terça-feira, 26 de abril de 2016

A queda do PT -- Parte I: A ''Oligarquia Financeirizada'' e o projeto liberal

No post anterior, introdução a uma análise sobre a queda de Dilma Rousseff, enfatizei o ativismo perene da classe média tradicional contra qualquer governo de esquerda que coloque em risco seu status. Pretendo agora incluir no panorama o papel das principais frações das classes industrial e financeira no movimento que clama pelo impeachment da Presidente. Mas é necessário fazer antes um adendo ao texto anterior.


Lula discursa na Avenida Paulista -- luta contra o impeachment ganha as ruas



Pode ser difícil para certos olhares desacostumados ao cenário brasileiro entenderem certas posições da classe média do país, que possui particularidades que a diferenciam e particularizam em relação às suas congêneres europeias. Esse estrato social nasceu primordialmente da decadência de famílias tradicionais [1]. Sua ideologia é formatada por essa origem oligárquica, latifundiária e senhorial. Acostumada ao exercício das chamadas profissões liberais e monopolizando as principais carreiras do alto funcionalismo público, a classe média cresceu e sobreviveu à sombra da elite econômica, da qual sempre se viu, em algum grau, como integrante. Seu ideário e formação consolidou uma auto-representação em torno de certos elementos identitários que a diferenciam das camadas populares, e seus membros lutam ferrenha e continuamente pela reprodução dessas distinções [2]. Daí se entende seu ódio militante a qualquer ameaça a esses traços fundamentais para sua expressão social, e que não são de forma alguma apenas econômicos [3].


A Classe Média ''Senhorial'' em protesto contra o governo Dilma


 Os protestos e discursos da classe média nas ruas, rádios, TVs, Internet e nos novos movimentos de matiz liberal criados nos últimos anos [4] deram suporte à ação de outras camadas sociais importantes. No arco de apoio ao impeachment de Dilma destaca-se a FIESP, principal federação de indústrias do país, que não só se declarou favorável à deposição da presidente como também financiou e participou ativamente da propaganda e mobilização contra o PT [5]. A posição da indústria deve ser entendida tendo como pano de fundo a 'financeirização' da economia brasileira, que se consolidou durante o governo tucano e a gestão de Armínio Fraga no Banco Central; uma expressão da 'mundialização financeira', vinculada por sua vez à globalização impulsionada pelo Consenso de Washington.


A Globalização Financeira diz respeito, grosso modo, a um novo patamar de disseminação e realização do capitalismo, voltado agora para a apropriação rentista-patrimonialista em âmbito mundial, e que se distingue das etapas anteriores pela efetiva dominância de uma oligarquia financeira sobre o processo de valorização, que acaba se sobrepondo, regulando e contaminando a esfera produtiva [6]. Nos países europeus, a financeirização da economia teve, dentre outras consequências, a concentração funcional da renda com prejuízo dos salários, a hegemonia dos agentes rentistas nacionais e internacionais no bloco de poder dominante na sociedade, e a redução estrutural das taxas de crescimento econômico com aumento explosivo do desemprego. As taxas de desemprego e as influências dos grupos rentistas sobre a política econômica possibilitaram o fortalecimento do discurso e da agenda liberal, voltada para a redução do Estado, o corte de investimentos sociais e a flexibilização das leis de proteção ao trabalho [7].


As diferenças brutais nas taxas de lucro impulsionaram a ''financeirização usurária'' no Brasil

