segunda-feira, 20 de abril de 2020

UMA TERRA EM TRANSE, ou: a oposição está tão nua quanto Bozó

O político 'profissional' Diaz, ''pai da Pátria'', um místico reacionário que usa a religião para manter seu poder em Alecrim, cidade de Eldorado, usando seus aliados de hoje como escadas para o governo e com um ódio inato por qualquer
vislumbre de poder popular

A oposição político-partidária não age para derrubar Bozó porque não tem lideranças nem um discurso forte de modo a reunir todo o repúdio que ele causa e dar um xeque-mate no [des]governo. Essa análise vem das próprias fileiras dos partidos de oposição.


Evidente que ela não está disposta a encarar o imenso desgaste que um movimento forte contra o Reino causaria. Parece arriscado demais aos olhos desse campo, que prefere esperar por um quase consenso social sobre a necessidade de derrubar Bozó.


É possível que eles imaginem que esse consenso será formado quando os sepultamentos em massa começarem. E não estamos muito longe desses tenebrosos dias.


Resumindo, a ''estratégia política'' da oposição partidária é esperar um grande número de mortes de brasileiros, pra aí se ver forte o suficiente de modo a ter coragem de fazer o que deveria estar sendo feito desde já para que essas mortes em massa fossem evitadas ou minimizadas.


Não sei se esse ''cálculo político'' é tão melhor que o cálculo do próprio Bozó. Parece tão anti-patriótico e covarde quanto a propaganda em cima da hidroxicloroquina, as carreatas contra o isolamento social dos pobres, as declarações de que o brasileiro tem de ser jogado no esgoto pra criar imunidade contra doenças.


Qual o papel da oposição no transe por que passa Eldorado?


Afinal, as pesquisas revelam que a maioria esmagadora da população é favorável ao isolamento, e pensa, inclusive, que ele deveria ser imposto pela força da lei. O eleitorado deu aprovação esmagadora a Mandetta no confronto do Ministro com o Presidente.


Ainda assim a oposição duvida das próprias possibilidades. Ao mesmo tempo que declara que Bozó é o pior governante da história, que se trata de um sociopata genocida, e o compara com o diabo encarnado -- que no discurso colonizado assume a figura de Hitler, que diz muito pouco para o imaginário do povão --, tem medo que a população escolha o lado do capeta caso ocorra uma disputa direta.


Talvez a oposição não se acredite tão melhor assim que o coisa-ruim. Talvez ela seja quase tão feia quanto o cramulhão, pelo menos aos olhos do povo.
Paulo Martins, poeta, intelectual de ímpeto revolucionário, não segura seu desprezo diante das opiniões populares. Quando um representante das camadas médias do proletariado começa a falar, Paulo o cala e pergunta: ''imagina se esse povo chega ao poder?!" Já os estratos mais pobres da população sequer tem direito a reivindicação. Ou são taxados de extremistas ou tratados com sadismo pelo intelectual, que nutre o desejo inconfesso de provar o quão subservientes os populares são


A verdade é que o eleitorado compara o mentecapto que está no Palácio do Planalto com suas alternativas e não considera uma possível reviravolta política tão bacana assim.


Afinal, Bozó se ajoelha diante de religiosos, defende valores populares sobre aborto e casamento e armas, e se erige em inimigo da grande mídia e de instituições republicanas que não tem respaldo nem grande legitimidade pro povão.


Se fizermos um levantamento qualquer nos bairros populares sobre o prestígio das instituições e compararmos os resultados sobre Igreja e Forças Armadas com as respostas a respeito do Congresso, partidos políticos, grande mídia e STF, os resultados serão desalentadores para os burgueses ''iluminados''. E no fundo, eles sabem do próprio fracasso, do desprezo popular às suas ideias e às perspectivas que tem para oferecer.


Bozó é um estúpido. E aí ele ataca a Globo, a Folha de SP, o Congresso, o STF, a ''velha política'', e cita versículos bíblicos enquanto critica o identitarismo pós-moderno. É o suficiente pra um energúmeno sem partido permanecer no poder fazendo merda em meio a uma pandemia.


Isso deveria fazer a oposição perceber o quanto suas posições sobre ''democracia'', ''República'', ''laicismo'' e ''progressismo'' são frágeis e ANTI-POPULARES.


A existência de Bozó é a demonstração que todas as hesitações da oposição, supostamente nacional e popular, em adotar uma postura realmente revolucionária era, no fim das contas, apenas pusilanimidade.


Pouco serventia há nessa oposição, que reconhece que é pusilânime, se esconder da própria consciência com xingamentos no twitter.


