sábado, 26 de abril de 2014

O Noé de Aronofsky entre o gnosticismo e o cristianismo -- parte 2

''… aconteceu de eu cair em um pecado muito perigoso para minha alma. Mas embora não fosse do meu hábito esconder uma serpente nas profundezas de meu coração, agarrei-a pela cauda e descobri imediatamente que ela era um médico.'' São João Clímaco citando um monge, ''Escada da Ascensão Divina''

“As paixões da carne podem ser descritas como pertencendo à mão esquerda, o orgulho como pertencendo à mão direita'' 

São Máximo o Confessor

A Arca contendo a síntese do cosmos material em meio às águas do Caos: Noé e seu mundo se recolhem por Justiça



No post anterior citei alguns temas tratados pelo filme ''Noé'', de Darren Aronofsky. Como eu dizia, o filme se desenrola a partir de uma mistura de mitologia gnóstica e cristã tradicional, realizando uma leitura do Dilúvio permeada por simbologia cabalística. Abaixo continuo falando de mais alguns temas abordados na obra.




A semente do Jardim e a Arca no Caos

Depois de tomar a poção que lhe é oferecida por seu avô Matusalém, Noé chega à conclusão que a Justiça Divina separará o joio do trigo por meio das águas, que purificarão e renovarão o mundo. Matusalém entrega a Noé uma semente original do Jardim do Éden, por ele plantada no acampamento de sua família em frente à alta montanha em que vive o grande xamã. Os anjos caídos desconfiavam de Noé, mas a semente  brota miraculosamente dando origem a quatro rios que se estendem trazendo vida ao ambiente estéril e chamando os animais para a região. É como se da semente surgisse uma reprodução em escala menor do Éden. Este tema será repetido na Arca, mas agora com um sentido centrípeto, já que ela reúne a síntese do mundo material em seu seio. Quando o Dilúvio se abate sobre a terra, Noé conta a história da Queda para seus filhos e acrescenta: ''Lá fora é mais uma vez o Caos, e aqui um microcosmo''. 

O corpo luminoso de Eva colhendo o fruto proibido, vermelho como a carne e pulsante como um coração




O maligno mundo material

Diferente da narrativa bíblica, no filme os filhos de Noé não eram casados. Se o 'Criador' escolhera salvar a descendência de Sete, onde estariam as esposas dos filhos de Noé que supostamente garantiriam a continuidade da linhagem? Essa pergunta, feita por Cam ao pai, permanecia sem resposta, inclusive diante da esterilidade de Ila, que se encontrava em amores com Sem. Andando em meio aos descendentes de Caim, que também foram atraídos pelos rios e árvores nascidas da semente do Éden e já sabiam da iminência do Dilúvio, Noé se vê diante de toda a corrupção humana. Era gente movida apenas por seus desejos, simbolizada na exploração gananciosa de minas de Tzohar e na domesticação e morte de animais. Segundo explicou Noé aos filhos, aqueles homens acreditavam que sua força provinha do consumo da vida dos animais esquecendo que ela tinha sua origem, em realidade, no 'Criador'. Os homens se alimentavam dos desejos que possuíam pelo mundo; nas visões que Noé recebia sobre a Queda, o fruto proibido e colhido pelos pais ancestrais tinha a forma e pulsava como um coração. Os descendentes de Caim chegavam a vender as próprias crianças para conseguirem carne. Neste momento, Noé tem uma revelação ao ver sua face no rosto de um homem que devorava um animal que conseguira em troca dos filhos. Transtornado, retorna ao acampamento parecendo ter encontrado a resposta para o enigma colocado por Cam. Não há esposas pois o mal não está presente apenas nos descendentes de Caim mas em todos os homens. A tarefa da família de Noé deveria ser a de salvar os animais, os únicos livres da Queda, e deixar que a impureza -- ou seja, a humanidade e não somente a linhagem cainita -- se extinguisse da face da terra. A mulher de Noé retruca, chamando a atenção para características positivas dos filhos: Sem era leal, Ham era íntegro etc. Mas Noé a interrompe, dizendo que Sem era servil, Ham era ambicioso e que até ela teria um óbvio defeito: ''E você...você faria de tudo, bom ou mau, pelos seus filhos, não é?'' Noé percebe claramente um aspecto fundamental da natureza feminina, ligada à perpetuação e preservação da vida, e o condena. 



Tubalcaim

Na narrativa escriturística, Tubalcaim é mineiro, ferreiro, inventor de armas, instrumentos de sopro e químico. Tais funções estão ligadas àqueles que dominam as artes mágicas, lidam com o segredo das forças telúricas e são artífices da civilização. O antagonismo entre Caim e Abel evidencia toda a desconfiança que as comunidades pastoris possuíam em relação ao modo de existência e à espiritualidade dos povos agrícolas, marcada pela ideia do homicídio e sacrifício primordial. No filme, Tubalcaim se intitula rei dos homens e vê em sua capacidade de decidir pela vida e pela morte a realização de sua igualdade com o 'Criador'. Sua religiosidade não é marcada pela obediência, mas pela busca e preservação da força para realizar aquilo que deseja -- encontrada por ele no consumo do mundo, nas minas de Tzohar e na alimentação carnívora. Ao ser impedido de entrar na Arca por Noé, neste momento protegido pelos ''Guardiões'', monta um exército para derrotá-los e sobreviver ao Dilúvio. Enquanto parte para a batalha pede ao 'Criador' para que lhe dirija a palavra, mas só encontra o silêncio. Tubalcaim consegue adentrar a Arca escondido, em meio ao caos do confronto entre homens e anjos decaídos, e ali se esconde com ajuda de Cam, que àquela altura estava rompido com o pai. Os dois planejam matar Noé, mas Cam demonstra dúvida sobre sua aptidão para o assassinato. Tubalcaim lhe diz que a capacidade de matar distingue o próprio ser humano: ''O homem não é regido pelos Céus, mas por sua própria vontade''. Nesta frase se encontra a chave de toda uma postura iniciática e teúrgica, que motiva o descendente de Caim a tomar de Lamec a pele da serpente edênica e a construir seu caminho para o interior da Arca ainda que contra a decisão de Noé. Mas se tem o segredo da centralidade da vontade e da decisão humana, falta a Tubalcaim a capacidade de ''escutar o Criador''. Cam toma a decisão de salvar o pai e mata Tubalcaim, que olha seu algoz nos olhos e lhe entrega a pele iniciática da serpente edênica dizendo: ''eis que você se tornou um homem''.