No Brasil, o processo de financeirização possuiu particularidades ainda mais deletérias. Ele se inicia com a ''crise da dívida'', na década de 1980, tomando forma em meio a explosão inflacionária e a manutenção de altas taxas de juros pelo Banco Central, vista como imprescindível para a rolagem da dívida pública. Mas só se consolida definitivamente no governo de Fernando Henrique Cardoso, que adotou em definitivo o receituário neoliberal, implementando uma politica monetária restritiva, larga abertura da economia, e um conjunto de privatizações cujos principais beneficiários foram conglomerados financeiros. A própria adoção da Lei de Responsabilidade Fiscal, cujo uso no impeachment de Dilma adquire configurações ainda mais simbólicas, pode ser vista como elemento do arcabouço de dominância financeira ao obrigar o Estado a uma busca contínua por superávits [8]. O mais significativo, no entanto, é que no Brasil o processo vem se caracterizando não apenas pela ampliação dos negócios do capital bancário na esfera produtiva, modelo básico de formação do capital financeiro; e sim pelo envolvimento cada vez maior dos grupos industriais na esfera financeira, movidos pela rentabilidade gigantesca proporcionada pelos ativos que rendem juros. Desse modo, ocorre um processo de financeirização usurária da indústria brasileira, diferente do processo que predominou na Europa e nos Estados Unidos, centrado antes no mercado de capitais. [9]


Essa mudança ajuda a entender o posicionamento dos grandes industriais diante do governo Dilma. O PT buscou desde o primeiro mandato de Lula diminuir o quanto possível os piores efeitos ou a tendência de dominação do capital financeiro sobre a economia brasileira, dentro dos limites estreitos de seu comprometimento com a arquitetura econômica liberal construída no Brasil e com a ''Carta ao Povo Brasileiro''. Adotando uma estratégia gradualista, o governo Lula reduziu a taxa média da Selic, liquidou a dívida ativa com o FMI e adotou políticas anti-cíclicas nos bancos públicos [10]. Essas medidas eram, no entanto, insuficientes e paliativas, e pouco arranhavam as bases herdada de FHC. O governo Dilma explicitou a intenção de romper com essas bases em um cenário em que o modelo de crescimento apoiado na exportações de commodities e expansão do crédito às classes populares havia se esgotado [11], reorientando o país rumo a uma reindustrialização por meio da adoção de um projeto de tendências desenvolvimentistas: a chamada ''nova matriz econômica'', de Guido Mantega. A nova política estava calcada na oferta de subsídios ao setor produtivo, expansão direta dos financiamentos públicos [principalmente às grandes construtoras e ao agronegócio], controles limitados ao capital estrangeiro, taxas de juros preferenciais às indústrias e, principal cabo de batalha do governo, a redução do spread bancário e dos juros por meio da concorrência dos bancos públicos com o setor financeiro privado [12].

Taxa de financeirização e investimento decrescente na esfera produtiva


Essas medidas, em tese benéficas para a indústria, geraram profunda reação dos agentes financistas e da classe média tradicional, repercutida pela mídia como uma resistência ao ''estatismo'' e ao ''descalabro com as contas públicas''. Na medida em que a crise econômica se alongava no país, a ''nova matriz econômica'' foi gradualmente abandonada até a definitiva capitulação com o aumento brutal da taxa Selic em 2013. A cúpula da indústria e de modo geral do setor produtivo brasileiro estava imbricada o suficiente com o ''capitalismo financeirizado'' para ver no ensaio desenvolvimentista de Dilma Rousseff uma saída para os problemas econômicos. A FIESP centrou seu discurso de combate à crise na exigência cada vez maior de medidas recessivas de corte liberal, redução de gastos governamentais, e, principalmente, de flexibilização da legislação trabalhista [13] -- uma regressão ao discurso predominante nos anos de domínio do PSDB mas agora com um agência politicamente mais agressiva. A ressurreição do neoliberalismo brasileiro é acompanhada também por um plano de redução do número de servidores por meio da restrição ou até mesmo abolição dos concursos públicos, que já vem sendo ensaiada em alguns Estados [14].


