domingo, 29 de setembro de 2024

O Anticristo

"Quando vocês ouvirem que Cristo chegou ou apareceu na terra, então saibam que se trata do anticristo."

São Zósimo da Palestina




Existem muitos ensinamentos e profecias dos Santos Padres que nos auxiliam a entender o Anticristo e seu reinado no fim dos tempos. Quando o tema é abordado, em geral se fala de forma imediata de política, buscando nos eventos cotidianos os sinais do fim dos tempos. Mas há um tópico que é ainda anterior a este, e que se liga também à angelologia. E remonta ao significado da Rebelião dos Anjos e da guerra que se estabelece a partir desta catástrofe cósmica.


Os Santos Padres dos primeiros séculos levavam muito a sério uma gama de literatura que compilavam tradições antiquíssimas, mas que não foram incluídos no cânone escriturístico. Dentre estas obras, O Livro de Enoque e o Livro dos Jubileus tem peso bastante considerável. Não vou me estender sobre este ponto para o qual já há texto neste blog: leia aqui.


Chamo a atenção para este trecho específico do texto: "E aí voltamos ao primeiro livro de Enoque e suas descrições das rebeliões dos Anjos, comandada por Azazel e por Samiyaza, e que ensinam aos homens segredos em diversos âmbitos, incluindo aí a magia, a metalurgia, as estratégias e armas de guerra, e outros tantos mistérios da Criação -- como ritos e cultos que envolvem aborto, abuso sexual, consumo de sangue, sacrifício humano e canibalismo. Estes mesmos "Guardiões" Angélicos estupram mulheres e geram uma descendência de Gigantes [Os Nefilins] que vão escravizar a maior parte dos seres humanos -- narrativa que deixou marca explícita no textos canônicos, como em Gênesis 6:1 a 4, ou como na ordem de São Paulo em I Coríntios 11:10 para que as mulheres usem véus como proteção contra os anjos [Os 'Guardiões' ardem de luxúria pelas mulheres, há todo um vínculo aí entre a natureza feminina, o erotismo, e a sabedoria divina].''


Pois bem, a existência de filhos de demônios caminhando materialmente sobre a terra é plenamente possível se levarmos em conta estas tradições e os ensinamentos dos Padres.


Santo Inácio Brianchaninov dizia que os espíritos demoníacos possuem o vício da luxúria, ainda que fossem incorpóreos. São Paulino de Nola explicava dessa maneira o uso de véus por parte das mulheres: ''Que compreendam por que Paulo ordenou que suas cabeças fossem cobertas com um grande véu: por causa dos anjos, isto é, dos anjos que estão pronto para seduzi-las e que os santos condenarão.''


Até o século III, todos os Padres interpretaram o trecho escriturístico sobre os Nefilins, Gigantes que seriam frutos das relações entre os Filhos de Deus e as filhas dos homens, como a união sexual entre anjos decaídos e mulheres, seguindo a interpretação presente nos relatos de Enoque.


São Metódio dizia, ''Os demais permaneceram nas posições para as quais Deus os criou e apontou; mas o diabo era insolente, e tendo nos invejado, agiu de modo perverso no dever que lhe foi confiado; como também assim fizeram aqueles que subsequentemente se enamoraram por pecados carnais e entraram ilicitamente em intercurso com as filhas de homens. Para estes também, assim como ocorre com os homens, Deus concedeu o fruto de suas próprias escolhas.''


São Justino Mártir foi ainda mais direto: ''Nos temos antigos, demônios perversos apareceram e defloraram mulheres.''


Depois do século III, muitos Padres encararam os ''Filhos de Deus'' como homens poderosos que haviam atingido uma gnose demoníaca. Mas essa explicação não entra em conflito com a anterior, como se depreende das explicações e profecias sobre o nascimento do anticristo. E também repercute uma literatura antiga, pois este é a explicação adotada no Livro dos Jubileus.



Esta questão está intrinsecamente vinculada ao Anticristo, o ''filho do diabo'', que nada mais é que uma imitação canhestra e grotesca de Deus. Santos afirmaram que ele será filho de mãe judia, e portanto judeu, ainda que nascido na Rússia, em uma região entre Moscou e São Petersburgo. A respeito do pai há, porém, indicações aparentemente conflitantes. Alguns indicaram que o diabo tentaria encarnar num homem em imitação ao Filho de Deus. Outros explicaram de forma mais pormenorizada que o anticristo teria pais humanos, mas no momento de sua concepção o diabo entraria no útero de sua mãe, se misturaria ao sêmen do pai, e transferiria pra criança a plenitude de seu poder.


