sábado, 26 de março de 2022

A DUALIDADE NORTE/SUL NA GEOPOLÍTICA DE DUGIN

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'O Norte era e permanece, por sua própria natureza, o lugar escolhido do poder. Assim, as iniciativas geopolíticas verdadeiramente efetivas vem do Norte. O "Sul pobre'' tem hoje uma vantagem espiritual sobre o "Norte rico", mas não pode servir como uma alternativa séria à agressão profana do "Norte rico", nem pode oferecer um projeto geopolítico radical capaz de subverter a visão patológica do mundo moderno.''

Alexander Dugin



Uma das tentativas mais fundamentais de ver a Geopolítica pela ótica da Geografia Sagrada é a de Dugin. Leiam, por exemplo, o texto "From Sacred Geography to Geopolitics", em que o pensador russo diz que "dentre todas as ciências, é a geopolítica aquela que preservou a maior conexão com a Tradição e as ciências tradicionais."


Correto ou não sobre este ponto, é óbvio que Dugin mobilizou a Geopolítica clássica como forma de traduzir para a elite política russa [e mais recentemente para a Ocidental] aspectos fundamentais de sua perspectiva tradicional.

Notem que falo de ''sua perspectiva tradicional'', pois não se pode confundir a voz de Dugin com a da Tradição, como se ele fosse um Profeta. O russo tem sua própria abordagem dos principais elementos e temas da Tradição, e se vê em continuidade [crítica, pois ele não é só um repetidor de ideias] da escola tradicionalista de Guénon e Evola.

E para esta, que é a verdadeira fonte e raiz da tradução proporcionada por Dugin, nenhum dualismo é contraposição pura e simples, sempre há espaço de complementaridade que aponta para o âmbito superior que as unifica e que é a origem metafísica de ambas as posições. Nunca se pode falar de um ''ou/ou'', sem vislumbrar um "E" mais acima, que pode inclusive ser alcançado por um método que enfatize o "nem isso nem aquilo''. [como fazia Guénon ao mobilizar o Advaita para falar de Tradição.]

Nada disso implica que em uma dimensão própria estas dicotomias deixem de ser funcionais e importantes, inclusive na adoção de vias e posições específicas nas situações da vida social, política e pessoal. Há todo sentido do mundo em escolher entre terra e mar [ou entre terra que se torne anfíbia, e mar que se torne anfíbio, o que não passa também de outra analogia].

Mas há todo sentido do mundo também em escolher entre o Norte e o Sul.

Dugin toma uma decisão neste quesito. Ele sabe que as posições do Norte e Sul tradicionais estão embaralhadas na História e na Geopolítica. Mas ainda assim afirma que o Sul Global -- uma posição geopolítica -- é necessariamente passivo em relação ao "Norte" [mesmo que um norte decaído e corrompido].

O russo não abre mão desta posição: a liberdade dos povos chegará quando o sul global, que guarda resquícios e fragmentos da Tradição mas que não tem força para se tornar uma alternativa de fato às forças antitradicionais, se aliar de maneira subordinada ao Norte Eurasiano [que, ainda que decaído, guarda o aspecto ativo necessário a conduzir a luta contra o Caos].

O posicionamento de Dugin reflete sua visão de que o Norte [geográfico, global, geopolítico] é ativo e soberano mesmo em uma era de trevas; e que o Sul [geográfico, global e geopolítico] é passivo e subordinado mesmo que, diante das circunstâncias, seja guardião da sacralidade em um mundo secularizado.

Ele expõe o projeto em cores mitológicas, que na verdade são aplicações de uma visão pessoal sobre o simbolismo sagrado. Uma visão que dá predileção à Rússia, obviamente:


"Pode ser dito que a correlação entre o Norte e o Sul nos tempos primevos tem uma relação invertida com a presente em nossa época, já que é o Sul que atualmente preserva vínculos com a Tradição, enquanto o Norte definitivamente os perdeu. Ainda assim, esta afirmação não dá conta de toda a realidade [...]. O fato é que a Tradição foi preservada no Sul apenas em uma forma inercial, fragmentária e parcial. Ela mantém uma posição passiva e pode apenas resistir, está permanentemente na defensiva. Assim, o Norte espiritual não se transferiu totalmente para o Sul no Fim dos Tempos -- o Sul apenas acumulou e preservou impulsos espirituais que lhe chegaram certa feita através do Norte sagrado. Nenhuma iniciativa tradicional ativa pode vir do Sul por princípio. [...] O Norte era e permanece, por sua própria natureza, o lugar escolhido do poder. Assim, as iniciativas geopolíticas verdadeiramente efetivas vem do Norte.
O "Sul pobre'' tem hoje uma vantagem espiritual sobre o "Norte rico", mas não pode servir como uma alternativa séria à agressão profana do "Norte rico", nem pode oferecer um projeto geopolítico radical capaz de subverter a visão patológica do mundo moderno.
[...](1) O Norte rico terá oposição não do "Sul pobre", mas do "Norte pobre". O Norte pobre é o sagrado ideal do retorno às fontes nórdicas da civilização. [...] O ''Norte pobre'' existe [em um sentido geográfico] na Rússia. [...]
(2) O "Sul pobre", incapaz de se opor de forma independente ao Norte rico, entrará em uma aliança radical com o Norte Eurasiano pobre e dará início a uma guerra de liberação contra a ditadura do Norte."