Pior ainda se enveredar pelo pior caminho possível, que é o de culpar o povo, revelando assim que toda sua sensibilidade ''democrática'' não passa de um verniz que esconde a defesa por um governo de classe média liberal.
Felipe Vieira, eleito governador com apoio das massas e promessas de transformação, é sempre hesitante diante de seus compromissos com classes médias e elites, e no momento da maior radicalização prefere desistir da luta por causa dos riscos implicados


E a oposição político-partidária é doida de vontade de dar esse veredito contra o povo. Ela é mais ou menos como o poeta Paulo Martins, protagonista do clássico imortal ''Terra em Transe'', calando com as mãos a boca de um representante [das camadas intermediárias] do povo por não suportar o que ela dizia. [''Esse povo é nazistoide, vulgar, burro!"] E que prefere não reconhecer a ''Ralé'', que no filme é chamada de ''extremista'' e sequer tem direito a existência social.


Porque o verdadeiro papel da oposição foi revelado mais uma vez pela pandemia. Não é só Bozó que está nu no meio da praça, como um palhaço e bufão. Seus supostos inimigos no campo partidário também estão.


Eles são o político Felipe Vieira, cujas promessas de mudança social são apenas fanfarronices demagógicas que não suportam a ruptura de um só dos compromissos com a classe média e as elites reais, muito menos qualquer sinal de radicalização. Não são líderes, mas ''políticos'', que na hora 'h' escondem a fraqueza em discursos vãos sobre a sacralidade do sangue das massas.


Glauber era um gênio.


sábado, 18 de abril de 2020

BOZÓ, O ''MACACO TIÃO'' COM QUE OS BRASILEIROS ZOMBAM DA NOVA REPÚBLICA DA CLASSE MÉDIA LIBERAL

Macaco Tião - O Candidato do Povo (2017)
Macaco Tião, o candidato do povo. Atração do Jardim Zoológico do Rio, jogava urina,fezes e restos de comida no distinto público. Era imbatível nas eleições do Rio de Janeiro naqueles dias de votos em cédulas de papel.
Como vamos escrever sobre os anos Bozó? Com aquele derrotismo pessimista dos progressistas, que pensam que devem, do alto de todo seu ''Iluminismo'', rechaçar o povo que reduziu os valores e dogmas liberais ao pó na sacrossanta urna?

Prefiro abordá-lo com uma idéia poderosa como ''A subversão pelo riso'', título usado por Rachel Soihet em importante obra sobre o carnaval. Só assim se explica o resultado dessa nova pesquisa do DATAFOLHA, reparem bem!

79% dos entrevistados disseram concordar com punição para quem quebrar a quarentena. As sanções citadas são, principalmente, advertências verbais e multas, mas houve quem lembrasse da prisão. Está aberto o caminho para um verdadeiro lockdown, necessário já a partir do fim da próxima semana.

O interessante, no entanto, é notar que cerca de um terço desse mesmo eleitorado aprova a maneira como Jair Bozó se comporta durante a epidemia. Ora, o Presidente passa a mão nas narinas e enche de meleca as corajosas mãos que se estendem para ele; desrespeita decretos de governadores e come sonhos em padarias; prega o fim imediato do isolamento e a ''abertura das lojas''; proclama que o brasileiro pode mergulhar no esgoto que não vai acontecer nada etc.

Enfim, aparentemente há uma incompatibilidade entre as duas pesquisas. Afinal, se uma pessoa aprova punição para quem desrespeita a quarentena, não pode avaliar positivamente as ações e palavras do homem que suja a faixa.

A saída mais fácil para esse quebra-cabeças seria dizer, ''ora, ninguém é um manual de coerência, contradições todos possuímos''. Concordo, mas nesse caso a inconsistência é flagrante demais, e em um tema que está sendo debatido exaustivamente na mídia, nas ruas, nas casas, durante as últimas quatro ou cinco semanas.

A única resposta possível é que, se deixarmos de lado a esgotolândia, aqueles 15% do eleitorado fanatizado e que cultua Jair Bozó como o novo Messias -- por diferentes razões, nem todas elas desinteressadas nem muito menos religiosas --, a maior parte dos que suportam o Presidente a ponto de tascarem um ''bom'' ou ''ótimo'' numa pesquisa sobre o desempenho do governo o faz por causas que passam muito longe do conteúdo do discurso e do programa do atual governo.

A minha hipótese é que parte considerável dos apoiadores de Jair o veem mais ou menos como um bichinho de estimação, um comediante, um palhaço, um entretenimento. É como se Jair Bozó fosse o ''Ratinho'' da política, que o povo gosta de assistir pra rir à vontade, mesmo sabendo que a performance toda não passa de uma grande idiotice.

Bozó é uma vingança bem-humorada da população contra as instituições. Na medida em que ele sacaneia a Globo, é politicamente incorreto, desafia os dogmas dos liberais e progressistas, representa uma revanche sarcástica dos brasileiros contra essa República de mentirinha construída de cima pra baixo, e à qual a maioria do povo não dá crédito nenhum.

Desconfio que a maior parte dos que aderem ao Reino caem na gargalhada com o ''Didi Mocó'' do campo político-partidário. Nesse aspecto, Bozó é muito mais divertido do que Fernando Henrique Cardoso, com aquela pompa de intelectual da USP com sotaque francês, ou que Dilma-má, símbolo da ''ascensão feminina'' no mundinho mesquinho da política. Dilma é a anti-piada.

