terça-feira, 3 de dezembro de 2019

A brasilidade: considerações étnicas e institucionais, ou: Do Jesuíta Gabriel Malagrida até o Caboclo das Sete Encruzilhadas


''Chegou, chegou.
Chegou com Deus.
Chegou, Chegou.
O Caboclo das Sete Encruzilhadas.''


Ponto do Caboclo das Sete Encruzilhados, em sua primeira manifestação em 15 de novembro de 1908



"Se querem saber meu nome, que seja este: Caboclo das Sete Encruzilhadas, porque não haverá caminhos fechados para mim."

Caboclo das Sete Encruzilhadas


No Congresso Nacional do Nova Resistência, fiz uma exposição em que defendi que há dois pilares mais gerais de constituição do Brasil.



O primeiro pilar é o da mestiçagem -- que se deu em diversos graus, raciais e culturais -- entre três raízes: a portuguesa, a indígena e a africana. Essas ''raízes'' são como as gunas da matéria prima na metafísica hindu, são tendências da argamassa fundamental de nossa gente, vetores cuja mistura formaram a base de sustentação da brasilidade.


Os principais pensadores e explicadores do Brasil tinham consciência da potência dessa mescla mas a valoravam de modo distinto. Uns a lamentavam, outros tentavam conter seus ''efeitos deletérios'', outros tantos pensavam que uns componentes dessa mescla eram bacanas e outros horrendos.


Houve aqueles, claro, que viram que essa mescla não era ruim, e sim a constituição de um ''povo novo'', diferente de todos os que antes já haviam existido, e destinado a formar uma grande civilização. Essa é basicamente a ordem de ideias de Darcy Ribeiro: da aculturação de portugueses, indígenas e africanos em meio à mestiçagem e à violência do processo colonial se forjou um vazio que foi o berço do brasileiro.


Nem Darcy, desconfio, estava plenamente consciente da profundidade dessas considerações.


Mas um outro tema importante em alguns desses pensadores era o de definir qual dos vetores, tendências ou elementos dessa matéria prima serviu de ponto de equilíbrio da ''fervura'', ou ponto de fundamentação para a formação da brasilidade.


Eu não fico em cima de muro: mais uma vez como Darcy Ribeiro, e um pouco como Capistrano de Abreu e Manoel Bonfim, eu penso que esse ponto de equilíbrio das ''gunas'' das matéria prima brasileira é dada pela cultura indígena.


Isso não significa, como alguns podem pensar, em menosprezar as origens lusitanas ou africanas, porque sem elas nem se falaria de uma matéria prima como base de formação de um povo específico.


E isso também não significa que depois dessa mistureba toda sejamos, no fim, indígenas, porque é óbvio que não somos. Somos é ''indianizados'', ''americanizados''. Os indígenas não precisavam de maiores adaptações para viver na América, como não precisam ainda hoje em dia. Os outros povos que aqui chegaram sim precisavam aprender e adotar as adaptações indígenas. O que tem a ver com o papel exercido pela terra, que no caso é a América, na conformação dos povos.


Talvez, melhor do que dizer ''indianização'' seja falar de ''acaboclamento'', já me apropriando de um conceito de Luiz Antônio Simas em outra situação e amplitude. O ponto médio ou eixo de equilíbrio dessa mescla original foi acaboclamento. A brasilidade é, em algum grau, cabocla no sentido de incorporação existencial das deidades da terra.


[isso me faz pensar em alguns movimentos gaúchos que pensam que não são brasileiros. Como não, se os pampas são acaboclados?]

Padre Jesuíta Gabriel Malagrida foi missionário entre aldeias indígenas na Amazônia na primeira metade do século XVIII, e ensinou Teologia e Filosofia em São Luís do Maranhão. Também pregou em Recife e Salvador. Foi preso pelo governo iluminista do Marquês de Pombal porque se opôs à explicação racionalista e naturalista que o governo deu ao grande terremoto que atingiu Lisboa em 1755. Segundo o Padre, a causa do sismo era a Ira Divina. Foi morto como herege. O Caboclo das Sete Encruzilhadas diz ser ''reencarnação'' do Jesuíta Malagrida. 


O segundo pilar de modelação do Brasil é sócio-institucional. E aí falamos do papel das instituições portuguesas, principalmente do Estado Imperial, ou então do peso da Igreja Católica ou do sistema escravista.


Assim como as raízes étnicas, todas essas instituições foram determinantes na modelação do nosso país, umas com maior ou menor força. O Estado, por exemplo, foi estabelecido de cima para baixo por uma elite que olhava para fora do país e não se percebia como parte da América do Sul. O que não significa que o Estado, por inteiro, não tenha nada a ver com o imaginário do povo que as elites negavam.


No entanto, estou do lado aqueles que consideram que a instituição mais determinante na formação do Brasil foi o escravismo. Se existe um elemento que podemos considerar deletério, uma herança do passado que é, no fundo, extremamente presente, e que macula e obstaculiza a realização plena das potencialidades da nossa Pátria, ela é a escravidão.


Gilberto Freyre percebeu intensamente esta questão, embora eu discorde dele em diversos outros pontos. Florestan Fernandes, com quem tenho também sérias divergências, também estava correto quanto à sobrecarga da escravatura. E Jessé Sousa, mais recentemente, acertou em cheio ao dizer que o berço do Brasil [talvez não o berço, mas com certeza o principal processo dinamizador das formações institucionais] não estava em Portugal [nem na cultura, nem nas instituições lusitanas], mas no sistema escravista.


O escravismo brasileiro é anti-tradicional, construído em torno de determinado sistema-mundo comercial primeiro centrado em torno de Amsterdã e depois de Londres. Ele é que forjou uma elite litorânea que olha para fora e não se sente parte do povo brasileiro. Os traidores que escolheram não ser parte do nosso país, e sim elos do processo de espoliação a que se referia Brizola.


Somos caboclos lutando por independência e liberdade.