Dugin não poderia ser mais claro: O Sul [geográfico, global e simbólico] é, por natureza, subordinado. É conduzido, não conduz. Ele pode, no máximo, se aliar com o Norte Eurasiano, que por causa da Guerra Fria se resguardou em parte do declínio do Norte Geográfico, mas que se mantém como polo ativo e dominante. E admitindo esta dependência, pode participar da guerra sagrada que fará um cerco às forças antitradicionais.

Eu ia me opor a esta visão de Dugin no meu curso de Geopolítica, que acabei não completando [ainda], mostrando o quanto a leitura e aplicação de princípios Tradicionais do russo se equivoca neste ponto [não sei se por ele não ter entendido realmente as implicações deste simbolismo, ou se por interesse em manter a superioridade russa]. É possível, até provável, que eu retome a linha de raciocínio nos próximos meses.

Mas o fato permanece. Não se trata só de Terra e Mar. Se trata também de Norte e Sul.

E, no fim dos tempos, o último homem em pé será brasileiro.

quarta-feira, 9 de março de 2022

A QUARTA TEORIA POLÍTICA DE DUGIN É UM NEOFASCISMO?



Há muita curiosidade, e maiores incompreensões ainda, quanto à proposta teórica e ideológica de Alexander Dugin, que muitos da mídia qualificam, algo impropriamente, como "guru" de Putin.


Dugin se envolveu em algum grau com movimentos declaradamente fascistas no fim dos anos 1980 e início dos 1990, mas logo os deixou pra militar no assim chamado ''Nacional Bolchevismo", que tentava sintetizar alguns elementos fascistas e stalinistas.

Nos anos 2000, já mergulhado no pensamento tradicionalista, decidiu abandonar aquilo que considerava como ideologias modernas ou contemporâneas. E propôs uma meta-teoria para superá-las , publicada em livro originalmente em 2009, e traduzido pro inglês em 2012.

Na obra, o russo estabelece uma nova classificação das principais ideologias, ao mesmo tempo em que as redefine segundo o sujeito normativo que identificava em cada uma delas. Elas seriam o liberalismo, o socialismo e o fascismo [nacionalismo].

O liberalismo é o nome "guarda-chuva" dado a toda ideologia que faz do sujeito moderno o princípio normativo da sociedade. Dizendo de outra maneira, ele aplica o epíteto de liberal a toda ideologia estritamente individualista [no sentido em que Louis Dumont dava ao termo]. O socialismo, identificado principalmente com o marxismo, diz respeito ao conjunto de ideologias que relativizam o indivíduo particular frente a uma coletividade definida pela ordem material de produção da vida social: ou seja, pela classe econômica. Por fim, o fascismo é visto de forma ampla. Todo nacionalismo, não somente os étnicos, com matiz anti-individualista e associado ao Estado-Nacional cai na definição da Terceira Teoria Política. Ou seja, se trata de conceito mais amplo do que o mobilizado na Academia, e que não pode ser reduzido somente ao fascismo italiano ou ao nazismo.

Frequentemente, Dugin é acusado de ser "neofascista". Mas é necessário averiguar o que se entende por este termo pra ver se há algum caráter heurístico no rótulo imputado ao russo.

Há abordagens psicologizantes do fascismo, que o associam à ideia de "personalidade autoritária". Outros, pelo contrário, pensam que qualquer ideologia iliberal, ou seja, anti-individualista, e portanto com traços hierárquicos ou holistas, é necessariamente fascista. Dificilmente estas abordagens são compatíveis com o olhar histórico. O fascismo é uma ideologia marcada por certas características, programas e agendas, não uma doença psíquica. Já o UR-Fascismo tornaria as práticas de poder de todos os povos da história, exceto as do Ocidente contemporâneo, em graus diversos de fascismo, o que dificilmente resiste a qualquer escrutínio histórico e antropológico adequado.