Noé e Tubalcaim: o profeta e o iniciado



Noé entre a Justiça e a Misericórdia

Os conceitos de Justiça e Misericórdia são usados tanto no cristianismo tradicional e no sistema cabalístico para se referirem a modos de ação de Deus no mundo, e se associam a temas morais, escatológicos, soteriológicos, cosmológicos e metafísicos, bem como ao simbolismo da direita e da esquerda. Nas Escrituras, Noé é escolhido por Deus por ser um ''homem justo'' e também Aronofsky o retrata buscando Justiça em todo momento. É esse ardor que o leva a matar caçadores de animais, entender a restauração do mundo como a dizimação da linhagem cainita e a concluir que sua própria família não merece ser perpetuada no novo mundo. Quando descobre que Ila -- cuja esterilidade foi sanada por Matusalém por pedido de sua mulher -- está grávida de seu filho Sem, Noé afirma que deixará o bebê viver caso seja homem, mas o matará caso nasça mulher e, portanto, seja capaz de perpetuar a humanidade. Nascem duas meninas e no clímax do filme Noé não consegue realizar sua ameaça. Pensando ter falhado com o 'Criador', se isola em uma caverna depois que as águas baixam, vivendo à parte dos seus. Quando Ila lhe pergunta porque poupou as netas, Noé afirma que ''naquele momento não sentia nada em seu coração senão amor absoluto''. Ila explica então que ele não fracassou, mas que o 'Criador' o havia colocado entre a Justiça a e Misericórdia, e que Noé havia escolhido por esta última. Um dos aspectos destes símbolos é a ligação da Justiça com a água, figurada na história pela comunhão e concentração das possibilidades do mundo na Arca durante o Dilúvio, um processo que ocorre com o próprio Noé. Já a Misericórdia, por um lado associada ao fogo -- que, segundo Matusalém, Enoque dizia que colocaria fim à criação no fim das contas --, também se liga, em um certo sentido, ao espraiamento do espírito divino no mundo. Noé inicia as netas com a pele da serpente edênica, que lhe foi dada por seu filho Cam, abençoando-as para que se multipliquem.

A serpente edênica abandonando sua glória original


A serpente da gnose

A serpente é um dos símbolos do próprio Cristo na tradição cristã. Ela está figurada na vara de Moisés, que jogada na terra se transforma em serpente diante do Faraó e devora as serpentes dos magos do Egito. Cristo também se compara à serpente de bronze enrolada em um poste que curava os israelitas no deserto quando picados por serpentes 'ardentes' enviadas por Deus para puni-los por sua falta de coragem. Ela é também expressão da phronesis, a prudência, sabedoria encarnada, que os Apóstolos devem emular quando enviados pelo mundo. Nas imagens da Queda no filme, Aronofsky faz a serpente edênica abandonar sua pele original e se tornar escurecida, vindo então a tentar o homem. A pele abandonada, em sua radiação gloriosa, é guardada pela linhagem de Sete e usada na iniciação do primogênito. A troca de pele da serpente, associada à queda e à morte, toma então o sentido contrário, de vitória sobre a morte através da própria morte.


[continua]


quinta-feira, 24 de abril de 2014

O Noé de Aronofsky entre o gnosticismo e o cristianismo -- parte 1




Choveram críticas ao filme Noé, estrelado por Russel Crowe, por não seguir a narrativa bíblica. E lá fui eu prevenido ao cinema, pronto pra ver mais uma distorção humanista e secular de algum enredo cristão. Mas eis que o filme é excelente! A história de Gênesis é contada tendo como fio condutor uma costura de mitologia gnóstica, mas sempre em diálogo teológico com o conteúdo das Escrituras. Não há um aprofundamento monumental, claro, estamos falando de Hollywood. Também não há de se confundir a qualidade do filme com a de Ben-Hur ou similar. Mas o resultado está longe de ser ruim. Darren Aronofsky construiu um filme nada trivial e deu a cara a tapa pra todos aqueles que esperavam ou uma visão agnóstica ou uma perspectiva literalista do Patriarca Bíblico. Parece que o sujeito flerta com o misticismo judaico, e, consciente ou inconscientemente, sua película está permeada de símbolos e temas cabalísticos. No fim das contas, a película não perde seu gosto ''ortodoxo'' e cristão apesar das mudanças na história e nos personagens. Muitas análises da obra se mostram confusas sobre o que viram. [1] Abaixo faço alguns comentários sobre alguns dos assuntos abordados. 