O prédio da FIESP enfeitado se torna ''a casa do impeachment'' -- A organização dos empresários chegou a distribuir filé mignon aos manifestantes


Desse modo, as principais organizações do setor produtivo brasileiro se uniram ao coro da classe média tradicional e formaram fileiras com o setor financeiro, do qual se distinguem cada vez menos. O governo demonstrou inapetência política ao confiar até o último momento no apoio dessa fração de classe quando tentou redesenhar o panorama econômico do país, e persistiu no erro até o final, abrindo cada vez mais concessões à demanda da indústria pelo desmonte de direitos trabalhistas, alienando assim aquela que seria sua base natural e histórica de apoio. Mas esses equívocos do PT, muitos mais graves na esfera política do que na econômica, não são os únicos vetores presentes no arco de forças responsável pelo impeachment de Dilma Rousseff. Os jornais que circulavam ontem davam conta da possível entrada de José Serra no Ministério que vem sendo costurado por Michel Temer [15]. Serra, um dos nomes mais fortes do PSDB paulista e um dos articuladores da queda do governo, apresentou no ano passado um projeto de lei que tem por consequência a entrega das reservas brasileiras do Pré-Sal às grandes petroleiras internacionais. No próximo texto vou me dedicar a explorar alguns meandros associados aos escândalos do ''Petrolão'' e alguns dos embates geopolíticos em torno do movimento anti-PT.





[Continua]
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[1] O que não nega de forma alguma que a classe média tradicional visa se espelhar em suas congêneres europeias e norte-americanas. Pelo contrário, o sentimento comum nesse meio é o de fazer parte de uma cultura cosmopolita de teor ocidental vivendo exilada em meio a um povo bárbaro cuja presença suporta estoicamente.

[2] Um exemplo é o discurso elaborado pela classe média tradicional em torno do elemento ''educação''. O monopólio de certo grau de educação em meio a um ideal distorcido de ''República de letrados'' é um dos fios condutores da agência política desse grupo social. Durante boa parte da História da República, a classe média foi fanaticamente contrária ao voto dos analfabetos, e se exacerbava contra as eleições decididas pelo voto de camadas mais populares e proletárias, que deram suporte político ao trabalhismo varguista e agora ao ''lulismo''. Há sinais curiosos de continuidade do apego a esse elemento diacrítico no discursos dos seguidores diretos e indiretos de Olavo de Carvalho -- pensador influente na classe média e entre liberais, e que conferiu certa aparência de respeitabilidade intelectual aos interesses desses grupos quando do início das vitórias eleitorais do PT. Segundo os dito cujos, as universidades brasileiras estão decadentes e são um antro de ignorantes dominados pela esquerda -- um diagnóstico que pode estar ligado à percepção da maior democratização do acesso ao ensino superior a partir dos anos 1990 --, e eles sim são o embrião de uma nova ''elite'' que restauraria a alta cultura nacional. É notória a confusão nesse meio entre ''alta cultura'' e ''pautas sociais liberais''.

[3] Ou seja, não se deve confundir a classe média tradicional com camadas populares enriquecidas ou ''remediadas''.

[4] O 'Movimento Brasil Livre' [MBL], o 'Vem pra Rua', o 'Estudantes pela Liberdade' etc. Esses e outros grupos similares foram auxiliados financeiramente por grandes empresários e por redes de influência que remontam a think tanks conservadores americanos, incluindo aí os Irmãos Koch, que estão entre alguns dos maiores financiadores do Partido Republicano dos Estados Unidos e são grandes especuladores no mercado do petróleo -- fato cujo significado se tornará mais claro no próximo texto dessa série.

[5] ''O sinal mais claro e recente foi dado pela Federação das Indústrias de São Paulo (FIESP) que, em representação de centenas de entidades da indústria, comércio, serviços e agricultura, ocupou nesta terça-feira os principais jornais do país com uma ostensiva campanha publicitária. Os lemas ''Impeachment já'' e “Chega de pagar o pato” imprimiram-se em 14 rodapés de página que chegaram às bancas de todo o país e apareceram no fundo da tela de um jornal brasileiro. A ofensiva de marketing soma-se à onda de campanhas anti-Governo que a federação já vinha patrocinando há meses e simboliza a mudança de postura dos empresários paulistas que apostam hoje, não pela renúncia de Dilma Rousseff, e sim por pressionar deputados e senadores para que priorizem o impeachment da presidenta''[FIESP financia campanha pelo impeachment]. Veja também: ''A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) ofereceu um almoço nesta quinta-feira a manifestantes pró-impeachment que pernoitaram na avenida Paulista. No cardápio estão filé mignon, massa, salada, torta, purê e arroz. A assessoria de imprensa da Fiesp afirmou que o almoço é para lideranças dos grupos pró-impeachment e disse que entidade virou a “casa do impeachment de Dilma” [FIESP distribui filé mignon para manifestantes].