Há 3 argumentos que, até onde vejo, negam qualquer caráter verdadeiramente fascista à QTP:

I) Dugin é fortemente anti-racista. Ele inclusive amplia o conceito de racismo a fim de incluir toda posição, postura ou mentalidade que hierarquize povos de maneira etnocêntrica;
II) Não é nacionalista. Pelo contrário, é crítico à relativização de todas as identidades em prol de um conceito massificado e homogêneo de nação;
III) Dugin repudia o conceito Ocidental de Estado-Nação, que considera prejudicial e superado.

Se formos além nestas formulações, o pensador russo é muito mais platônico em sua perspectiva metafísica do que verdadeiramente hegeliano.

São elementos que negam o caráter fascista do pensamento de Dugin, ainda que se possa considerá-lo holista, hierárquico e autoritário.

O pensador russo supõe superar as teorias políticas contemporâneas propondo um novo sujeito. De modo geral, ele sugere duas aproximações ou alternativas para este papel: o primeiro, uma determinada leitura do conceito de Dasein, de Heidegger. O segundo, que considero bem mais interessante, a mobilização e ressignificação da tese das Estruturas do Imaginário, de Gilbert Durand. Para Dugin, cada povo tem um Logos específico e próprio, que ele associa a um dos regimes do imaginário do intelectual francês.

Apesar destas formulações, a principal chave para ler a proposta de Dugin continua sendo a tradicionalista. E talvez, ainda mais especificamente, Henry Corbin. Quando Dugin fala de Povo, não está se referindo a uma coletividade massificada, nem muito menos a um etnia. Ele reivindica, por um lado, a noção de Narod, que tem longa história no socialismo populista russo, mas que também foi instrumentalizada, com um significado historicizado, pelos soviéticos. Por outro lado, e na verdade acima, se encontra a angelologia de Corbin. Todo Povo verdadeiro é expressão de um Anjo, de um universal ou forma divina específica, com um destino e uma atuação precisa na "história sagrada". É uma visão tradicionalista.

Daí também porque a proposta da QTP não se reduz a um molde a ser exportado e copiado por todos os povos. Cada Narod teria de buscar em seu Logos [ou imaginário] os princípios constitutivos de sua organização social e política. A QTP se define, antes de tudo, como uma meta-teoria.

No campo geopolítico, o Narod se vincularia a um Grande Espaço, e não a um Estado-Nacional. O pensador russo defende um ordenamento internacional formado por confederações de Estados, conjuntos multi-nacionais com formas civilizacionais diversificadas. A UE ou a "Pátria Grande" [latino-americana] seriam dois exemplos possíveis de Grandes Espaços civilizacionais, organizados segundo o Logos dos Povos q neles habitam. [existem, portanto, um número indefinido de possibilidades de formações sociais e políticas].

terça-feira, 8 de março de 2022

DA FRENTE SOL DA PÁTRIA -- A entrevista à Folha de SP e a participação de Zanini no My News

 



O jornalista Fábio Zanini, que entrevistou a mim e aos meus confrades Uriel Araujo e Lucas Leiroz para a Folha de São Paulo, resultando em excelente matéria sobre o que chamou de ''seguidores de Dugin'' no Brasil, marcou presença no canal My News, no Youtube, no dia 07 de março.


No geral, a participação de Zanini foi boa, já que o tema é complexo e cheio de nuances, que mesmo um público qualificado teria dificuldade de digerir de imediato. Mas devo pontuar algumas questões que foram ditas e que não refletem por inteiro nem o pensamento de Dugin nem a realidade dos movimentos que dialogam, em maior ou menor grau, com o pensador russo.


1) Fábio Zanini afirmou que, segundo Dugin, a Rússia deveria se expandir territorialmente para englobar regiões em que houvesse populações russófonas, que ele chamou na entrevista de 'povo russo'. Mas há um erro fundamental nessa consideração: a noção de Povo [Narod] para Dugin não tem conotação étnica. A própria Rússia é um Estado multinacional, com diversas etnias, repúblicas com diversos graus de autonomia, e línguas diferentes em seu território. Os ''russos étnicos'' são no máximo 60% da população russa. A noção de Narod é herdeira dos tempos soviéticos, e implica antes de tudo uma população que se constitui como Povo por conta do processo histórico, com tudo que o conforma;


2) O jornalista informou, de maneira correta, que houve um 'racha' na Nova Resistência que gerou uma nova corrente dissidente. A separação não foi motivada pela Guerra da Ucrânia ou qualquer inimizade. Esta nova corrente é a Frente Sol da Pátria que, atenção, NÃO FOI AINDA LANÇADA OFICIALMENTE, mas cuja existência já é pública. Ela se constitui de antigos militantes da NR, inclusive algumas lideranças formais e estratégicas, e também de pessoas que nunca tiveram militância neste campo. A Frente Sol da Pátria está se preparando para raiar muito em breve no interior do nacionalismo-popular brasileiro, com uma proposta que coloca o Brasil no centro da dissidência.


