Pentateuco Samaritano'?



É que existe uma versão da Torah, a "Lei'', ou os cinco livros atribuídos ao Santo e Justo Profeta Moisés -- o Vidente de Deus --, compilada e usada pelos samaritanos.


Os samaritanos formam uma comunidade religiosa que se separou do Judaísmo, e cujo culto girava em torno do Monte Gerizim [hoje na Cisjordânia], em vez de Jerusalém. A história da separação entre judeus e samaritanos é um tanto complexa. Há uma versão judaica e uma samaritana para a origem da separação.


Para a historiografia, ela se deu de forma gradual e ao longo dos séculos. É possível confirmar a existência de um Templo no Monge Gerizim desde, pelo menos, o século V a.C., com uma linhagem sacerdotal própria e independente. Era um lugar de culto que existia na mesma época que o Segundo Templo de Jerusalém, portanto.


O Templo de Gerizim foi destruído na última fase do Reinado de João Hicarno, no fim do século II a.C., um período em que os Asmoneus impuseram, inclusive, conversões forçadas ao Judaísmo na Idumeia.


Também foi encontrada uma versão ou variante do ''Pentateuco dos Samaritanos" em Qumram. Ela contém cerca de seis mil variações em relação ao texto massorético atual [duas mil das quais concordam com a Septuaginta].


As variações mais importantes são quanto ao local de culto estabelecido por Iahweh [que os samaritanos dizem ser o Monte Gerizim], o papel de Moisés [que é ainda mais enfatizado], e a descrição muito menos antropomórfica da Divindade.





Desnecessário dizer que os samaritanos consideram sua Torah a verdadeira. E diferente das perspectivas historiográfias que vigoraram até recentemente, as traduções dos Pergaminhos do Mar Morto revelaram que não há meio de definir qual dessas diversas variantes era mais próxima de um lendário ''texto original''.


Muitos historiadores duvidam hoje em dia da tese de que existia uma texto único, um Urtext, que deu origem a múltiplas versões. Há quem diga que é mais provável imaginar um cenário em que múltiplas variantes eram normalmente aceitas ao longo dos séculos, até que foram uniformizadas em comunidades religiosas distintas [Septuaginta, no Judaísmo marcado pelo Helenismo, principalmente a partir de Alexandria; texto massorético, pela ação dos rabinos durante a Idade Média em cima de uma das variantes em hebraico circulando na Judeia; texto samaritano, pelos samaritanos que também usavam uma das variantes comuns na Palestina ao longos dos séculos].


De modo que voltamos à questão: temos a Septuaginta, cuja tradução se inicia em meados do século III a.C., e que era usada pela maioria dos judeus. É o texto utilizado pela Igreja dita ''primitiva'' da Era Apostólica.


E temos o texto massorético, trabalhado ao longo da primeira metade da Idade Média por escribas judeus que se consideravam herdeiros dos fariseus, e que tomou sua forma final entre o século VII e X da Era Cristã. Esta última passou a ser usada pelos movimentos protetantes.

sábado, 27 de janeiro de 2024

O Problema Sinótico e a Hipótese Q


Muitos cristãos são pouco familiarizados até com as linhas mais gerais das pesquisas sobre as origens do cânone bíblico ou, de modo mais específico, dos Evangelhos. Existe uma extensa literatura que debate sobre a formação dos livros, sua autoria, as fontes usadas e questões correlatas.


Os Evangelhos foram escritos mesmo por testemunhas oculares? Quais seus verdadeiros autores? Em que fontes eles se apoiaram para construir o texto? Os autores dos diferentes Evangelhos conheceram os textos uns dos outros? Qual a data em que os Evangelhos foram escritos? O que é exatamente o Problema Sinótico, e por que alguns falam tanto de uma ''fonte Q"? São problemas importantes não só para nosso conhecimento sobre o Novo Testamento mas também para todo um campo de pesquisas denominado ''Jesus Histórico".


Recentemente, parei para assistir alguns vídeos do professor da UFRJ André Chevitarese depois de descobrir que ele criou um canal no Youtube durante a pandemia a fim de divulgar suas pesquisas e cursos sobre o Jesus Histórico. O canal tem um bom público, e aqui e ali é citado como referência por pessoas interessadas nestas questões.


Fiquei decepcionado ao perceber que o modo de argumentação de Chevitarese pouco mudou nos últimos vinte anos. Ele continua apresentando hipóteses e especulações como se fossem ''conhecimento consolidado'' e criando espantalhos constrangedores quando contestado.