Mas aí alguém pode contra-argumentar: tá bom, o povo brasileiro, em sua sempiterna sabedoria, está gargalhando com as situações criadas por Bozó e com o constrangimento da classe bem educada com as saias justas provocadas pelo mentecapto-mor. Mas isso não é muito perigoso? Afinal o cara é miliciano, psicopata, liberaloide, perigoso em meio a uma crise.

Só que o povão se acostumou desde sempre a andar no fio da navalha, a viver em meio a tiro, porrada e bomba, com todos os direitos individuais e políticos desrespeitados. É um malandro que balança, mas não cai. Tem confiança na sua sobrevivência, sabe que, quando só restarem apenas ruínas do país, ele permanecerá ainda assim de pé, nem que seja pra fazer um carnaval.

Quando ainda existiam líderes capazes de expressar as necessidades da população, seja porque participavam de seu imaginário, ou porque assumiam o papel de comandantes liderando a massa para o grande delírio do retorno de São Sebastião, os brasileiros ainda se permitiam levar a política institucional mais ou menos a sério. Mas agora que é terreno de uma classe média que se imagina londrina e cujos valores são alienígenas, o escárnio se tornou a única reação possível ao que essa gente estranha e de hábitos esquisitos considera muito importante.

E Bozó representa o escárnio com que a população brasileira trata essa atual República. É um Macaco Tião atirando a própria merda nos espectadores e levando a garotada ao riso geral, anárquico, dionisíaco, libertador.

Como Alexandre Frota disse, de modo muito preciso, ''e daí? é tudo uma putaria mesmo....''

segunda-feira, 13 de abril de 2020

Vargas, o Estado Novo e o Fascismo, ou: o pedágio que alguns supostos trabalhistas teimam em pagar para liberais


De olho na História: Estado Novo | Curso Enem Play | Guia do Estudante

Um mês atrás, empenhados em atrair o apoio de movimentos que fazem do termo “fascismo” um xingamento retórico no campo político, alguns supostos trabalhistas buscaram negar que houvesse qualquer vínculo, associação ou influência fascista na CLT.

Tive de refutar a alegação pra proteger a verdade histórica. As refutações podem ser lidas nas seguintes threads, que estão reproduzidas nas notas desse texto [https://www.facebook.com/constantor/posts/2810772795644384(1),https://www.facebook.com/constantor/posts/2814501851938145 (2)]. 

Elas não foram respondidas para além de alegações de que existe uma conspiração acadêmica contra o Trabalhismo, um tipo de contra-argumento que está no nível da crença na terra plana ou da negação da existência de uma epidemia de Covid-19 realizadas por sujeitos ligados ao [des]governo dos Bozós. Ou seja, nada para ser levado a sério, só para se lamentar.

Ontem, Léo Camargo escreveu um artigo para o Portal Disparada citando o Nova Resistência e visando provar que o Estado Novo não era fascista, nem tinha qualquer influência fascista [https://portaldisparada.com.br/cultura-e-ideologia/vargas-nao-influencias-fascismo/?fbclid=IwAR0b3FQGEI5PXzeZXtqcDZmf-KpXuAdS3Oi02fIhWSP8sUDV5QAe-IxmOHU]Mais ainda, o Estado Novo seria um tipo de “Estado Castilhista”. 

As tentativas de demonstrar o ponto não passam de manobras erísticas que não resistem ao exame mais superficial. Já encontraram resposta, inclusive, nas minhas considerações anteriores em relação à CLT, já que citei trechos de obras de historiadores, juristas, sociólogos e antropólogos declarando que o fascismo serviu de modelo e inspiração para diversos âmbitos do regime varguista: Justiça do Trabalho, Ideologia Política, Organização econômica, doutrina militar, política de imigração, Educação, Propaganda, e até na Constituição.

Ainda assim, vou colocar em relevo alguns problemas desse novo texto. Seu autor, sem apresentar nenhuma definição do que entende por Fascismo, pensa que basta citar um afastamento entre Getúlio e Francisco Campos para negar que desde 1934 o grupo político em torno de Vargas flertava com o corporativismo, e que assim, num salto lógico que só a retórica vazia é capaz de explicar, não haveria qualquer influência fascista no Estado Novo. O mesmo critério, no entanto, não serve para o autor negar a natureza castilhista da ideologia getulista dos anos 1930 quando se sabe da ruptura entre ele e Borges de Medeiros, maior líder da oligarquia gaúcha dos anos 1920. Coerência para quê quando se trata nada mais, nada menos do que wishiful thinking? A mesma linha argumentativa levaria a crer que a doutrina Góis não foi determinante no arranjo político do Estado Novo, já que Góis Monteiro depôs Getúlio em 1945. Ou seja, não conseguiria ligar ''lé com cré'' e perderia completamente o ponto em debate.

De modo similar, o autor não vê problema em dizer que os elementos corporativistas “foram adotados para a realização do lema comtiano da incorporação do proletariado à sociedade modernae logo à frente citar entrevista em que o próprio Getúlio diz: “Quem me influenciou foi Saint-Simon, não Auguste Comte. Os que conhecem estes filósofos sabem das diferenças marcantes entre eles.’’