3) O jornalista também disse que as organizações que dialogam com Dugin ''não se alinham totalmente com Bolsonaro". No caso da Frente Sol da Pátria isto é falso. Não nos alinhamos de forma alguma com Bolsonaro. Em minha entrevista à Folha de São Paulo, deixei claro que ''militamos contra Bolsonaro em todas as frentes". Sim, somos conservadores, mas não somos moralistas. Bolsonaro é um moralista que posa falsamente de conservador. Além disso, discordamos de todas as pautas anti-trabalhistas e neoliberais de Bolsonaro. Repudiamos também sua política externa adesionista aos EUA e ao Partido Republicano norte-americano -- bem como o abraço acrítico à política israelense, que afronta os interesses nacionais, a história do Itamaraty, e o imenso contingente de descendentes de árabes que são parte indissociável da nossa formação social e cultural --, o desprezo que ele demonstra pela necessidade de integração latino-americana e de aprofundamento do Mercosul e outros instrumentos de estreitamento de nossas relações com os vizinhos da América do Sul. E sequer preciso entrar nas terríveis associações que a família presidencial tem com figuras milicianas ligadas à Máfia do Jogo e a organizações de narcotraficantes;





4) Zanini qualificou as organizações que dialogam com o pensamento de Dugin de "anti-esquerdistas''. Isto só se aplica à Frente Sol da Pátria em nossa crítica à esquerda pós-moderna, também chamada de esquerda identitária, associada a ONGs e diretrizes emanadas dos principais centros do capitalismo mundial. A Frente Sol da Pátria se abraça aos pensadores, políticos e militantes de raiz nacionalista-popular, trabalhista e socialista que defenderam uma superação do liberalismo e do capitalismo, muitos deles identificados com a magnífica história e corrente da esquerda sul-americana. Também nos inspiramos em diversos movimentos de inspiração socialista que ao redor do mundo batalharam pela libertação de seus povos e pelo fim da opressão capitalista. Nós repudiamos o individualismo da ''nova esquerda'', mas não a esquerda per si, nem muito menos o socialismo, ainda que não sejamos marxistas;


5) Por fim, embora sejamos apresentados como ''duguinistas'' ou ''seguidores de Dugin'', esclarecemos que a Frente Sol da Pátria não tem gurus. Não somos nenhum tipo de olavetismo russófilo. Dugin é um amigo [político] e importante intelectual, mas não é nem poderia ser a única referência teórica e política de um movimento que abraça, antes de todas as coisas, a brasilidade e o destino sul-americano. Dugin não é, para a Frente Sol da Pátria, uma inspiração maior do que Darcy Ribeiro, Getúlio Vargas, Perón, José Carlos Mariátegui, Ariano Suassuna, Caio Prado Júnior, José Martí, Gilberto Freyre, Manuel Bonfim e tantas outras figuras que pensaram a grandeza do nosso país e da América Latina. Dialogamos abertamente e de forma madura com o pensamento e as posições de Dugin, mas não somos correias de transmissão de suas agendas políticas. É verdade também que somos Tradicionalistas, mas este é um paradigma de pensamento muito mais amplo do que se convenciona reproduzir na imprensa, e que não se reduz também aos autores do século XX que são rotulados como tradicionalistas.


O SOL HÁ DE BRILHAR MAIS UMA VEZ!


André Luiz V.B.T. dos Reis
08 de Março de 2022


domingo, 6 de março de 2022

E SE DUGIN FOR DE FATO A MENTE POR TRÁS DE PUTIN?



por André Luiz V.B.T. dos Reis

A grande mídia apresenta o cientista social Alexander Dugin como o ''guru'' e ''ideólogo'' de Putin, mas não se esforça para compreender quais seriam então estas ideias que movem o atual governo russo. Tratam tudo como uma forma de ''nacionalismo'' saudosista dos tempos soviéticos ou czaristas. Mas esta é uma descrição distorcida, caricatural, mais confunde do que explica.