São Nilo do Monte ensinou: ''Sim, ele nascerá do sêmen, mas sem participação do homem. Do sêmen, mas não de algum homem.''


São Serafim de Sarov profetizou de forma pormenorizada: ''Jesus Cristo, o verdadeiro Deus-Homem, o Filho de Deus Pai, nasceu em Israel por inspiração do Espírito Santo, e o anticristo, o homem-diabo, nascerá no meio dos russos. Ele será filho de uma prostituta da tribo de Dã e filho do diabo por meio da transferência artificial para ela do sêmen do homem, com o qual o espírito das trevas se estabelecerá em seu útero. Mas um dos russos que viverá no tempo do nascimento do anticristo (similar a São Simeão o Recebedor de Deus, que anunciou o nascimento da Criança Jesus ao mundo) vai amaldiçoar o bebê recém-nascido e anunciar ao mundo que se trata do verdadeiro anticristo."


Ora, os romenos acreditam que os strigoi [vampiros] podem conquistar materialidade física e passar a viver entre os homens. Eles seriam capazes de se reproduzir com mulheres. Os filhos dessas relações seriam "strigoi" vivos [Strigoi viu], entes amaldiçoados que se tornariam vampiros quando falecessem. Todo este folclore, que é mais universal do que se imagina, está em consonância com ensinamentos tradicionais.


É possível que, assim como o nascimento de Cristo foi preparado ao longo de séculos e séculos de ascetismo e purificação que culminou na linhagem que deu origem à Toda Santa e Pura Virgem Maria; assim também a chegada do anticristo seja preparada por toda uma linhagem diabólica, que vai culminar em uma virgem que é, ao mesmo tempo, prostituta de Satã. Esta é uma das facetas do Mistério da Iniquidade, que nada mais é que o grande plano concebido pelo Inferno em sua guerra cósmica contra a Igreja.


Este plano só entraria em sua execução final após a remoção do Katechon, citado pelo Glorioso Apóstolo São Paulo como o principal obstáculo ao surgimento do ''filho da perdição". O Katechon foi interpretado na Tradição da Igreja como o Imperador Romano. No Cristianismo Ortodoxo, o último Imperador Romano foi o Czar Nicolau II, assassinado pelos bolcheviques quando da Revolução Russa. Com o fim do Império Russo, o dique final para a chegada do anticristo foi removido.




É verdade que o anticristo é, ao mesmo tempo, uma força coletiva e psíquica, e também um tipo aplicado a diferentes personagens da História. Mas é também uma ''encarnação diabólica'', um homem que receberá o poder e a energia de Satã no fim dos tempos para impor o império do diabo na terra, tal como profetizado por diversos santos.


O anticristo será judeu, e pregará a tolerância religiosa, e uma religião universal. E terá imenso carisma, sendo reconhecido como um grande filantropo. Ele será também um mestre de magia, capaz de verdadeiros prodígios, e os judeus vão aclamá-lo como Messias. Todas estas informações estão profetizadas, e algumas delas podem ser lidas no Synaxarion do Domingo do Juízo Final.


O anticristo vai permanecer escondido, vivendo com discrição até os trinta anos de idade. Quando finalmente se revelar ao mundo, será sedutor, trará palavras de paz, e vai conquistar a simpatia da maior parte das pessoas. Será visto como aliado, inclusive, por muitos cristãos. Só quando estiver já com o poder nas mãos que seu ódio pela Igreja vai se tornar explícito e sumamente violento.


Segundo Santo Efraim o Sírio, "Ele virá em uma imagem que seduzirá a todos. Como um homem humilde, gentil, que diz odiar a falsidade, rejeita os ídolos, prefere a piedade e a bondade, ama os pobres, tem as feições belas, é doce com todos, e respeita especialmente a nação judaica, pois ela estará aguardando sua chegada [...]. Com astúcia, tomará medidas para agradar a todos, não aceitará presentes nem se expressará com ira, não se mostrará taciturno, mas seduzirá o mundo com bons modos, até que seja entronizado."


Santo Inácio Brianchaninov afirmou que "Aqueles que não compreendem o Cristianismo verão nele [no anticristo] um representante e defensor da verdadeira religião, e se unirão a ele. Ele se vangloriará, se anunciando como o prometido Messias, e os filhos da sabedoria do mundo vão saudar esta apresentação. Por causa de seu renome, poder, capacidade geniais e seu mais amplo desenvolvimento dos elementos do mundo, será visto por eles como um deus, e eles se tornarão seus cúmplices."