O diretor que não é ateu

Em diversas matérias sobre o filme li que Aronofsky seria ateu. Muitos dentre os que preferiam que a história bíblica fosse recontada a partir de uma visão secular pretenderam ver na narração da criação feita por Noé uma menção à suposta falta de crença religiosa do diretor. No filme se diz que ''No Princípio não havia nada, apenas trevas infinitas''. Esta frase, no entanto, passa longe de qualquer agnosticismo, ainda quando contrastada com todo o contexto que se segue. A existência do Criador é dada por certa por todos os personagens, e ele mesmo intervém na fluxo dos acontecimentos, mantendo contato com Noé por meio de visões e sonhos. A noção de ''trevas'' e ''nada'' original é comum em textos gnósticos para se referir à Infinitude Divina, completamente apartada de qualquer definição possível. Aliás, este aspecto permeia todo o filme: o Criador intervém e se comunica, mas seu caráter misterioso e transcendência permanecem em todo o momento. Quando se fala dele e de sua vontade, é sempre sob o olhar dos homens, que buscam compreender o que está acontecendo da maneira que podem e em seus próprios limites. Ou seja, não há no filme um narrador onisciente que possa dizer, de modo exato, aquilo que o Criador realmente tem em mente. Mesmo Noé sabe apenas fragmentos da verdade, e necessita de auxílio de outros para compreendê-los. 



As minas de Tzohar

Nos versículos sobre a construção da Arca, no capítulo 6 de Gênesis, Deus diz a Noé para iluminá-la com um ''tzohar''. A palavra pode significar uma abertura, um janela que traria iluminação de fora. Mas no misticismo judaico era encarada como sinônimo de uma gema ou pedra mística que guardaria em seu interior a luz divina. Tzohar é o símbolo da luz celeste que existiria no interior da própria Criação, e que seria fonte de poder e iluminação para todos que a possuíssem. No filme, os homens escavam e destroem o mundo em busca de Tzohar, pedras luminosas com as quais erguem suas cidades e tecnologia. Não se fala muito sobre elas, mas fica nítido que toda a terra é quase que uma grande mina de Tzohar, alvo da ganância dos filhos de Caim. Vemos Tubalcaim usar uma pedra destas como arma e é também através dela que Noé produz luz e calor na Arca. O brilho das pedras é idêntico no filme ao dos ''Guardiões'', seres espirituais decaídos e presos em corpos de rocha, e dos quais falarei logo mais.


O xamanismo e o misticismo judaico

Em algumas entrevistas, Darren Aronofsky se diz cético quanto à religião organizada mas interessado na ''verdadeira espiritualidade'' que ''uniria todas as religiões''. Afirma também ter conhecido cabalistas e xamãs capazes, segundo ele, de realizar milagres reais [2]. Isso explica até certo ponto o retrato que fez de Matusalém. Nas Sagradas Escrituras, ele é pai de Lamec, pai de Noé. O vínculo parental é mantido no filme, mas sua importância é bastante amplificada. Noé começa a ter visões da Queda de Adão e Eva e da mortandade do Dilúvio e resolve procurar seu avô para que ele o ajudasse a entender as mensagens vindas do Criador. Empreende então uma peregrinação, fugindo dos malévolos filhos de Caim e atravessando a terra dos ''Guardiões'', dos quais cai prisioneiro. No caminho, resgata e acaba adotando uma menina, Ila, cuja aldeia foi toda saqueada por homens em busca de Tzohar. A menina tem um ferimento grave que a torna em uma mulher estéril. Um anjo decaído, reconhecendo em Noé uma centelha do Adão original, o guia até a alta montanha onde habita seu avô. Matusalém conhece artes mágicas, possui uma sabedoria ancestral e é versado em poções de poder. Ele fica intrigado ao saber da visão do Dilúvio, já que seu pai, Enoque [que nas Sagradas Escrituras ''anda com Deus'' e é por Ele arrebatado vivo para os Céus], havia lhe contado que o mundo chegaria ao fim por meio do fogo. Faz então uma bebida que auxilia Noé a aprofundar sua percepção da visão recebida. Matusalém passa boa parte do filme, até sua morte no Dilúvio, procurando frutos silvestres, cuja existência e sabor já haviam se apagado de sua memória -- que por sua vez foi reavivada por seu neto, Sem, que conta ao avô que tais frutos eram aquilo de que mais gostava no mundo. A intervenção mais poderosa do grande xamã ocorre a pedidos da mulher de Noé, que teme que seus filhos morram sem descendência. A benção de Matusalém coloca fim à esterilidade de Ila.



As duas linhagens

Após o primeiro homicídio, o de Abel pelas mãos de seu irmão Caim, a humanidade se divide em duas linhagens. Os descendentes de Sete, terceiro filho de Adão e Eva, que foi gerado em substituição a Abel, mantém a fidelidade ao Criador e invocam Seu nome. A descendência do amaldiçoado Caim, por sua vez, vive de acordo com sua própria vontade. Este tema, comumente presente na literatura gnóstica, também está explicitado nas Sagradas Escrituras. A linhagem de Caim cria as primeiras cidades, torna-se especialista na guerra, na tecnologia e na mineração do Tzohar. Uma de suas principais características no filme é o consumo de carne, uma marca de sua profunda separação da linhagem de Sete. Em uma das cenas iniciais do filme, Lamec está pronto a iniciar Noé no segredo passado de pai para filho desde o Éden. Com o braço envolto na pele da serpente original do paraíso perdido, ele diz ao filho que ''O Criador fez o homem à Sua imagem e deu-lhe o cuidado do mundo''. Mas esta iniciação é interrompida quando Tubalcaim, rei dos homens e descendente de Caim, mata Lamec e toma para si a relíquia sagrada, ou seja, a pele da serpente. Para Tubalcaim, a expulsão do Éden o obriga a viver com o suor de seu rosto, e ''ai dele senão tomar aquilo que deseja''. Em uma das cenas iniciais, Noé vê Sem, seu filho, colhendo uma flor por causa da beleza da dita cuja. Ele o repreende, dizendo que cada coisa tinha seu lugar na ordem natural, e que eles só deveriam pegar aquilo que precisassem. A ênfase na harmonia desta ordem natural é tão forte em Noé que ele chega a matar caçadores de animais, tomando para si a tarefa de realizar Justiça contra os homens, que não viveriam segundo a realidade edênica primitiva. Tubalcaim tem uma perspectiva diferente sobre o papel da humanidade. Ele não hesita em domesticar, matar e comer animais, incluindo aí os raros exemplares salvaguardados na Arca. Em conversa com um dos filhos de Noé, Cam, o rei dos cainitas explica que o homem, imagem do Criador, está acima da natureza, e que todos os demais entes devem servi-lo: ''O mundo é para nosso usufruto; saboreio-o'', afirma, enquanto atira um pedaço de carne para Cam. Na primeira interpretação das visões que recebe, Noé conclui que a Justiça Divina se abaterá sobre os cainitas, que seriam dizimados pelo dilúvio. As águas separariam a linhagem impura da pura e assim o mundo poderia ser renovado pelos descendentes de Sete, retornando à bondade original. 