Alexander Dugin é um geopolítico que, na linha de clássicos desta ciência, como McKinder, Spykman e Schmitt, pensa existir um confronto estrutural entre Mar [potências marítimas, ou poder naval] e Terra [potências continentais, poder terrestre]. Esta é também a leitura da escola geopolítica anglo-saxã, ou norte-americana e britânica.


O poder marítimo teria construído um sistema-mundo [conceito muito caro ao sociólogo Immanuel Wallerstein] a partir das Grandes Navegações. O centro deste sistema-mundo está na aliança anglo/holandesa/norte-americana [daí ser chamada de sistema ''atlântico'' ou atlantista], que controla os fluxos econômicos e também os circuitos militares e comerciais dos Oceanos. Este sistema-mundo promove determinadas instituições e valores nas áreas que domina, reduzindo-as a periferias suas. E a partir do controle dos mares, ''cerca'' as potências terrestres em todos os continentes.


O principal ''cerco'' se dá às potências da ''heartland'' eurasiática, que Mckinder considerava a área de maior potencial de recursos demográficos e materiais do planeta. Segundo a geopolítica anglo-saxã, o surgimento de um Estado que dominasse a heartland eurasiática geraria ''massa crítica'' suficiente para furar o ''cerco'' imposto pelo sistema-mundo atlântico. Este Estado se expandiria, buscando águas quentes [navegáveis] e projetaria poder global.


Geopoliticamente, a Guerra Fria era um confronto entre Terra [União Soviética, potência eurasiática] e Mar [EUA, centro governante do sistema-mundo atlântico]. O cerco à Eurásia se dava pela OTAN, na Europa; por Israel e Turquia no Oriente Médio e Cáucaso; pela Península Arábica; pela Índia; por Taiwan, no Mar do Sul da China; pela Coréia do Sul; e finalmente pelo Japão. Era um arco de controle da expansão eurasiática, que G. Kennan, outro geopolítico norte-americano, chamava de "estratégia de contenção''.


O cerco realizado pelo sistema-mundo atlântico também é promovido nos demais continentes. O geopolítico norte-americano N. Spykman desenhou um controle do Sul pelo Norte Geopolítico a partir do domínio de áreas estratégicas [o controle europeu do Mediterrâneo, por exemplo, permite subordinar geoestrategicamente a África; o controle norte-americano do Mar do Caribe permite o domínio da América do Sul].


Esta estratégia implica em evitar a união dos poderes terrestres de cada continente, um modo de ''dividir para reinar'', já que esta fragmentação impediria o surgimento de Estados com peso crítico suficiente para contestar o domínio do sistema mundo atlântico.



Ora, a geopolítica de Dugin é uma estratégia para quebrar este domínio. Não apenas na Eurásia, a partir da aliança, e alguns casos união, dos poderes terrestres da região. Mas na Europa [União Europeia], África, América Latina, Ásia Central, Extremo Oriente etc.


Em cada uma destas regiões, os poderes continentais deveriam se unir militar e economicamente para cortarem os laços com o ''império atlantista global" [o sistema-mundo controlado a partir dos EUA]. Os laços econômicos da Rússia se dariam, com tendências autárquicas, dentro da Eurásia e de seu Grande Espaço específico.


Portanto, esta diminuição de laços econômicos, financeiros e políticos com o Ocidente não é uma má notícia para a ótica de Dugin. Essa ''desglobalização'' é justamente o anúncio, os primeiros sinais do fim do domínio mundial do Poder Marítimo, e do surgimento de um mundo com vários polos de poder, alguns deles representando os poderes terrestres de continentes diferentes: União Eurasiática centrada na Rússia; a civilização chinesa; a União Europeia com autonomia da política anglo/norte-americana.


Este projeto abriria também possibilidade para que o Sul rompesse a subordinação ao Norte Geopolítico. Seria possível pensar, por exemplo, um Grande Espaço soberano na América Latina.


Toda vez que noticiam a Rússia retirada de alguma organização esportiva mundial [FIFA, COI] ou desligada de multinacionais ou redes financeiras globais, ou ''punida'' pela indústria cultura norte-americana [Hollywood, Netflix etc.] com boicote de seus produtos; temos de pensar que isto é visto, da ótica de Alexander Dugin, não como uma minoração do poder russo. Mas como um passo no projeto de construção de uma civilização autônoma, autodeterminada, com um Grande Espaço continental próprio, e um sistema econômico mais ''autárquico'' e autocentrado.


Muitos analistas insistem que Putin não previa o tamanho das sanções e da reação internacional. Talvez seja hora de imaginar que o sentido destas sanções, este movimento específico do Ocidente, foi previsto [e desejado] por Dugin no grande tabuleiro de xadrez da Geopolítica Mundial.