Ora, o Vargas fortemente positivista, que como deputado militava contra as ingerências da Igreja Católica na educação e escrevia discursos pesados contra o cristianismo em sua juventude, é o mesmo que adotaria outra posição em relação ao catolicismo-romano quando no Poder Executivo, citaria a Doutrina Social da Igreja como uma das fontes para o Trabalhismo e se casaria religiosamente em cerimônia privada, longe portanto dos olhares da imprensa, explicando em seus Diários que tudo isso se devia à natural mudança de seu pensamento.  

Mas para Léo Camargo não houve mudança nenhuma. Se Vargas cresceu sob influência do castilhismo rio-grandense, então o Estado Novo só poderia ser um Estado castilhista. Pela mesma linha de raciocínio, se Getúlio cresceu tendo por modelo o Marechal de Ferro, logo o Estado Novo só poderia ser florianista. Não passa na cabeça do autor que essas influências se agregaram a outras ao longo do caminho do maior líder popular do país.

Não bastasse todos os autores citados,  o Nova Resistência possui uma definição de Fascismo. E como representante de um movimento nacionalista autoritário anti-liberal e anti-comunista, Getúlio era fascista, filo-fascista ou, no mínimo, bastante influenciado pelo fascismo. E o fato dos ideólogos do regime buscarem apresentá-lo como um caminho próprio e singular, que não poderia ser assimilado a experiências estrangeiras, não diz absolutamente nada contra isso: todo Fascismo se apresentava exatamente assim. O próprio Integralismo, que Léo Camargo cita como contraponto ao "verde-amarelismo", também nega ser fascista, bradando aos quatro ventos que é completamente autóctone.

De restante, o Trabalhismo é de fato uma criação brasileira, como a defende Brizola e como sustenta o Nova Resistência. Daí não se infere que tenha caído do céu, ou que seu desenvolvimento não tenha se dado em determinados contextos históricos e permeada por diversas determinações, como o próprio autor do artigo admite em relação ao socialismo utópico, Comte, Júlio de Castilhos e da Igreja Católica. Só falta deixar a frescura de lado e admitir que não vai conseguir esconder os elementos fortemente fascistas debaixo do tapete. Ele não vai convencer ninguém que já não esteja convencido de antemão, principalmente na maior parte da esquerda. 

Como eu disse anteriormente, o Nova Resistência não é um movimento nem fascista, nem católico-romano, nem florianista, nem positivista e nem castilhista. Mas não esconde que o Trabalhismo possui todas essas influências em seu processo de formação, sem no entanto se reduzir a nenhum deles. É que não temos "vergonha" do getulismo nem pretendemos pagar pedágio àqueles que foram inimigos da Democracia Social pela qual Vargas viveu e morreu. A vitória é nossa, dos trabalhistas, não dos liberais de direita e de esquerda.

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(1) 
Segundo alguns trabalhistas e pedetistas, Getúlio Vargas não era fascista nem teve qualquer influência do fascismo no seu governo. Na verdade, segundo eles, Vargas era inclusive um grande anti-fascista!
Infelizmente para eles, mesmo os acadêmicos que negam o caráter fascista do regime de Vargas -- por preferirem um conceito mais estrito e limitado de fascismo -- afirmam, peremptoriamente, que existiam influências diretas do fascismo no Estado Novo.
Abaixo, alguns trechos de obras de alguns dos historiadores, juristas, sociólogos e antropólogos declarando que o fascismo serviu de modelo e inspiração para diversos âmbitos do regime varguista: Justiça do Trabalho, Ideologia Política, Organização econômica, doutrina militar, política de imigração, Educação, Propaganda, e até na Constituição.
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''Nesse quadro geral de emergência de regimes totalitários e autoritários, tanto na Europa do Leste como na Europa ocidental, é possível apontar alguns regimes com direta influência na organização do Estado Novo e na construção de sua ideologia. Chovendo no molhado, lembro, por exemplo, que a moldura sindical do Estado Novo teve forte influência da Carta del Lavoro, vigente na Itália de Mussolini, e que as técnicas de propaganda estado-novistas foram muito influenciadas pelo exemplo nazi-fascista.''

Boris Fausto, ''O Estado Novo no contexto internacional''
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''Os mesmos pressupostos fáticos e doutrinários subjacentes, na Itália, à criação da Justiça especializada fizeram-se presentes, no Brasil, quando aqui se cogitou de criar a Justiça do Trabalho, até no tocante à proibição da greve. Na mesma sessão já referida, em que decidiu reconhecer os sindicatos fascistas e instituir a Magistratura del Lavoro, o Gran Consiglio Nazionale del Fascismo vedou a greve: “O Gran Consiglio entende que onde existe a Justiça do Trabalho deve ser proibida a autodefesa de classe, isto é, a greve e o lockout, e que, em qualquer caso, deve ser vedada a greve dos funcionários públicos e servidores dos órgãos estatais”. No Brasil, o art. 139 da Carta de 10 de novembro de 1937 declarava: “Para dirimir os conflitos oriundos das relações entre empregadores e empregados, reguladas na legislação social, é instituída a Justiça do Trabalho, que será regulada em lei e à qual não se aplicam as disposições desta Constituição relativas à competência, ao recrutamento e às prerrogativas da Justiça Comum. A greve e o lockout são declarados recursos anti-sociais, nocivos ao trabalho e ao capital e incompatíveis com os superiores interesses da produção nacional”. A greve era proibida pela Lei italiana nº 563, de 3 de abril de 1926 (art. 18), a mesma que dispôs sobre o reconhecimento dos sindicatos e a instituição da Magistratura del Lavoro.''