Os anjos caídos

Em um dos versículos mais misteriosos das Sagradas Escrituras, os ''Filhos de Deus'' são atraídos pela beleza das ''filhas dos homens'', procriando com elas e gerando uma raça de gigantes, os heróis conhecidos nos dias antigos. As Epístolas neotestamentárias confirmam a mencionada queda dos anjos, afirmando que eles foram acorrentados por causa deste pecado. Até o século IV, a maior parte dos Santos Padres corroborara esta interpretação, mas a partir de então uma visão alternativa nasceu, a de que os ''Filhos de Deus'' citados seriam descendentes de Caim que teriam se misturado com a linhagem de Sete. Na literatura gnóstica, particularmente no famoso ''Livro de Enoque'', os anjos luxuriosos que fornicaram com mulheres teriam ensinado aos homens as artes e ofícios da guerra e da civilização, além das artes mágicas e a feitiçaria. Como punição, teriam sido aprisionados sob montanhas, como Titãs no Tártaro. O filme mantém grande parte desta estrutura narrativa, inclusive dando aos seres decaídos o mesmo nome que recebem no Livro de Enoque e no misticismo judaico, mas com algumas modificações. Em nenhum momento se diz que os anjos caíram por luxúria, e sim por amor e piedade aos homens. Uma vez chegados à terra, eles teriam sido revestidos por corpos pesados, de pedra, sob a qual ainda se poderia ver, de longe, o fulgor de seu brilho original. Assim aprisionados ao mundo, teriam buscado auxiliar os cainitas com os segredos da civilização, apenas para se decepcionarem com a crescente maldade dos homens. Foram inclusive caçados por eles, e tiveram de se esconder, desesperançados, em terras estéreis e desoladas. Depois da desconfiança inicial, esses anjos decidem ajudar Noé, convencidos de que ele foi enviado pelo Criador, ao qual poderiam mais uma vez servir. Aronofsky entrelaça mais um tema na história dos anjos caídos. Na literatura gnóstica, as almas pessoais são partículas da Divina Sofia, que havia sido aprisionada ao grosseiro e corrompido mundo material, e que deveriam ser libertadas pelo conhecimento, retornando ao seu verdadeiro lar, a realidade supra-espiritual. Aronofsky  faz com que o brilho dos seres decaídos por trás de seu disforme corpo rochoso seja o mesmo da gema do Tzohar. Os ''Guardiões'' defendem a Arca do exército dos descendentes de Caim, que nela desejam entrar à força. Nesta batalha, o líder deles, Samyaza, é ferido na altura do coração. Mas não morre, antes é libertado do corpo de rocha e ascende verticalmente aos céus. Os demais "Guardiões'' percebem que o Criador permitiu que ele retornasse para 'casa' e intensificam sua luta. Um a um caem na batalha, deixando seus corpos e ascendendo de volta aos céus. 


[continua...]


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[1] O teólogo Brian Mattson descreve o filme como gnóstico [Simpatia pelo Diabo], já o cristão ortodoxo Peter Chattaway diz que a obra é tudo, menos gnóstica [Noé não é gnóstico], preferindo-a encara como uma forma de midrash judaica concordante, em sua maior parte, com a perspectiva cristã tradicional.

[2] Entrevista de Aronofsky e Mais uma entrevista de Aronofsky: diz ele que ''When we started working on Pi and putting these elements into the film, I used my Hassidic connections in Brooklyn to get to some of the leading Kabbalah scholars in the world. There are basically three heavy-duty rabbis out there who are these big, big mystics. They're like these Jewish shamans that go around the world and perform little miracles. They shared a lot of their secrets with me, and a lot of their stories. There's some stuff that would blow your mind and we brought that to Pi. Everything in the film is completely, 100% true.''













sábado, 19 de abril de 2014

Os desabrigados diante da Catedral do Rio; ou: a caridade e a politicagem

Não tive nenhuma educação religiosa quando criança dado que  meus pais sempre se mostraram indiferentes quanto à vida espiritual. Ainda assim sempre fui vividamente interessado no tema. Minha fé juvenil era alimentada por filmes cristãos que costumavam passar no fim do ano e na Semana Santa e por leituras do Evangelho, que eu realizava desde infante. A história de Cristo me fascinava e Sua Paixão me despertava profunda reverência. Por isso também um dos meus 'sonhos de criança', nunca realizados, era ver a encenação da Paixão e Ressurreição de Cristo que começava a ser feita nos Arcos da Lapa. Era um espetáculo de muito maior visibilidade que hoje, em uma cidade e um país bem mais católico-romanos e religiosos. A encenação deste ano, que sequer seria realizada na Lapa mas na Catedral Metropolitana, foi cancelada pela Arquidiocese. A causa, porém, não é o desinteresse crescente dos cariocas e sim os rumos que tomaram a desocupação da chamada ''favela da Telerj''.