[6] Capitalismo financeiro e estado de emergência no Brasil

[7] Finance-Led Growth Regime no Brasil

[8] A justificativa para o impeachment de Dilma Rousseff gira em torno da quebra da Lei de Responsabilidade Fiscal. O compromisso do PT com uma ''gestão fiscal responsável'' foi um dos pontos mais aplaudidos pela grande mídia e pelos grandes bancos na ''Carta ao Povo Brasileiro'', divulgada por Lula em 2002.

[9] As transformações do regime de acumulação do Brasil

[10] O lobby dos bancos no Brasil

[11] O preço dos principais bens primários exportados pelo Brasil caiu em até dois terços em alguns casos. O empréstimo aos consumidores, por sua vez, atingiu o dobro do nível dos demais países sul-americanos.

[12] Segundo o professor André Singer, ''De 2011 a 2012, em iniciativa de audácia inesperada, os desenvolvimentistas invadiram a cidadela sagrada das decisões monetárias e avançaram aos saltos, pressionando instituições privadas para reduzirem os próprios ganhos, com o apoio das divisões pesadas dos bancos públicos e de ousada mudança nas regras da poupança. [...]Além de enfrentar o núcleo duro do capital, a presidente decidiu politizar o tema, o que estava igualmente fora do script lulista. Em fevereiro de 2012, o boletim do Ministério da Fazenda afirma que o spread no Brasil era “elevado na comparação com outras economias”. Destacava que a expectativa era que caísse “devido ao ciclo de queda dos juros” iniciada em agosto do ano anterior. Duas semanas mais tarde, Tombini aumentaria a carga. Em audiência na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, declara que a redução do spread era “prioridade de governo” e “determinação” da presidente da República. Não se tratava mais de expectativa genérica inserida em publicação ordinária de ministério. A diminuição dos ganhos por parte dos bancos tornava-se ordem, emanada do topo do poder Executivo. Transmitido por funcionário de alta gradação, o recado não poderia ser mais claro: o Estado se arrogava o direito de intervir na quintessência do capitalismo, a saber, o lucro ''. Veja mais em Cutucando onças com varas curtas

[13] Em meio a campanha eleitoral de 2014, Benjamin Steinbruch, então presidente da FIESP, defendia uma nova regulação das leis trabalhistas e alterações profundas na CLT com um exemplo inusitado: segundo ele, os empregados não precisavam ter a hora de almoço protegida por lei. Afinal, perguntava ele, e se o trabalhador preferisse chegar uma hora mais cedo em casa em vez de almoçar? [https://www.youtube.com/watch?v=E2zN4eB1iCk] A Revista Exame, da Editora Abril -- um dos grupos de mídia do Brasil mais vinculados ao grande negócio --, lamentava em edição do fim de 2015 que Dilma havia desistido da reforma da CLT por pressão das centrais sindicais [Governo retira apoio à flexibilização da CLT]. O caso ilustra, por um lado, a estratégia equivocada adotada por Dilma Rousseff de realizar concessões para reconquistar o apoio perdido da indústria; por outro, os limites dessa estratégia em um cenário de radicalização da militância liberal e de risco de perder o apoio que lhe restava em sua base política histórica.