Arion Sayão Romita, ''Justiça do Trabalho: Produto do Estado Novo''
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''Infelizmente, o passar do tempo nada significa para a Justiça do Trabalho. Ela foi criada sob o influxo do regime fascista; hoje, impera no Brasil o regime democrático, mas o fato, em si, não tem qualquer conseqüência. Ela foi instituída numa época em que o Brasil era um país “essencialmente agrícola” e que se preparava, timidamente, para uma era de industrialização; hoje, o Brasil encara uma nova revolução industrial (tecnológica), mas o fato, em si, não tem conseqüências práticas.''

Arion Sayão Romita, ''Justiça do Trabalho: Produto do Estado Novo''
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''O instituto do dissídio coletivo de interesses, em face do regime político instituído em 1937 pelo ditador Getúlio Vargas, funcionava como uma pequena peça na vasta engrenagem que, àquela época, respondia bem à evolução sociopolítico-econômica. Instrumento pelo qual se exercia o poder normativo da Justiça do Trabalho, o dissídio coletivo de interesses compunha uma constelação política que amparava, no campo das relações de trabalho, a filosofia social implantada pela Carta fascista de 10 de novembro de 1937''

Arion Sayão Romita, ''Justiça do Trabalho: Produto do Estado Novo''
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''''O poder normativo foi implantado no Brasil juntamente com a Justiça do Trabalho. Previsto, inicialmente, pela Constituição de 1934, a sua instituição foi reproduzida pela Carta outorgada de 10 de novembro de 1937, porém, implementada praticamente, no plano da legislação infraconstitucional, pelo Decreto-lei nº 1.237 de 1939. Era a época do Estado Novo, ambiente político fechado, ditatorial, que pretendia implantar no Brasil a organização da economia em bases corporativas, tomando como modelo o fascismo da Itália de Mussolini.''

Arion Sayão Romita, ''Justiça do Trabalho: Produto do Estado Novo''
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''''Os organizadores da propaganda varguista, atentos observadores da política de propaganda nazi-fascista, procuraram adotar os métodos de controle dos meios de comunicação e persuasão usados na Alemanha e na Itália, adaptando-os à realidade brasileira. Nem todos os ideólogos ou adeptos do Estado Novo declaravam-se simpatizantes do nazi-fascismo, mas alguns explicitaram sua admiração por esses regimes, como foi o caso de Filinto Muller, chefe da polícia política, encarregado da repressão aos opositores, e de Lourival Fontes, diretor do DIP, que controlava os meios de comunicação e cultura, sendo também responsável pela produção e divulgação da propaganda estado-novista.''
Maria Helena Capelato, ''Propaganda política e controle dos meios de comunicação''
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''''O significado simbólico da língua vernácula e o papel atribuído à educação nos processos assimilacionistas alimentaram a ênfase na nacionalização cultural, embora a defesa do Estado incluísse o expurgo das influências externas (onde a referência básica eram o nazismo e o fascismo) e a nacionalização econômica.''

Giralda Seyferth, ''Os imigrantes e a campanha de nacionalização do Estado Novo''
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'''Inúmeras foram as evidências de que Vargas considerava o fascismo europeu um modelo a ser imitado, adaptando-o às necessidades da realidade nacional: a idéia de um Estado forte, a personificação do poder central, a crítica à democracia parlamentar, a luta contra a pluralidade de partidos, o combate às “idéias exóticas”, a adoção de uma política imigratória anti-semita, o emprego de mecanismos de controle social e político (Dops) e de legitimação (DIP). ''