Nos vídeos, Chevitarese zomba de quem adverte que a fonte Q é só hipotética, dizendo que ''existem mais de 15 mil trabalhos, artigos e livros'' dedicados a ela, e que proposta remonta a ''teólogos alemães do início do século XIX".


Bom, e daí? Q continua uma hipótese. Não há nenhum sinal concreto de sua existência. Nenhum fragmento, nenhuma menção em obra ou autor da Antiguidade. Existem hipóteses ainda mais antigas, como por exemplo a dos dois evangelhos. Além disso, nem todas as questões levantadas pelas comparações entre os evangelhos são resolvidas por Q.


Pior ainda, diferente do que o pesquisador diz nos vídeos, o status de Q nos estudos do Jesus Histórico caiu muito nas décadas mais recentes. Vinte e cinco anos atrás, quando Chevitarese passou a se dedicar a esse tema, a hipótese das duas fontes era praticamente um consenso historiográfico. Q era uma tese tão hegemônica que o ''problema sinótico'' era praticamente dado como resolvido.




Mas desde que Mark Goodacre publicou Case Against Q, em 2002, o panorama mudou. Ano após ano, a confiança da Academia em torno da hipótese foi diminuindo. Hoje em dia, ela continua sendo a solução mais forte, mas está muito longe de ser incontroversa, muito menos conclusiva. O status quaestionis é de que o problema sinótico persiste.


Surpreende as afirmações de Chevitarese de que temos ''dois documentos'' com uma teologia prístina sobre Jesus: a Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios, em que Cristo é apresentado com um status divino, cuja paixão e ressurreição nos redime dos pecados, e que teria constituído Doze Apóstolos para espalhar a Boa Nova; e Q, ''em que Cristo não tem Apóstolos, e sim seguidores [tanto homens quanto mulheres], e em que não Ressuscitou".


Não temos dois documentos. Temos um só, a carta de São Paulo. O outro é pura especulação de Chevitarese, não só porque Q é hipotético, mas também porque não há segurança sobre seu conteúdo. Ninguém sabe ao certo a inteireza e o teor de Q, caso tenha existido. Existem tentativas, mais ou menos fortes, de elaborar como essa fonte seria. Mas essas reconstruções são ainda mais hipotéticas do que a própria existência de Q, por motivos óbvios.


Mas o professor Chevitarese grava os vídeos cravando que Q existiu, que dada reconstrução dessa fonte hipotética é líquida e certa, e que ela permite assegurar o que seria o cristianismo primitivo de judeus helenizados da Galileia dos anos 40 e 50 do primeiro século. E ainda joga ''anátemas acadêmicos'' e dá carteiradas em quem ousa levantar dúvidas.


Uma lástima completa.


Bom, o que significa Q? Por que essa hipótese foi hegemônica e agora perdeu força? Que problema visa solucionar?

Vamos entender primeiro no que consiste o Problema Sinótico.

Dos quatro evangelhos canônicos, três são bastante similares: Mateus, Marcos e Lucas. Eles tem uma estrutura narrativa parecida, se referem a um número imenso de episódios comuns, e muitas vezes se utilizam das mesmas frases para contar esses eventos.

Para se ter noção do nível de concordância: mais de 95% do evangelho de Marcos está contido em Mateus. 80% de Marcos está em Lucas. E dois terços do texto de Lucas coincide com o de Mateus em algum grau [70% de Mateus está em Lucas]. O conjunto de passagens comuns a a esses três Evangelhos é chamado às vezes de ''tripla tradição''.

[Notem que um quinto do Evangelho de Mateus não se encontra em nenhum dos outros dois. O mesmo acontece com um terço do evangelho de Lucas.]

Alguns creem que as similaridades se devem à existência de um mesmo autor espiritual, uma forma de inspiração divina mecânica, que faz com que esses textos usem as mesmas palavras, quase como se estivessem sendo ''ditadas'' por um mesmo espírito. Mas essa posição, além de reproduzir uma visão um tanto polêmica do que seria a inspiração divina, não dá conta de explicar as diferenças, que também são importantes, entre estes três evangelhos.

No campo da pesquisa histórica, as semelhanças entre os evangelhos sinóticos [Mateus, Marcos e Lucas] levou a um conjunto de pretensas soluções. Uma delas seria imaginar a existência de fortes tradições orais capazes de se manter quando da redação dos três textos.