O que me chamou a atenção não foi o protesto dos desabrigados em frente à Prefeitura nem tampouco o uso de força policial para retirá-los de lá ou as promessas vazias de governantes fingindo se preocupar com os sem-teto. E sim que alguns, que não são necessitados, resolveram levá-los para a Catedral do Rio em plena sexta feira santa; logo se espalhou nas redes sociais um certo repúdio por parte de esquerdistas com a decisão da Arquidiocese de não deixá-los ocupar o local. Um colega meu, professor, chegou a dizer que ''a Igreja do Rio o envergonhava'' e que ''se uma igreja não servia para ajudar as pessoas então não sabia para o que servia'', típica visão secular que não imagina outra função para a religião se não aquela que a torna em mero meio de filantropia burguesa. Retruquei que ele podia não saber, mas os católico-romanos sabiam: trata-se de um Templo, um local de culto ao sagrado, não um abrigo público, e que a Igreja se dispôs a ajudar de outras formas, intermediando uma solução com a Prefeitura e doando alimentos. O colega não aceitou minha resposta. Para ele é inconcebível que a Catedral Metropolitana não seja ocupada por tempo indeterminado, só resolvendo se calar quando perguntei, educadamente, quantos desabrigados ele estava alojando na sala de sua casa.

Mais uma vez os necessitados ficam em um fogo cruzado, explorados por uma associação entre poder econômico e político, e manipulados por gente que demonstra pouca preocupação com sua situação real. Chegaram a entrar em acordo com a Arquidiocese,  que se ofereceu como mediadora entre eles e as autoridades governamentais, mas, depois de ''ouvirem sua assessoria'', voltaram atrás. Esta mesma ''assessoria'' os levou em um caminhão para a Catedral e, temerosa de perder o controle sobre eles, os proibiu de dar entrevistas. 

Evidente que se trata de dar visibilidade ao protesto contra o prefeito e o governador em plena Semana Santa, acrescentando uma grande dose de crítica rasteira à Igreja, acusando-a implicitamente de não dividir seus bens com os pobres, e denunciando a suposta proximidade entre Dom Orani Tempesta, Cardeal do Rio, com Eduardo Paes. Nada além de disputa política-partidária de baixo nível sem nenhum compromisso humanitário real. Maior dignidade teriam se abrissem as sedes dos partidos políticos existentes no centro do Rio para ajudarem provisoriamente esta boa gente e que colocassem o foco na resolução de seu verdadeiro problema: a recusa do Estado em oferecer-lhes não um abrigo -- algo que os necessitados já disseram não querer -- e sim uma moradia ou, no mínimo, aluguel social.

 Mas a magna virtude da caridade, ensinada e praticada por instituições como a Igreja Católica, nunca foi o forte da esquerda marxista, que sempre defendeu que aqueles que desse modo ajudassem os pobres acabavam por preservar e perpetuar o sistema sócio-econômico capitalista, e, portanto, a injustiça. Não é surpresa que odeiem tanto os templos dos católico-romanos, que cismam, ó horror, em dar maior valor às pessoas do que à mera manobra politiqueira.




quinta-feira, 10 de abril de 2014

Luiz Gonzaga de Carvalho e a salvação na ''democracia liberal-conservadora''

Hoje deparei com a seguinte mensagem do professor Luiz Gonzaga de Carvalho no Facebook: 



''SOBRE O TRABALHO COM RELIGIÕES COMPARADAS:

Pouquíssimos conflitos existem entre católicos e judeus hoje em dia (nem sempre foi assim), podemos dizer quase o mesmo no que diz respeito às relações entre católicos e protestantes, porém não se passa o mesmo nas relações com ortodoxos e com mussulmanos, grupos cuja presença é uma REALIDADE.

Vejam, ou o católico defende a democracia conservadora-liberal judaico-cristã, e nesse caso é imprescindível que encontremos soluções filosóficas que possam se refletir posteriormente como soluções sociais para um real entendimento mútuo e bom convívio com mussulmanos e ortodoxos (como recomenda o Concílio), ou renegamos totalmente o "judaico-cristã" da sociedade e nem pensamos mais em religião alguma, ou então viramos todos evolianos-duginistas-católicos-tradicionalistas e assim apelamos ao extermínio ou banimento em massa do "infiel", destruindo assim a própria base da moral, do estado de direito e vamos todos para o inferno. Não vejo outra alternativa.

FATO CONCRETO: Esses grupos religiosos não estão mais restritos às suas fronteiras originais, como estavam até o século XIX (coisa que às vezes parece difícil para a pessoa religiosa e devota entender e aceitar).

Esta postagem se dirige àqueles que querem resolver dilemas pessoais sobre a existência das demais religiões, e a pessoas que tenham um interesse real de encontrar soluções doutrinais, aplicáveis socialmente, para o problema do bom convívio entre membros de várias religiões com valores morais em comum. Fora isso, concordo que cada um deve defender o seu lado apologeticamente, mas não aqui.

Tentei durante a vida toda seguir o conselho do meu pai, Olavo de Carvalho, de fazer dos meus interesses e dilemas intelectuais pessoais mais profundos, o foco principal dos meus estudos, sugiro a todos que façam o mesmo.''


A mensagem parece com uma defesa dos pronunciamentos do Olavo de Carvalho em suas novas polêmicas. O comunismo já não anda mais tão em alta na retórica do defensor do conservadorismo liberal estadunidense, e o alvo agora é tudo o que lembre ''eurasianismo''.  No fim das contas, porém, é apenas mais do mesmo, um endeusamento da experiência iluminista e liberal.