[14] O Projeto de Lei Complementar 257/16 estabelece uma série de restrições nesse sentido [PLP 257/16]. Destaco:

''Art. 3º A União poderá celebrar os termos aditivos de que trata o art. 1o desta Lei Complementar, cabendo aos Estados e ao Distrito Federal sancionar e publicar leis que determinem a adoção, durante os 24 meses seguintes à assinatura do termo aditivo, das seguintes medidas:

I – não conceder vantagem, aumento, reajustes ou adequação de remunerações a qualquer título, ressalvadas as decorrentes de atos derivados de sentença judicial e a revisão prevista no inciso X do art. 37 da Constituição Federal;

II – limitar o crescimento das outras despesas correntes, exceto transferências a Municípios e Pasep, à variação da inflação, aferida anualmente pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo – IPCA ou por outro que venha a substituí-lo;

III – vedar a edição de novas leis ou a criação de programas que concedam ou ampliem incentivo ou benefício de natureza tributária ou financeira;

IV – suspender admissão ou contratação de pessoal, a qualquer título, inclusive por empresas estatais dependentes, por autarquias e por fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, ressalvadas as reposições decorrentes de vacância, aposentadoria ou falecimento de servidores nas áreas de educação, saúde e segurança, bem como as reposições de cargos de chefia e de direção que não acarretem aumento de despesa, em qualquer caso sendo consideradas apenas as vacâncias ocorridas a partir da data de assinatura do termo aditivo; e

V – reduzir em 10% (dez por cento) a despesa mensal com cargos de livre provimento, em comparação com a do mês de junho de 2014.''




domingo, 24 de abril de 2016

A queda do PT -- Introdução: O ativismo da Classe Média Tradicional

Desde o meu post  mais recente nesse blog, o Brasil pegou fogo e o governo de Dilma Rousseff chegou à beira do abismo. Muitas análises já foram feitas sobre as causas desse processo; mas não posso deixar de dar uma palhinha rápida sobre os eventos que, ao que tudo indica, vão colocar Michel Temer na Presidência da República.
O Juiz Itagiba C. P. Neto, que impediu a posse de Lula na Casa Civil, posa em ato de protesto contra Dilma. Logo depois de conceder a liminar contra o ex-presidente, o juiz excluiu sua conta na rede social Facebook, que se encontrava repleta de apelos pela derrubada do governo.  

Qualquer observador percebe facilmente que o argumento jurídico que sustenta o impeachment é frágil e cumpre o papel de pretexto conveniente. As chamadas ''pedaladas fiscais'' são lugar comum no país, eram realizadas por Fernando Henrique Cardoso e também foram usadas por diversos governadores sem que se cogitasse que fossem crimes contra a Lei de Responsabilidade Fiscal [1]. Ainda que se construa um novo entendimento em torno dessa prática, punir Dilma Rousseff por ela é de uma seletividade que salta aos olhos, mesmo quando se concede que as ''pedaladas'' se enquadram nos crimes de responsabilidade que possibilitariam a abertura do processo de impeachment, uma polêmica viva entre os juristas [2]. Não há dúvidas de que, por si só, esse argumento jamais sustentaria a derrubada de governante algum no Brasil.

Por outro lado, boa parte dos movimentos que juram que as ''pedaladas'' são suficientes para desencadear o processo já se encontravam clamando pela deposição de Dilma desde a vitória petista nas eleições presidenciais de 2014. Alegavam então fraude nas eleições, depois ''estelionato eleitoral'', acusavam o PT de implementar um projeto comunista cujas etapas eram decididas não pela sociedade brasileira mas em instâncias conspiratórias supra-nacionais, como o Foro de São Paulo [3]. Clamavam por uma intervenção militar que expulsaria os comunistas do poder, e eristicamente tentavam mostrar que tal interferência das FFAA não se constituiria em golpe propriamente dito, mas se encontrava prevista pela Constituição -- mais ou menos como fazem agora com o rito de impeachment diante das acusações de distorção e manipulação do processo [4].