Ninguém duvida que as perícopes, histórias e 'ditos' de Jesus Cristo corriam à solta em forma oral nas primeiras comunidades cristãs. Mas essas tradições primevas provavelmente eram em aramaico, língua comum da Palestina do primeiro século, enquanto os evangelhos canônicos se encontram em grego. Ora, supor que esta tradição oral ficasse incólume ao ser vertida para o grego a ponto de reproduzir frases inteiras com a mesma sequência de palavras e até o uso dos mesmos verbos seria tão incrível quanto a hipótese da ''psicografia'' que mencionei aí em cima.


De modo que resta supor que as semelhanças existem porque os redatores dos três evangelhos tinham alguma dependência um do outro ou porque usavam fontes LITERÁRIAS comuns. E aí vem a questão de saber quem depende de quem ou que fontes literárias comuns seriam essas. Lucas já tinha lido Mateus? Marcos conhecia o texto de Lucas? Qual deles escreveu primeiro?


Percebam que nada aí atenta contra a fé cristã ou a inspiração dos textos. Desses três evangelistas, só um era supostamente uma testemunha ocular dos eventos: Mateus. Segundo a Tradição, Marcos era discípulo de São Pedro em Roma. E Lucas era companheiro de viagem de São Paulo. Aliás, o próprio São Lucas afirma no início de seu Evangelho que existiam outros textos sobre Jesus circulando, e que ele estava construindo uma composição baseado em uma investigação que dependia do testemunho de terceiros.


Pois bem, a hipótese Q, mais pomposamente chamada e ''teoria das duas fontes'', é uma das formas encontradas de se responder a este enigma. Ela foi elaborada, inicialmente, por teólogos alemães [protestantes] em meados do século XIX; e no último terço do século XX se tornou hegemônica, quase definitiva, nos estudos do Jesus Histórico.


Esta hipótese se fundamenta nas evidências internas dos textos e em princípios de razoabilidade e probabilidade. Isso significa também que ela não dá a mínima para as evidências externas, ou seja, os testemunhos fornecidos por obras e autores da Antiguidade, como os Padres da Igreja -- que tinham suas próprias visões sobre como estes evangelhos foram escritos. A restrição a elementos internos dos evangelhos é uma força ou uma fraqueza da teoria, a depender do ponto de vista.


Resumindo bastante o assunto, a hipótese parte de dois pilares:


i. Marcos teria sido escrito primeiro que os demais. Segundo os defensores da hipótese, a precedência de Marcos decorre de ser um texto mais curto, com teologia menos elaborada, gramática muito menos rebuscada, e pelo fato de estar contido quase inteiro em Mateus e Lucas. Para eles, seria estranho que Marcos fosse escrito depois e tivesse ''cortado'' vários episódios presentes nos dois outros sinóticos.


ii. Mateus e Lucas seriam completamente independentes, ou seja, Lucas não conhecia o texto de Mateus e vice-versa. Eles não consideram crível que houvesse dependência recíproca e ainda assim esses dois textos apresentassem discrepâncias tão sensíveis quanto a genealogia e o nascimento de Jesus. Mateus fala de Reis Magos e do massacre de inocentes em Belém a mando de Herodes [e a consequente fuga de José e sua família para o Egito]. Por que Lucas deixaria isso fora de seu texto? Além disso, Lucas dá informações importantes, como a de que João Batista [o Precursor] era parente de Jesus Cristo. Por que Mateus se calaria sobre isto?



Se os dois pontos acima estão corretos, é fácil imaginar que tanto Lucas quanto Mateus tenham sido redigidos tendo Marcos em mãos. Pronto, isso explica porque metade de Mateus e 40% de Lucas convergem com Marcos. Aí vem o outro 'porém' necessário para entender a totalidade da hipótese: 1/4 de Mateus e Lucas coincidem mas não estão presentes em Marcos. Quer dizer, 1/4 dos episódios em Mateus estão em Lucas [e vice-versa] com sequências de palavras e até verbos e frases iguais. Mas esses episódios não estão em Marcos -- chamamos a isto de dupla tradição, pra diferenciar da tripla tradição, a saber, os episódios que constam em todos os três sinóticos --, o que leva a supor que Mateus e Lucas escreviam não só com Marcos em mãos, mas com um segundo documento literário, uma segunda fonte, que foi batizada de Q [do termo ''quelle'', que significa 'fonte'].