1) Não existe ''democracia liberal conservadora judaico-cristã''. Esta mistura de epítetos possui por referência a ordem política liberal, que não depende em nada, para sua continuidade, do conservadorismo, nem muito menos do judaísmo ou do cristianismo, como se pode ver hoje na maior parte do Ocidente, e como admite Luiz Gonzaga quando diz que é possível deixar de lado o ''judaico-cristão'' da definição. O convívio de populações secularizadas em países de passado católico-romano e protestante se dá, historicamente, sob a égide da ética procedimental, fundamentada em uma internalização da ideia de bem, que passa a ser vista como componente das crenças e fins pessoais, enquanto na esfera pública deve vigorar as formas institucionais e políticas protetoras das garantias individuais sob um regime de credo liberal. Este arranjo sofre resistência de ortodoxos e muçulmanos [e também dos católicos tradicionalistas que serão citados por Carvalho ao lado dos eurasianos] na medida mesma em que estes fiéis não passaram ainda por um processo intenso de secularização e de revolução iluminista ou a ele resistem.

2) Não existe um movimento unificado de ''evolianos-duginistas-católicos-tradicionalistas'' que forme uma frente única contra o liberalismo nem que possa ser unificado a partir da ideia de ''extermínio do outro''. Esta parece ser uma tentativa de Luiz Gonzaga de unir elementos díspares, que são conjuntos formados a partir de critérios distintos, com amplitudes diversas, talvez em uma tentativa de inverter a retórica de Dugin, colocando no mesmo saco tudo que se posicionaria contra a ''sociedade aberta'' [seja ela vagamente religiosa, como no caso da permanência maior ou menor de elementos da moral cristã, ou francamente materialista]. Fazendo isso, Luiz Gonzaga parece aceitar a proposta ideológica dicotômica que o pensador russo colocou na ordem do dia com o Nacional-Bolchevismo e a Quarta Teoria Política. Embora não dê a essa dicotomia a dimensão geopolítica de Dugin, é a aplicação do mesmo tipo de raciocínio à esfera social a partir de uma ótica de ''convivência entre religiões diferentes''. Todos os religiosos parecem ser divididos assim entre aqueles que são defensores e aceitam os parâmetros da política liberal -- aquela que teria permitido a ''católicos'', ''protestantes'' e ''judeus'' conviverem sem grandes problemas -- e os demais que, por se oporem a ela, são ''fanáticos'' desejosos por perseguir e ''matar infiéis''. 

3) Estes grupos religiosos nunca estiveram restritos a fronteiras inteiramente excludentes, de modo que a coexistência entre eles não é uma novidade na História. O Império Russo possuía uma grande população judaica e muçulmana. As regiões do Império Omíada e depois Abássida tiveram maioria cristã durante séculos. A Espanha foi uma grande confluência de povos de diferentes orientações religiosas. A Índia viveu milênios com grande diversidade religiosa, e por aí vai.  Cada uma destas organizações e formações sociais encontrou as próprias soluções sem necessidade de ''matar'' ou ''banir infiéis'' de maneira sistemática. Luiz Gonzaga não torna explícito o porque pensa que estas alternativas, fundamentadas nas doutrinas destas religiões, não é mais válida.

4) A argumentação do Luiz Gonzaga pode ser usada para atacar o liberalismo a partir de uma ótica multiculturalista e pós-moderna. Já que há diversidade no mundo moderno, por que não instaurar uma política pública de reconhecimento das diferentes identidades colocando, de certo modo, fim ao credo liberal no terreno público (que busca empurrar as diferenças apenas para o campo da defesa das garantias individuais na esfera da vida privada)? A solução multiculturalista de uma grande sociedade pós-moderna-católica-ortodoxa-judaica-muçulmana-newager-satanista-agnóstica-ateia-liberal-comunista-feminista-e-tudo-o-mais-que-couber-no-rótulo-e-que-a-imaginação-humana-puder-usar-como-identidade-a-ser-reconhecida-e-promovida-pelo-poder-público estaria na agenda, já que a ''diversidade'' no mundo moderno é uma REALIDADE, parafraseando a mensagem do professor?  Se a diversidade não seria necessariamente um critério para a formação do ''novo consenso'' porque defender uma sociedade ''judaico-católica-protestante'' [partindo do princípio de que isso tenha existido, do que discordo]? Por que a democracia liberal deveria ser defendida como princípio governante no terreno público e não o multiculturalismo? E o que dizer de outras alternativas, como os diversos comunitarismos, o etno-diferencialismo etc.? Por que sacrificar todas estas possibilidades só pelo desejo de ver salvação na ética procedimental liberal, sem a qual ''iremos todos para o inferno''?

Luiz Gonzaga de Carvalho parece ter defendido o velho mito da ordem liberal como dirimidora de conflitos entre as religiões para vender seu peixe contra os adversários da hora.



domingo, 6 de abril de 2014

''Não permitirás viver uma feiticeira''

The sort of man who injures others by magic knots, or enchantments, or incantations, or any of the like practices, if he be a prophet or diviner, let him die.

Plato, Laws 9.933d.

 
Exemplo de propaganda anti-religiosa em fóruns de debate
Uma das críticas comuns feitas por muitos ateus e agnósticos militantes quando se reúnem em fóruns e redes sociais que versam sobre apologética religiosa é sobre a Inquisição. As alegações costumam ser acompanhadas das mais esdrúxulas superstições históricas, como a ideia de que milhões de mulheres foram mortas pela sanha misógina e crédula de sacerdotes sádicos. Não é raro que se compare a Inquisição ou a prática de queimar bruxas ao Holocausto ou outro genocídio contemporâneo [1]. A imagem acima, por exemplo, faz uma confusão entre coisas diferentes quando associada com a pergunta. A fogueira era um forma de aplicar a pena de morte comumente usada nas regiões abrangidas pelo Império Romano, principalmente em justiçamentos populares, e seu uso cresceu quando a cristianização pôs fim à crucificação. Era utilizada não só pelas populações camponesas quanto pelas autoridades seculares. Já o versículo citado se dava em outro contexto de aplicação da pena capital: os israelitas apedrejavam os condenados à morte [2].