Maria Luiza Tucci Carneiro, ''O Estado Novo, o Dops, e a ideologia de Segurança Nacional''
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''Mas, afinal, o que pretendia o ministro da Justiça com a Organização Nacional da Juventude? O projeto inicial de criação da Organização Nacional da Juventude não deixa dúvidas sobre a pretensão de se institucionalizar nacionalmente uma organização paramilitar em moldes fascistas de arregimentação da juventude.''
Helena M. B. Bomeny, ''Três decretos e um ministério: a propósito da educação no Estado Novo''
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'' O ministro da Educação clama por uma estrutura de molde mais federativo, o que significava uma redução do vasto campo de domínio conferido ao secretáriogeral da organização. Pelo primeiro projeto, a tônica principal era, indubitavelmente, a de mobilização política miliciana, bem próxima às experiências fascistas de organização em curso naquela ocasião. Não descartando esses exemplos, Capanema vai procurar um fundamento na Mocidade Portuguesa que, segundo ele, principalizava os aspectos cívico e educativo, distinguindo-se por não adotar o caráter partidário característico da mobilização das juventudes alemã e italiana. A Organização Nacional da Juventude foi um ensaio fracassado de transformação da ideologia fascista em prática política.''
Helena M. B. Bomeny, ''Três decretos e um ministério: a propósito da educação no Estado Novo''
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''Sem a pretensão de ir além de um breve comentário, creio ser possível afirmar — e constatar — que a formação de Góis sofreu duas grandes influências do campo internacional: nos primeiros tempos, a da era dos impérios, do mundo em que os avançados dominavam os atrasados, nas palavras de Hobsbawm; mais tarde, a da ascensão daqueles governos autoritários na Europa, inclusive os de caráter estritamente fascista.''


Sérgio Murillo Pinto, ''A doutrina Góis: síntese do pensamento militar no Estado Novo''







(2) 
Pra negar o óbvio -- a saber, as influências do fascismo italiano na Era Vargas, e inclusive na legislação trabalhista --, alguns se apegam às diferenças entre os regimes comandados por Getúlio e o de Mussolini, e retiram da sacola uma montoeira de ideologias que teriam influenciado também o imortal Presidente.
Só esquecem de dois pontos importantes: 1. Ninguém nega que o pai do trabalhismo tenha sido influenciado pelo castilhismo, pelo florianismo e, de modo mais geral, pelo positivismo. Eu mesmo o afirmo peremptoriamente em diversos textos e em vídeos. 2. Ninguém nega que a legislação trabalhista tem influências da Doutrina Social da Igreja Católica-Romana. Eu também afirmo isso em diversos textos e vídeos.
Só que, aqueles mesmos que enfatizam as divergências entre Vargas e Mussolini para se agarrarem à quimera de que não houve nem poderia haver nenhuma interação com o fascismo, esquecem as imensas divergências entre Vargas e essas ideologias que resolveram trazer à baila.
Getúlio teve formação política marcada pelo castilhismo e pelo florianismo, mas nos anos 1930 seu governo se afastou deles em pontos decisivos. Um exemplo nítido é a aproximação pessoal e política com a Igreja Católica. Poucos anos antes da Revolução, o deputado Vargas foi um leão na defesa do ensino laico. Existem discursos dele quando jovem em que ataca sem pudores o cristianismo. No governo federal, no entanto, ele aumentou a participação do clero nas políticas do Estado e se aproximou do catolicismo romano inclusive pessoalmente -- se casou na Igreja em cerimônia privada, por exemplo.
O governo Vargas era castilhista? Não. Ainda que o presidente tenha se modelado numa tradição política que enfatizava o papel do ditador republicano que buscava integrar as massas proletárias, os ideólogos do Estado Novo não recorriam ao positivismo e ao castilhismo para defender teoricamente o arranjo político que prevalecia no país: eles usavam imagens nitidamente retiradas da Igreja Católica. E o próprio Getúlio declarava que a legislação trabalhista estava em consonância com a DSI.
Jessie Jane de Souza, professora da UFRJ e ex-diretora do Arquivo Nacional, publicou livro que torna evidente que a influência dos círculos operários da Igreja Católica na organização do mundo do trabalho foi muito mais direta do que o de qualquer organização castilhista ou positivista.
Por que dizer então que a CLT tem ''base positivista'', recordando as marcas da formação política de grande parte da elite gaúcha? Pra negar toda e qualquer influência que seja politicamente incômoda para quem carrega o vício da mentalidade liberal.
No que diz respeito à CLT, a influência direta do fascismo italiano está implicada não só no corporativismo, mas também mais especificamente na organização sindical e na Justiça do Trabalho. Existem pontos da Carta del Lavoro que são repetidos quase que de modo literal na Constituição e na legislação do trabalho no Brasil. Existem institutos, como a contribuição sindical obrigatória, que vem direto do fascismo.
Não adianta tentar refutar isso com gritinhos, ''a CLT não é uma cópia da carta del lavoro! não é!" Ninguém disse que é. E sim que o fascismo italiano teve seu peso INCLUSIVE na legislação trabalhista. E quando digo ''inclusive'', é porque as influências em outras áreas são tão ou mais inegáveis.
Isso significa que a CLT é ruim, que a Era Vargas não presta? Só pode chegar a essa conclusão aqueles que estão confusos, divididos entre o trabalhismo e o liberalismo [de esquerda], doidos pra se aproximar desses últimos no mundo da política. Como tenho compromisso com a verdade histórica, como não busco aproximação nenhuma com liberais de esquerda ou de direita, como sou getulista de fato, não preciso ficar pedindo ''desculpa'' de nada pra adversário político nenhum.

domingo, 12 de abril de 2020

A ética do sambista -- apontamentos sobre a cultura popular carioca, ou: Metafísica da Festa no Rio, parte I

Semanas atrás, falei de passagem da famosa polêmica entre os sambistas Noel Rosa e Wilson Baptista, pouco conhecida na época em que aconteceu, quando ficou restrita ao mundo dos bambas e das redes de música e malandragem do Rio dos anos 1930, mas que virou símbolo de uma importante encruzilhada em que a vida da cidade e das classes populares se encontrava na época.