E assim se resolve, segundo os apoiadores dessa tese, o problema sinótico. As concordâncias entre os redatores independentes Mateus e Lucas se devem ao fato de ambos usarem duas fontes em comum, os textos mais antigos de Marcos e de Q. O terço do Evangelho de Lucas que está só em Lucas, e em nenhum outro evangelho, assim como o quinto de Mateus que só se encontra em Mateus e mais ninguém, dizem respeito a tradições independentes usadas por cada um destes redatores. [Daí que a tese original das duas fontes pode se desdobrar facilmente em quatro fontes originais: Marcos e Q, e talvez M e L -- de Mateus e Lucas --, sejam estas duas últimas múltiplas ou não, tradições orais ou escritas].


Alguns foram ainda mais longe, tentando reconstruir o que seria Q a partir das convergências em Lucas e Mateus que são atribuídas a este documento. Dentre os defensores, passou a ser forte a opinião de que Q não teria uma estrutura narrativa, seria um ''evangelho de ditos''. Ou seja, de parábolas, aforismos, frases atribuídas a Cristo, mas sem contar uma história.


Daí o furor quando o Evangelho de Tomé foi encontrado no Egito em 1945, pois ele se trata de um texto apenas de ''ditos''. Os defensores de Q tiveram a certeza de que estavam na pista certa, e a tese se tornou hegemônica durante o restante do século XX, e quase que incontestada a partir dos anos 1970, quando a tradução de Tomé foi publicada. A existência de Tomé provava que os primitivos cristãos tinham coletâneas escritas de ditos de Jesus, o que tornava a hipótese Q ainda mais crível.


[O Evangelho de Tomé é uma história à parte. Sua existência já era conhecida por escritos de Padres da Igreja do início do século III, como São Hipólito de Roma e Orígenes. A cópia encontrada em Nag Hammadi é de meados do século IV, mas ela permitiu identificar fragmentos da segunda metade do século II e primeira metade do século III como passagens deste evangelho. Alguns pesquisadores entusiasmados chegam a datar o 'original' na primeira metade do século I, o que o tornaria uma dos documentos mais antigos sobre Jesus. Mas hoje essa posição é minoritária, e a Academia tende a considerá-lo um texto do segundo terço do século II. De todo modo, as camadas de tradição oral no Evangelho de Tomé são bem antigas: 80% dos ditos contidos ali tem paralelos nos Evangelhos canônicos. O restante é provável adição gnóstica -- a cópia foi encontrada junto a um conjunto de textos gnósticos. Outra questão é saber qual é a dependência de Tomé em relação aos canônicos. Os redatores de Tomé conheciam e usaram Mateus, Marcos, Lucas e João? Não se sabe, mas muitos consideram possível.]


Problema resolvido? Longe disso. A tese das duas fontes começou a perder fôlego na Academia a partir do início dos anos 2000. Ela já não é incontroversa, nem incontestável, nem a única no ''mercado intelectual''. O primeiro grande obstáculo para sua aceitação é que, se levarmos em consideração todos os argumentos para Q [prioridade de Marcos, independência completa entre Lucas e Mateus, evangelho de ditos, desprezo pelas evidências externas etc.] ainda assim a hipótese não resolve todas as questões dos sinóticos. A mais constrangedora dela são as ''concordâncias menores" entre Lucas e Mateus.


Como assim?


É que Mateus e Lucas não ''copiam e colam'' de Marcos. Eles redigem em cima da fonte Marcos. Eles pegam o texto e o reescrevem. Nessa reescrita, temos o uso de frases ou sequências de palavras inteiras em comum, mas é sempre uma ''reedição'', não uma cópia pura e simples. Os textos de Mateus e Lucas que supostamente usam Marcos como fonte tem estilo próprio e podem divergir de Marcos em detalhes, acrescentando ou retirando algumas palavras, usando um grego mais rebuscado etc. Ou seja, na redação existiriam ''desvios'' e pequenas mudanças em relação ao ''original'' [Marcos]. Nenhum mistério até aqui.


O problema é quando a redação de Mateus se desvia da de Marcos em um mesmo trecho em que a redação de Lucas se desvia também, e no entanto os dois desvios coincidem um com o outro. Ou seja, Mateus e Lucas, fazendo suas redações em cima de Marcos, e supostamente sem conhecerem o texto um do outro, fazem mudanças no original [retirando palavras, acrescentando palavras, dando esse ou aquele nuance] de maneira simplesmente...idêntica! Isso não acontece apenas um ou duas vezes. Mas dezenas de vezes.