A classe média tradicional protesta contra a reeleição de Dilma Rousseff e pede a intervenção das FFAA, jurando que isso nada tinha a ver com um ''golpe''
A repulsa da classe média tradicional ao PT é facilmente compreensível, e não chega na verdade a ser nova. Trata-se da camada social mais infensa a quaisquer mudanças no padrão de relações sociais e políticas que marcam nossa História, aquela que mais tem a perder com uma transformação radical nesse âmbito, e também a que mais vê seu papel na sociedade e o país como um todo por meio de olhos ocidentalizantes. Sua retórica contra o PT é a repaginação de velhos jargões usados durante toda a República para conter os movimentos sociais e paralisar qualquer democratização real, entendida aqui como avanço da participação popular, nas esferas econômica e política. É o grupo que deu sustentação à criminalização dos movimentos operários nas duas primeiras décadas do século passado, ao movimento anti-getulista, à antiga UDN, ao golpe de 1964 e ao governo Castelo Branco, à eleição de Collor e ao período FHC. Foi também um dos setores cujo sentimento anti-comunista foi manipulado pelo gênio político de Vargas quando do fechamento do sistema partidário e parlamentar na década de 1930. Suas pautas liberais são nada mais que um recorte para a defesa de seus privilégios econômicos e sociais, ainda que isso implique em pedir um Estado Mínimo que não passaria de um aparato burocrático cujas principais esferas permaneceriam dominadas quase que exclusivamente por membros de famílias tradicionais decadentes [o que em parte explica o aparelhamento de boa parte da Polícia Federal e do Judiciário por representantes histéricos dessa classe, e da qual Sérgio Moro se tornou símbolo máximo [5]]. Não é surpresa que esse setor social se levante com organização cada vez maior contra o primeiro período de dominância da esquerda desde a deposição de João Goulart. O surpreendente é que tenha demorado tanto a fazê-lo de forma consciente e eficiente em um modelo político partidário e midiático que sempre foi extremamente permeável às suas demandas [6].

O PT pôde sobreviver a essa permanente oposição ideológica no seio da sociedade organizada por uma combinação de gradualismo na implementação de seu programa, carisma de Lula [adorado por boa parte da população mais pobre], e ambiência econômica favorável. O partido fez imensas concessões às forças que se propunha a combater já na campanha de 2002, em que, para dirimir as dúvidas dos principais agentes econômicos quanto a sua chegada no poder, publicou uma ''Carta ao Povo Brasileiro'' se comprometendo a manter as linhas gerais da política econômica de Fernando Henrique Cardoso [7] -- um movimento similar foi realizado anos depois por Dilma Rousseff quando enfrentou acusações de que sua candidatura legalizaria o aborto [8]. No poder, o PT estabeleceu como pilares da economia do país a exportação de commodities, que se encontravam em alta no mercado internacional, e uma ampliação sem paralelos do crédito às classes populares, a quem vendeu a miragem da ascensão social via consumismo [a ''nova classe média''] [9]. A explosão do consumo via crédito consolidou o setor bancário, que já era favorecido pelos juros extorsivos praticados no país, como um dos mais lucrativos do planeta [10]. Com tranquilidade na economia, Lula pôde aumentar investimentos sociais, dos quais o programa Bolsa Família, destinado às classes mais pobres, se tornou um símbolo [11]; diminuir as disparidades regionais com ênfase em investimentos na estrutura econômica e na ampliação da capacidade de consumo do Nordeste [12]; iniciar uma lenta reestruturação das carreiras e da capacidade do Estado -- que haviam sido comprometidas pela reformulação e minimização do funcionalismo público realizado pelo PSDB [13] --; avançar uma pauta de política identitária ao sabor do social-liberalismo e do pós-modernismo [14]; e esboçar uma política externa mais independente e voltada para pautas multipolares, concretizada através da aproximação dos vizinhos sul-americanos, de países africanos e na conformação dos BRICS [15].

Janaína Paschoal transforma palestra na USP em comício e clama por um país de ''mil janaínas''. A magistrada defendia a derrubada da ''República da cobra''.