A descrição acima se aproxima muito da de um ''avatar'' da Nova Era, tão ao gosto de certa espiritualidade contemporânea alimentada pelo ocultismo e esotericismo ocidental dos últimos séculos. Ela se adequaria, por exemplo, às tentativas da Sociedade Teosófica de criar um ''novo Cristo'' na figura de Krishnamurti. Não é impossível que o Mistério da Iniquidade trabalhe no mesmo sentido, mas com a ação de fato comandada por Satã e seus anjos decaído, que ''ardem de luxúria'' pelas mulheres, e são capazes de gerar linhagens de proles demoníacas.


Há a formação de toda uma mentalidade, toda uma expectativa, todo um clima que nasce da confluência de uma espiritualidade que gira cada vez mais em torno do fenomenalismo, da busca por poderes psíquicos, mas também um vago sentimentalismo universalista travestido de humanismo, uma confiança sem fim nas possibilidades humanas, a ânsia pela globalização e unificações mundiais, o deslumbramento com a tecnologia, o fascínio com o fenômeno UFO etc.



O anticristo não vai seduzir o mundo apenas com belas palavras e ações filantrópicas. Ele será capaz de prodígios imensos, que deixarão todos os povos estupefatos. O anticristo receberá seu poder diretamente de Satã, nada nele estará livre da influência direta do diabo. E ele será capaz de enganar quase todos com este poder prodigioso, e isso inclui os próprios cristãos.

Há profecias que explicam que, antes da ascensão do anticristo ao poder, o mundo estará dividida entre dez Reis. O anticristo é o ''décimo primeiro rei'', que vai tentar impor sua autoridade sobre todos os demais. Sete dos reis vão se submeter voluntariamente ao anticristo. Três deles vão resistir e manter sua independência. Difícil saber até que ponto estes números são ''literais'', mas o conflito político descrito é evidente: O anticristo vai tentar dobrar os três reis romanos ''rebeldes'' pela força das armas. Será uma guerra mundial, escatológica, em que o filhote do capiroto estabelecerá seu domínio no globo.


Uma vez ''rei global'', a hipócrita doçura do anticristo vai chegar ao fim. Seu governo se tornará um totalitarismo sufocante, opressivo e genocida. Ele vai reconstruir o templo dos judeus em Jerusalém, e se fará adorar como deus. E perseguirá os cristãos que não o louvarem como Deus, aqueles que permanecerão fiéis à igreja. A perseguição será brutal, como nunca se viu na História, e ninguém se salvaria caso o tempo de reinado global do anticristo não fosse encurtado por misericórdia divina. O culto público a Cristo e a Eucaristia serão proibidas, e a Igreja terá de retornar às catacumbas.

Este tema ressoa bastante a perseguição aos cristãos no Império Romano antes de São Constantino e São Teodósio. O Imperador Romano era divinizado, e encarado como uma autoridade universal. Os habitantes do Império eram obrigados a adorá-lo, particularmente no Exército. Os cristãos eram mal vistos pelo governo imperial por causa da recusa a essa adoração, entendida como ausência de lealdade à Roma.


Desse modo, as profecias indicam que o anticristo vai reeditar o que foi realizado na Roma pagã nos primeiros séculos da Igreja. Mas com uma diferença, ele vestirá a carapuça de Messias Judeu, recebendo apoio do ''povo eleito''. Daí porque a reconstrução do Templo de Jerusalém sempre foi encarada por muitos santos como o indicativo da chegada do reinado diabólico na terra.

Há outros mistérios nesse período, como a pregação dos dois santos profetas que denunciarão o anticristo, serão assassinados por ele e, ressuscitados por Deus, vão subir até os Céus. Resumindo, o anticristo será derrotado na Segunda Vinda Gloriosa do Senhor, que ocorre no momento em que a Igreja já não puder mais realizar ofertas sobre a terra. Neste exato momento, o anticristo terá reunido todos os povos sob sua tirana para o confronto final.