Óbvio que se trata de um problema acachapante e aparentemente insolúvel pela hipótese das duas fontes. Será que Q também inclui estruturas narrativas que coincidem com Marcos e que são usadas por Mateus e Lucas nesses trechos? Será que é a tradição oral? Como resolver?


Até que alguns pesquisadores notaram, finalmente, que o problema das ''concordâncias menores'' em Mateus e Lucas poderia ser solucionado derrubando um dos pilares da hipótese das duas fontes: basta que Lucas tivesse acesso a Mateus [ou vice-versa] para explicar a dupla tradição. Se Lucas usa não só Marcos mas também Mateus como fonte [ou se Mateus usa Marcos e Lucas], então não só a tripla mas também a dupla tradição estão solucionadas.


Só que isso também torna a hipótese Q totalmente irrelevante, resolvendo também outro pretenso ''mistério'': por que não se encontra nenhum fragmento desse importante documento, e por que ele não é citado por nenhum autor da Antiguidade, seja ele Padre ou não da Igreja? Bom, talvez porque ele nunca tenha existido.


As alternativas para a hipótese das duas fontes podem ser multiplicadas, mas acho que as linhas principais são essas. Cabe acrescentar dois tópicos: nem mesmo a prioridade de Marcos é incontroversa. É verdade que ela é aceita pela maioria dos estudiosos do problema sinótico, mas tudo se baseia em argumentos de razoabilidade construídos em cima de evidências internas dos próprios textos. Portanto, nada disso é conclusivo.


Nada implica que Marcos não possa ser uma versão mais curta dos outros dois Evangelhos. Que se fundamente principalmente na pregação [kerigma] de São Pedro [e portanto seja econômico em sua estrutura narrativa]. O texto deste Evangelho de fato apresenta um padrão de construção mais próximo à oralidade, similar a um discurso longo, uma ''pregação'', e traz também ''latinismos''. Por uma análise crítica, é bastante razoável supor que tenha origem de fato na Itália.


Pode acontecer também de Marcos ser uma transição entre Mateus e Lucas [em vez de anterior ou posterior a ambos]. Nenhuma dessas opções pode ser decisivamente excluída só com base em evidências internas aos textos. Pode-se, no máximo, argumentar sobre o que seria mais ou menos provável.


Este é um ponto importante porque todo debate acima se dá minimizando o peso do que foi dito pelos próprios Padres do segundo e terceiro séculos. Alguns deles trataram da origem dos Evangelhos. O testemunho mais antigo é o de São Papias, que por volta do ano 100, e portanto ainda mergulhado na era apostólica, afirmou que Mateus tinha escrito primeiro uma versão em ''estilo hebraico'', mais tarde traduzida para outras línguas, e que depois Marcos, em Roma, colocou por escrito as pregações de São Pedro.


São Clemente de Alexandria e Santo Irineu de Lyon, também escrevendo no segundo século, concordam com Papias quanto a prioridade de Mateus. [A hipótese atual mais forte que mantém a prioridade mateana é a de Griesbach -- chamada também de ''teoria dos dois evangelhos'' por supor a prioridade de Mateus e Lucas].



Finalizando, chamo atenção para o que diz a Santa Tradição, que não entra nessas querelas acadêmicas: o primeiro Evangelho é o do Glorioso São Mateus, que o escreveu em hebraico ainda nos anos 40 e depois o verteu para o grego; São Marcos escreveu seu Evangelho em cima da pregação de São Pedro, quando em Roma; São Lucas escreveu seu Evangelho quando em missões ao lado de São Paulo; e, por fim, São João escreveu seu texto por último, já depois da destruição do Templo.


ps.: Os primeiros documentos que temos sobre Jesus não são os Evangelhos, e sim as cartas de São Paulo, algumas datadas da virada dos anos 40 para os 50. O que inclui as alegações na primeira carta aos coríntios, capítulo 15 ["eu vos transmiti primeiro o que eu mesmo havia recebido...''], evidenciando que a Ressurreição é, indiscutivelmente um dos ensinamentos mais prístinos na história do cristianismo.

pps.: o Evangelho de São João Teólogo é considerado uma tradição independente dos sinóticos. Os historiadores datam sua redação final da última década do primeiro século. Ele é marcado por um retorno à polêmica com os judeus, em um contexto em que os cristãos já estavam completamente apartados das sinagogas, além de uma resposta aos ebionitas [que negavam a divindade de Cristo].