Cada uma dessas políticas sofreu críticas ferrenhas dos liberais à direita e à esquerda, e também de outros movimentos ou contrários aos objetivos do PT ou incomodados com o ritmo das mudanças propostas pelo governo e com suas concessões na esfera social, econômica, e, depois do escândalo do Mensalão, também político-partidárias [16]. Mas geraram estabilidade o suficiente para que Lula se tornasse um dos presidentes mais populares e bem sucedidos da História da República, capaz inclusive de eleger sua sucessora, uma desconhecida do grande público, sem grande vocação e experiência política, e que não esteve ligada ao PT durante a maior parte de sua militância política [17]. No entanto, os problemas de Rousseff se tornariam cada vez mais insustentáveis com o esgotamento da costura política feita por Lula, a deterioração da ambiência externa, e na medida em que se buscuo suplantar a camisa de força estabelecida pela ''Carta ao Povo Brasileiro'', mudando a arquitetura econômica e enfrentando os grandes rentistas do país em busca de uma política mais desenvolvimentista. As frágeis relações entre o Executivo e um sistema político-partidário parasitário -- em um momento em que a descoberta do Pré-Sal abria oportunidades singulares tanto para o país quanto para aqueles que se acostumaram a usar cargos públicos como meios de enriquecimento ilícito --, bem como o recrudescimento das disputas geopolíticas cobraria um grande preço à tibieza e ausência de aptidão política de Dilma Rousseff. Esse vai ser o assunto da minha próxima postagem.



[Continua]



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[1] Dois exemplos dentre muitos que poderiam ser citados: As pedaladas fiscais e o impeachment e O Governador Alckmin pedala.

[2] Para uma abordagem contrária á configuração das ''pedaladas'' como crime de responsabilidade: Controvérsias do pedido de impeachment

[3] Em uma das principais revistas de direita do país, a VEJA, era comum se colocar em dúvida o resultado das eleições: Eleitor deve desconfiar das eleições. A classe média tradicional saiu às ruas pedindo impeachment tão logo se confirmou a vitória de Dilma no disputado pleito de 2014 Milhares nas ruas contra golpe comunista. Vejam também: ''O organizador de um dos protestos e líder do grupo Revoltados ON LINE, Marcello Reis, afirma que, no próximo sábado, o movimento lançará um documento pedindo o impeachment da presidente. Segundo ele, os apoiadores da causa deverão preencher o documento e anexar uma imagem do título e do comprovante de votação. Os dados, disse Marcello, serão armazenados em um servidor fora do país para "garantir que não haja interferência" do governo. — Eu acho que quem quer dar o golpe é quem é contra (o impeachment). Pelo menos temos o direito de saber se fomos enganados ou não. Vivemos em uma democracia ditatorial — disse'' Manifestações pelo Impeachment em 23 cidades.

[4] Intervenção militar constitucional e Manifestantes pedem intervenção militar contra Dilma. Duas vozes que adquiriram proeminência na ''nova direita'' defendiam abertamente uma intervenção militar que chamavam de ''constitucional'': Olavo de Carvalho e Lobão e a intervenção militar

[5] O cerco ao governo realizado por juízes de primeira instância que posavam de militantes da ''nova direita'' foi uma das marcas mais vexaminosas de todo fio condutor do impeachment. Um exemplo foi Itagiba Catta Preto Neto [Juiz que barrou posse de Lula foi a ato contra Dilma], que concedeu liminar contra a posse de Lula como Ministro da Casa Civil. Ainda mais caricato foi o papelão proporcionado por Janaína Paschoal, uma das juristas comprometidas com a derrubada do governo PT. Paschoal extravasou em meio ao que deveria ser uma palestra na Faculdade de Direito da USP, e que se tornou, no fim das contas, um comício mambembe: Janaína contra a República da cobra. A Operação Lava Jato e o papel de Sérgio Moro merecem destaque mais detalhado a ser realizado nos próximos textos.

[6] O papel da mídia na derrubada de mais um governo de esquerda é um capítulo à parte e que merece ser tratado com maior atenção em postagem futura.


[8] Carta de Dilma sobre o aborto e a liberdade religiosa. O PT construiu uma aliança com grande parte do movimento evangélico e se afastou um tanto de uma das bases originárias do Partido, o catolicismo mais afinado com o discurso da antiga Teologia da Libertação.