Muitas pesquisas tem apontado que a verdadeira causa do embate entre os dois músicos foi a disputa por uma mulata. Noel perdeu a parada, não se conformou e esperou um bom momento para se vingar do rival através de um samba.

O evento que detonou o embate tem pouca importância e não eclipsa seu sentido mais abrangente. O conflito permite apontar as diferentes propostas e alternativas que, por meio dos dois bambas, seduziam os corações dos sambistas do Rio. Estava em jogo o significado do próprio termo, o que era de fato ser um malandro, qual era a ética daqueles que se dedicavam ao samba.

Digo ética num sentido forte. Ser sambista não era só fazer um tipo de música com certo ritmo e gênero. Era antes de tudo uma rede de sociabilidade que implicava em um modo de vida, de relação com a sociedade, posicionamento frente aos desafios da vida e também da morte.

Diferente do que muitos pensam, o samba carioca, ou samba do Estácio, não nasce nos morros para onde as populações mais pobres estavam sendo empurradas desde os anos finais do século XIX. Sua gênese e desenvolvimento está vinculado, na área mais pública, aos botequins e rodas de música em torno da Praça Onze, com suas festas em antigos sobrados, casebres que, com portas e janelas abertas, tornavam possível a participação da ''turma do sereno'' nas calçadas e bares; e, em âmbitos mais internos, na profusão de terreiros de ''macumba'' e ''candomblé'' que se espalhavam pelas mais diversas regiões do Rio.

Os terreiros podiam ficar na ''cidade'', como era o caso daquele comandado por Tia Ciata; nas favelas que surgiam nos morros, como o de Tia Fé, na Mangueira; ou nas freguesias rurais, como o de Dona Esther, em Osvaldo Cruz, e Madalena Xangô de Ouro, em Quintino, locais de reunião da ''Vai como pode'', futura Portela. Nessas Pequenas Áfricas se moviam os sambistas, em fuzarcas que misturavam o sagrado e o profano, e que duravam até sete ou oito dias.

Os sambistas em torno da Praça Onze se consideravam ''malandros'', o que significava negar a ética do trabalho que estava sendo propagandeada pelo Brasil oficial pós-escravidão, sobreviver às margens por meio de golpes -- eram ladrões, cafetões, punguistas --, e se garantirem nas rodas de pernadas movidas a álcool e partido alto. Eram herdeiros diretos das maltas de capoeiras e davam continuidade aos seus valores de ''valentia''.

No fim do século XIX, esses ''valentes'' e ''malandros'' estavam organizando cordões, ranchos e blocos para brincarem também de forma coletiva. Essas novas organizações possuíam estética e hierarquias próprias, além de símbolos identitários, o maior deles seu estandarte ou bandeira. Tinham sede, documentos de fundação, 'hinos', identidades definidas por laços comunitários, sejam eles familiares, religiosos, de vizinhança, étnicos ou de profissão. Os malandros saíam festejando fantasiados de índios ou de baianas, mas sempre armados de navalhas e outras armas.

[Na origem das escolas de samba, a ala das baianas eram formadas principalmente por homens que escondiam armas nas roupas. Quanto mais valente era o malandro, mais disposto a defender a agremiação e suas tradições. Na foto abaixo, o famoso Heitor dos Prazeres fantasiado de baiana.]


Seja nas rodas de pernadas, em disputas de partido alto nos botequins, na Festa da Penha, nos terreiros ou nos cordões, ranchos, blocos e escolas de samba; os malandros estavam dispostos a uma vivência dionisíaca, festiva, ''desordeira'', brava, em que a morte era comemorada porque considerada parte da vida.

Um exemplo foi a morte de dois componentes do cordão Estrela dos Dois Diamantes no Carnaval de 1902 por grupos de um cordão rival, o Flor da Primavera. O cortejo fúnebre se deu na Terça Feira Gorda, e foi acompanhado por diversas agremiações carnavalescas que se solidarizaram com o 'Estrela'. No caminho até o cemitério, o clima esquentou quando os tambores começaram a zabumbar. No fim, tudo terminou numa tremenda festa, em que pessoas sepultaram os heróis sapateando sobre os túmulos e dando vivas ao Carnaval. Essa forma de encarar a morte está expressa também em obras famosas de Noel ["Não quero flores nem coroa com espinho/Eu quero choro de flauta, violão e cavaquinho/Quando eu morrer, não quero choro nem vela/Quero uma fita amarela gravada com o nome dela''], ou em recente entrevista de Zeca Pagodinho, que explicava que no subúrbio carioca dos anos 1970 e 1980 ''só tinha duas coisas para fazer: macumba e velório'', e contava a festa regada a cerveja e jogo de azar que se tornou o funeral de seu próprio pai. ''Secamos a rua toda'', dizia o sambista.