E então virá o fim, de modo estrondoso, com a destruição de todas as civilizações, com a mudança de lugar de todos os mares, em que ''todas as montanhas se tornarão planas''. Deus invadirá a terra dando fim ao governo de três anos e meio do anticristo. E dando fim ao mundo tal como o conhecemos.


terça-feira, 24 de setembro de 2024

O CRISTIANISMO ENTRE GUÉNON E SCHUON, ou: como a Igreja dividiu os Iniciados Tradicionalistas

 


Uma das divergências mais conhecidas entre René Guénon e o Fritjof Schuon se deu quanto à natureza do protestantismo, mas trazia elementos que abarcavam o Cristianismo como um todo e até mesmo a compreensão de cada um desses autores sobre o significado de esoterismo e Iniciação.


Segundo Guénon, o Cristianismo nasce como um esoterismo sem qualquer dimensão exotérica, uma via iniciática de realização espiritual sem o objetivo de gerar um arcabouço religioso voltado a irrigar as relações sociais e institucionais de dada sociedade ou civilização.


Todos os ritos cristãos [Batismo, Eucaristia etc.] e todas as doutrinas [Santíssima Trindade, Encarnação do Verbo etc.] seriam originalmente esotéricas, reservadas a Iniciados. Os 'sacramentos' [mistérios] veiculariam forças divinas capazes de elevar o homem a um novo estado de SER [os ''estados universais'' ou angélicos], suplantando os limites da individualidade. Enfim, seriam propriamente iniciáticos também.


Mas o mundo romano estaria decadente, corrompido e indo pro buraco. Notem que Guénon tinha uma visão negativa sobre a Antiguidade Clássica. Para ele, tanto a civilização grega quanto a romana eram emblemas da queda e da degeneração, uma visão que causaria calafrios em qualquer evoliano.

O francês aceitava o argumento iluminista de que o Renascimento, o Humanismo e a Modernidade eram reemergências das tendências dominantes da Antiguidade Clássica, e por isso os criticava igualmente . No pensamento de Guénon, a Idade Média era uma civilização superior a estes dois outros momentos, um oásis no deserto. Em uma abordagem guenoniana, é até possível identificar a era das trevas [Kali Yuga] com o surgimento da civilização greco-romana, cujas consequências mais deletérias foram mitigadas ou obstaculizadas pelo cristianismo.

Era necessária uma retificação daquele mundo mediterrâneo degradado representado então pelo Império Romano. A Providência Divina terira feito com que a Igreja desenvolvesse um exoterismo, assumindo a missão de colocar ordem naquele caos. A Idade Média cristã que sucedeu a civilização mediterrânea seria, para Guénon, fruto da ação de Deus para estancar os problemas que levavam todo o mundo romano ladeira abaixo. A Igreja era o Katechon, a barreira contra o Anticristo, contra o surgimento do Ocidente. Toda essa narrativa de Guénon trai uma dimensão bastante vinculada ao catolicismo-romano europeu de seu tempo, que enfrentava os desafios do avanço da Ordem liberal.

O exoterismo desenvolvido pela Igreja na forma dos dogmas, da massificação do cristianismo, e do Direito Canônico seria uma solução proporcionada pelo próprio Deus [este ponto é importante para o francês]. Pois os ritos e doutrinas também 'desceram' até o âmbito do exoterismo. Os 'sacramentos' se tornaram exotéricos, ritos de agregação religiosa importantes para a consolidação e sobrevivência da individualidade [salvação da alma], mas não mais para a realização espiritual [entrada em estados superiores do SER].

O discurso guenoniano abriu problema importante nas obras tradicionalistas: já que a Igreja teve de se tornar exotérica por 'decreto divino', onde foi parar o esoterismo cristão? Nos mosteiros? Em ordens de cavalaria? Em grupos hermético-cristãos?

Já o protestantismo, que nasceu e cresceu impulsionado pelas forças desagregadoras da Cristandade Latina [Idade Media europeia], não seria nem esotérico nem exotérico, mas uma forma religiosa não tradicional, ou seja, sem qualquer vínculo com elementos sagrados, com forças apurusheia [superiores ao homem]. Era só um agente do caos ligada ao desfazimento da ordem cristã medieva, que era divina segundo Guénon.

Bom, o movimento de Fritjof Schuon se desenvolveu de modo muito poderoso nos EUA, país que tem matriz protestante e evangélica, além de iluminista e maçônica. Parte considerável dos seguidores da tariqa Maryammya cresceu dentro de igrejas e seitas protestantes [uma verdade que se aplica à própria família de Schuon], e não gostaria de abandoná-las e se converter ao catolicismo romano, ao islamismo, hinduísmo etc.