O cerne de toda esta questão é, por um lado, a pena de morte; e, por outro, o de saber que crimes seriam repugnantes o suficiente para aplicá-la, e também sobre os meios de levá-la adiante. Eu penso que existem crimes que tornam aquele que os cometeu passível de morte. Já que a sanção deve acompanhar a gravidade do delito não há porque afirmar que a pena de morte seja incorreta em princípio [3]. Para quem parte desta noção, somente os mais bárbaros crimes justificariam tamanha sanção -- geralmente aqueles que colocam a vida de indivíduos ou da comunidade em risco. No Brasil, por exemplo, há pena de morte quando do estado de guerra: o desertor é passível de fuzilamento. Outros países estendem o leque de atos típicos cuja sanção é a pena capital, aplicando-a em tempos de paz a crimes de lesa-pátria, a homicídios, estupros [uma discussão atual na Índia] etc. 

A discussão sobre que crimes seriam passíveis dessa sanção é algo, definitivamente, em aberto. E aqui entra um ponto chave dessa conversa, inclusive para aqueles que concordam com a aplicabilidade da pena capital, o de saber se a prática da feitiçaria poderia ser legitimamente considerada passível dela. 

Na maior parte da História foi comum a punição de morte para feiticeiras. O primeiro ''código'' [embora ele seja chamado assim de forma equivocada] conhecido, o de Hamurábi, já tratava assim os ''bruxos''. O justiçamento camponês para ''feiticeiros'' -- se entendidos como pessoas que abusavam de artes mágicas com o fito de prejudicar terceiros e a comunidade -- quase sempre foi impiedoso [4]. O próprio Platão, como exemplificado pela passagem d'As Leis, também pensava, seguindo um entendimento também comum em seu tempo, que crimes graves podiam ser cometidos contra a comunidade através de encantamentos [5].

Na Cristandade Ocidental -- a ''Europa cristã'' -- não era comum que as autoridades mandassem ''feiticeiras'' para a morte. Carlos Magno -- se não me engano -- chegou a proibir sentenças para os praticantes de mágica, por entender que os bons cristãos não estavam tão sujeitos assim a ela e por considerar a maior parte das acusações fruto de superstição popular. Diferente do que muitos pensam, foi com o alvorecer da Modernidade, isto é, entre os séculos XIII e XV, que se tornou generalizada a condenação destes atos, dando início à grande ''caça às bruxas'' da era moderna, particularmente feroz nos séculos XVI e XVII tanto em países católico-romanos quanto em protestantes [6].

A feitiçaria, punida com rigor durante a modernidade, só deixou de ser crime no mundo contemporâneo quando as autoridades europeias, e mais tarde a própria população ocidental, foi gradualmente deixando de acreditar seriamente na magia e no ''sobrenatural'' [7]. Estas seriam ''crenças subjetivas'' que não mereceriam maiores considerações do poder público. Óbvio que se a sociedade acredita ou sabe que a magia funciona, e se acredita ou sabe que há gente que a usa com fins malévolos, abre-se com coerência a questão de que punição seria adequada a atos desta ordem. Há aí a aplicação dum raciocínio preciso: se facas existem e podem ser usadas para cortar alguém, e se há gente que efetivamente assim as utiliza, então podem ser punidos pela lei. 

A argumentação contra a punição a feitiçaria, se feita com seriedade, deveria se concentrar antes na possível fragilidade dos métodos investigativos cujo fim seria a apuração da eficiência dos atos mágicos. Mas tudo isso é muito perigoso para a ideia do Estado laico, embora, por debaixo das aparências, ele acabe aceitando em alguns casos argumentação de cunho sobrenatural até em julgamentos de crimes contra a vida [8]. É mais confortável taxar de simples superstição a ideia de que atos mágicos podem funcionar, seja em que âmbito for, e falsear de modo pouco honesto os dados históricos sobre as sociedades -- maioria esmagadoras no passado -- que pensavam saber o contrário.


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[1] A verdade é que o ano do Terror da Revolução Francesa matou mais gente do que séculos de Inquisição católica-romana, e com um agravante. Enquanto esta última aplicava um processo minimamente legal e que dava ao acusado boas chances de absolvição e maiores ainda de sanções bem mais brandas que a fogueira, o tribunal jacobino não passava de um açougue voltado contra adversários de toda ordem, especialmente políticos. Porque o tribunal inquisitorial deveria ser, neste contexto, considerado um ''genocídio'' enquanto o mundo ocidental comemora os aniversários da Revolução Francesa é uma das consequências das crenças entranhadas na mentalidade do homem de nosso tempo.

[2] Desnecessário dizer que nenhuma das duas legislações é obrigatória para um cristão. O cristianismo não tem uma shari'a, um sistema civil e penal revelado e aplicado à generalidade dos homens ou a um povo especifico, como ocorre no caso do Islã ou dos hebreus. Ao longo do tempo, a Igreja adaptou a legislação existente entre diversos povos, principalmente o Direito Romano e a Lei Mosaica, aos princípios cristãos com o fito de organizar as sociedades, sem no entanto pretender que fossem esquemas absolutos caídos do céu.