Os grupos carnavalescos possuíam, no entanto, mais um significado: eram espaços de integração das camadas populares ao seu entorno, à sociedade “oficial”. Um meio de dirimir a exclusão abissal em que o país estava construído, através de pontes culturais que ligavam todos os grupos sociais. Desse modo, eram também espaços de negociação. É nesse contexto que devem ser lidas as visitas que os cordões e ranchos faziam aos jornais no início do século XX, para apresentar suas fantasias, alas e estandartes; e também os concursos que a própria imprensa se sentiu impulsionada a realizar para premiar as melhores agremiações. É sob essa luz que se dá o famoso embate musical entre Noel Rosa e Wilson Baptista, tendo sido ele provocado ou não pela disputa por uma formosa mulata.

“Lenço no Pescoço”, de um ainda desconhecido Baptista, acabou gravado na voz de Sílvio Caldas. Era uma ode à figura do malandro forjada nas rodas da Praça Onze: “Meu chapéu do lado/Tamanco arrastando/Lenço no pescoço/Navalha no bolso/Eu passo gingando/Provoco e desafio/Eu tenho orgulho/Em ser tão vadio/ Sei que eles falam/Deste meu proceder/Eu vejo quem trabalha/Andar no miserê/Eu sou vadio/Porque tive inclinação/Eu me lembro, era criança/Tirava samba-canção/Comigo não/Eu quero ver quem tem razão”.

Noel Rosa decidiu responder propondo uma nova figura de malandro, não mais vinculado à marginalidade, mas integrado à sociedade respeitável, ainda que mantivesse sua particular experiência festiva e dionisíaca da realidade. O Poeta da Vila compôs “Rapaz Folgado”, em que versava: ‘Deixa de arrastar o teu tamanco.../Pois tamanco nunca foi sandália/E tira do pescoço o lenço branco/Compra sapato e gravata,/Joga fora essa navalha/Que te atrapalha/Com chapéu do lado deste rata.../Da polícia quero que escapes/Fazendo samba-canção,/(Eu) já te dei papel e lápis/Arranja um amor e um violão./Malandro é palavra derrotista/Que só serve para tirar/Todo o valor do sambista/Proponho ao mundo civilizado/Não te chamar de malandro/E sim de rapaz folgado”.

Vale dizer que, se é verdade que a figura do malandro e do boêmio se confundia muitas vezes com o do ‘fora-da-lei’ e ‘valente’, e as vielas e ruas em que se batucava eram associadas a zonas de prostituição em que “o assassinato era comum”, nas palavras de João do Rio; os blocos, ranchos e cordões carnavalescos não se formavam apenas em torno do culto à marginalidade, embora mantivessem sempre a ética da valentia herdada dos capoeiristas e todos os elementos comunitários e tribais. O bloco dos Arengueiros, que foi o principal núcleo de formação da Estação Primeira de Mangueira, era barra pesada nas palavras do próprio Cartola, como os blocos de sujos que saiam no Carnaval desde os tempos do Império. Já a escola de samba Prazer da Serrinha, e depois o Império Serrano, tinha vínculos fortes com o Sindicato Resistência, de funcionários administrativos da zona portuária, uma tradição formativa das agremiações carnavalescas que remonta ao fim do século XIX.

Essa polêmica não havia, portanto, surgido do nada. Ela expressava de modo preciso os nuances e disputas no interior das próprias classes populares em negociação com o poder público, e o sentido ético e comportamental que seria resultado desse diálogo. Não é possível dizer também quem venceu. As duas figuras do Malandro ainda convivem no mundo do samba.



Paulo da Portela, o grande embaixador das escolas de samba nos anos 1930 e 1940, aderiu à visão de Noel, fazendo com a que os membros da Portela adotassem alinhados ternos e gravatas, deixando o tamanco e as os rabos-de-arraia de lado. Zeca Pagodinho também dá ênfase a essa malandragem que não se recusa ao trabalho, embora não viva também para ele: “Só vou pro batizado quando é samba/Compadre meu precisa batucar/Eu sou da saideira que descamba/Aqui não tem hora pra acabar/Amigo eu nunca fiz bebendo leite/Amigo eu não criei bebendo chá/Eu sou da madrugada, me respeite/Que eu sei a hora de ir trabalhar/Não sou sujeito de ficar enchendo a cara/Quem escancara, não vê o mundo girar/Pra ficar bom, melhor tomar remédio/E o tédio é quando vem fechar o bar/Também não vou ficar levando bronca/Deixa a conta que hoje eu preciso pendurar/Já calibrei, já tirei a minha onda/Ainda tenho casa pra cuidar”.

Ao mesmo tempo, as figuras de Hilário Jovino, Carlos Cachaça, Beto sem Braço, Bezerra da Silva e outros atravessaram o século XX, gerando fascínio, tanto no asfalto quanto no mundo mais ordenado das escolas de samba.