A tariqa Maryammya se vendia como uma organização esotérica capaz de ''complementar'' o exoterismo de qualquer religião tradicional. Desse modo, Schuon não exigia conversão de seus seguidores caso eles já estivessem em uma via tradicional [a não ser em casos excepcionais], apenas submissão a ele, o guru, no âmbito ''esotérico''.

Ele se constituía, portanto, como uma autoridade ''supra-religiosa'' e universal, capaz inclusive de reler todas as demais doutrinas segundo seus ''ensinamentos esotéricos''. Mas se o membro não praticasse nenhuma via tradicional, então teria de se converter a uma para ser aceito na Maryammya. Eis aí o dilema porque passavam os cristãos em geral, que não sabiam se existia esoterismo na Igreja, e os protestantes/evangélicos em particular, sequer considerados uma forma tradicional.

A solução de Schuon foi 'revisar' a abordagem guenoniana -- pelo menos quanto a Lutero, e não tanto quanto ao calvinismo. O suíço desvinculou o que cada via espiritual era enquanto 'arquétipo' e os exoterismos a que poderia dar surgimento, alegando, de modo provocativo, que todo exoterismo era 'herético' [desviante] em determinado grau quando comparado ao esoterismo.

Essa perspectiva schuoniana era um ''escândalo'' do ponto de vista guenoniano, para o qual a ortodoxia era importante mesmo no âmbito exotérico. Na verdade, Schuon se aproximava muito da teoria dos três ramos do cristianismo: o luterano/protestante/evangélico, o católico-romano, e o católico-ortodoxo.

O suíço negava também a modernidade de Lutero. O 'Reformador' seria acima de tudo um homem medieval que desenvolveu um exoterismo cristão compatível com a alma mística germânica -- outro ponto muito importante para o perenialismo schuoniano, já que uma das justificativas para a necessidade da pluralidade exotérica estaria na diversidade de tipos e temperamentos entre as populações humanas.

A partir daí, o líder da Maryammya 'reinterpretou' os ensinamentos luteranos de modo 'esotérico' [ou segundo a doutrinas da Tariqa que liderava], visando demonstrar como eram válidos e legítimos segundo o 'arquétipo espiritual' cristão e uma forma adequada de misticismo germânico. Reinterpreta inclusive o conceito de sacramento, visto como símbolo operativo exterior que ativava um princípio interior, justificando a ênfase luterana na fé individual -- e também certas abordagens mágicas do ocultismo oitocentista.

Para complementar, Schuon se afasta da narrativa guenoniana de que os sacramentos teriam se exoterizado no fim da Antiguidade. Para ele, eles continuam mantendo sua eficácia iniciática, de modo que os protestantes poderiam continuar praticando sua religião sem necessidade de se converter ao Islamismo etc.

A pendenga sobre o Cristianismo levou à ruptura definitiva e explícita entre René Guénon e Fritjof Schuon. E demarca também a divergência de ambos quanto a aspectos fundamentais do Tradicionalismo. E acima de tudo aponta a imensa dificuldade de adequar o cristianismo ao discurso tradicionalista.


Ícone de Cristo com uma espada no Mosteiro da Ascensão, em Kosovo


A perspectiva guenoniana leva à ênfase cada vez mais estrita na ortodoxia religiosa, em consonância cada vez maior ao Islã sunita e ao sufismo -- não surpreende que no fim dos anos 1930 Guénon considerasse todo o cristianismo como um cadáver espiritual, repercutindo uma posição mainstream dos sunnis. De modo muito peculiar, Guénon nunca aderiu à ideia de que ''todas as religiões são iguais e levam a Deus''. Esta afirmação moderna seria incompreensível para ele. Quanto mais o tempo passou, mais ele pareceu identificar a religião verdadeira com o próprio Islã -- ainda que mantivesse posições que escandalizariam boa parte dos sunitas.

Já a perspectiva schuoniana leva à relativização gradual de todas religiões em um sentido bastante contemporâneo. Todas elas são consideradas ''heréticas'' diante da verdadeira ortodoxia: o esoterismo da Unidade Transcendental cujos ensinamentos eram proporcionados pelo próprio Schuon. Estão borradas de vez as próprias delimitações entre ortodoxia e heterodoxia religiosa. As religiosidades eram apenas meios que podiam ser manipulados e reelaborados e reinterpretados segundo a Verdade esotérica, desde que o ''iniciado'' tivesse alguma boa vontade.

E desse modo, a Igreja dividiu pela espada a unidade dos Tradicionalistas, que é mais aparente do que muitos imaginam.