[9] Para uma crítica ao conceito de ''nova classe média'' por uma ótica da própria esquerda: Brasil não tem ''nova classe média''


[11] O Bolsa Família possui muitos problemas, e seu uso político é evidente em um país em que as os mais pobres possuem imensa desconfiança do sistema partidário e se relacionam com o poder político através de um assistencialismo imediatista. No entanto, o impacto positivo do mecanismo de transferência de renda é inegável, e ele contribuiu em grande parte para a queda histórica da desigualdade aferida pelo Índice de Gini. Para mais: Efeitos do Bolsa Família e [O Bolsa Família e a queda da desigualdade. Veja também: A queda da desigualdade no país.

[12] Essa é uma das razões para a clivagem regional das últimas eleições, com vitória acachapante de Dilma Rousseff nos Estados do Nordeste. A divisão do mapa de votos em Norte/Sul gerou uma onda de manifestações preconceituosas contra a população nordestina, particularmente em São Paulo. Nordeste cresce acima da média do país e Nordeste cresce de forma sustentável.

[13] Fernando Henrique Cardoso possuía como uma de suas principais propostas a reforma das estruturas básicas do Estado, colocando, em suas próprias palavras ''um fim na Era Vargas'' A busca por um Estado regulador, mais ágil e focado em demandas sociais, foi fortemente influenciada pela hegemonia do discurso liberal que marcou os anos do PSDB no Palácio do Planalto. O Brasil é historicamente um país com um baixo índice de funcionalismo concursado, mas nos oito anos de governo FHC a máquina federal foi sucateada ao extremo: Lula e a contratação de servidores públicos

[14] A política de cotas implementada pelo PT e a proximidade dos movimentos LGBT são dois dos principais exemplos. Cotas no governo PT

[15] ''Do ponto de vista do conteúdo, a diplomacia do governo Lula apresenta uma postura mais assertiva, mais enfática em torno da chamada defesa da soberania nacional e dos interesses nacionais, assim como de busca de alianças privilegiadas no Sul, com ênfase especial nos processos de integração da América do Sul e do Mercosul, com reforço conseqüente deste no plano político. Tudo isso não deve surpreender os observadores mais argutos, pois que essas propostas figuram nos documentos do PT há praticamente vinte anos, por vezes nos mesmos termos e estilo (até na terminologia) que os atualmente proclamados, coincidindo, portanto, com a política externa praticada pelo governo Lula. No que se refere à agenda diplomática propriamente dita, pode ser ressaltada a postura essencialmente crítica assumida em relação à globalização e à abertura comercial, com um maior empenho na reafirmação das posições tradicionais do Brasil em matéria de negociações comerciais (busca de acesso aos mercados dos países desenvolvidos, com a manutenção dos mecanismos que favorecem países em desenvolvimento, não engajamento em demandas de liberalização que possam representar comprometimento do que foi chamado de capacidade nacional de estabelecer políticas nacionais e setoriais de desenvolvimento e de autonomia tecnológica), bem como uma definição contrária - também tradicional no PT - à conhecida "fragilidade financeira externa", com a implementação conseqüente de políticas que permitam a produção de saldos comerciais e não aprofundem a dependência de capitais estrangeiros na frente econômica externa. No plano político, é evidente o projeto de reforçar a capacidade de "intervenção" do Brasil no mundo, a assunção declarada do desejo de ocupar uma cadeira permanente num Conselho de Segurança reformado e a oposição ao unilateralismo ou unipolaridade, com a defesa ativa do multilateralismo e de um maior equilíbrio nas relações internacionais. No plano econômico, trata-se de buscar maior cooperação e integração com países similares (outras potências médias) e vizinhos regionais.'': A política externa do governo Lula

[16] O Mensalão foi em grande parte uma tentativa de líderes do PT de contornarem a exigência dos principais partidos do Congresso por cargos e sinecuras, padrão de relacionamento estabelecido na Nova República após a queda de Fernando Collor de Mello, o que traria para posições chaves do governo um conjunto de políticos patrimonialistas e afinados com o conservadorismo social. Com o escândalo vindo à tona, o governo Lula concedeu ao PMDB seu lugar ao sol. Esse tema será tratado com mais detalhes em postagens futuras.

[17] Dilma Rousseff é uma das fundadoras do PDT, ao qual esteve ligada até 2001.