[3] É possível a existência de um caminhão de debates sobre o tema da pena de morte, mas a alegação de que ela só vale para sociedades incivilizadas é, quando muito, uma afirmação retórica, mas desprovida de uma análise objetiva dos fatos e dos argumentos. Pode-se discordar da necessidade da pena de morte, de sua viabilidade etc., mas não da existência de bons argumentos a seu favor.

[4] A criminalização da feitiçaria não é uma invenção de algumas sociedades, mas antes a ordenação em marcos civilizados da prática generalizada de puni-la existente entre as populações dos quatro cantos do globo.

[5] Platão também se mostra favorável na obra à punição daqueles que negassem e ensinassem publicamente contra a existência da Inteligência Divina. Segundo Platão, um Dawkins atual teria de ser visitado pelo ''Concílio Noturno'', conselho de guardiões contra o perigo daqueles que não conseguiam compreender a realidade do Logos. Os tribunais inquisitoriais também só puniam aqueles que publicamente ensinassem a heresia -- deixando de lado os que apenas a abraçavam em âmbito privado ou afirmassem que assim faziam por não entender a doutrina oficial da Igreja. Ou seja, não era por 'credulidade' que a Igreja católica-romana punia o ensino da heresia, mas porque suas autoridades estudavam e concordavam com argumentos com certo background filosófico e platônico sobre o conhecimento, a ética e a política.

[6] Diferente também do que muitos pensam, o nascimento da Modernidade esteve associado com a disseminação tremenda de práticas ocultistas e mágicas, inclusive entre a elite intelectual e política.

[7] Não que o mundo do século XVIII tenha deixado de possuir suas crenças. Voltaire, que usou o tema da Inquisição e da ''caça às bruxas'' como meio de atacar a Igreja e o cristianismo acreditava piamente, por outro lado, na existência de vampiros. Para não falar das mitologias científicas de seu tempo.

[8] Exemplo recente e tipicamente brasileiro: Psicografias aceitas como provas em tribunal



sábado, 5 de abril de 2014

Humanas intenções e o fuso das Moiras; ou: a encruzilhada na vida das crias de Getúlio

A ditadura getulista do Estado Novo possuía dois grandes pilares. O primeiro deles era a burocracia civil construída por meios meritocráticos e que era parte do projeto de Vargas de, por um lado, proporcionar meios de fortalecimento e centralização do Estado, revertendo seu caráter federativo e conferindo ao governo uma base administrativa técnica e competente, capaz de planejar e aplicar os projetos necessários ao país; por outro, de promover um golpe fatal no clientelismo em que se baseava grande parte da força das oligarquias regionais no aparato estatal [1]. O segundo pilar, ainda mais importante, eram as Forças Armadas, que possuíam inclusive um projeto próprio e que exigia, para ser cumprido, um Estado também forte e autônomo em relação às pressões centrífugas das elites políticas estaduais. Mas a partir do início da década de 1940 o gênio político de Vargas, vislumbrando já a possibilidade de uma futura redemocratização, começou a apostar em outro apoio, o das massas populares urbanas. O presidente possuía uma formação positivista, típica da geração gaúcha da qual fazia parte, e para a qual o operariado deveria ser integrado à política nacional pelas mãos de um líder paternal e protetor. Nas novas condições da política, economia e sociedade brasileiras, Vargas construiu um movimento populista, o trabalhismo, que teve importância capital no país pelos próximos cinquenta anos.

Uma consequência indesejada, no entanto, foi perder o apoio das Forças Armadas. Os antigos aliados de Vargas, que desenvolviam uma mentalidade cada vez mais anticomunista, desde o início desconfiaram de todo aquela relação com o povão vinda de um político nada democrático, nada liberal, acostumado a uma política de gabinetes e não de massas, e que chegou a se assustar quando, no fim da Revolução de 1930, chegou ao Rio e descobriu que havia uma multidão esperando que desembarcasse do trem. Operários e lumpemproletariado nas ruas gritando ''Queremos Vargas'' em 1945? Para Góes Monteiro só podia ser sinal de golpe no ar. O resultado foi a intervenção militar que retirou Getúlio do Palácio do Catete muito antes do que ele esperava, e levou o ''pai dos pobres'' para o seu ''exílio em São Borja''. 

Mas não foi a única consequência. Duas crias da revolução política ligada ao nome de Vargas passaram a se digladiar a partir dali. De um lado, o populismo que se tornou base do PTB; do outro, o papel moderador que as Forças Armadas, constituídas como instituição hierárquica e política durante o Estado Novo, possuíam no sistema político pátrio. Claro que a relação possuía idas e vindas, não era de ódio constante e inabalável. Foi assim que Getúlio só pôde se candidatar a presidente em 1950 com anuência do amigo Góes Monteiro, o mesmo que o havia retirado do poder poucos anos antes. Foi assim também que Castelo Branco, que havia apoiado o general Lott quando este interviu a favor da posse de Juscelino Kubitschek, rompeu com o companheiro d'armas quando o dito cujo recebeu um prêmio de organizações sindicais; não foi surpresa que mais tarde Castelo participasse na linha de frente da intervenção militar que colocou fim ao governo de João Goulart nos idos de março. 

Eu havia dito alhures que as intervenções militares na política dependiam, para ser bem sucedidas, de um certo consenso entre os generais sobre que lado apoiar. Esse consenso era cada vez mais difícil na medida em que grupos diferentes de oficiais se dividiam em suas relações com o populismo. Os ascendentes de Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, eram generais que participaram dos governos trabalhistas, ou como ministros de Vargas ou como partícipes do PTB. E em 1961, um golpe contra a posse de Jango foi abortado porque o comandante do III Exército resolveu apoiar a ''Cadeia da Legalidade'' de Leonel Brizola, o mais combativo político getulista de então. O consenso que faltou naquele momento foi criado em 1964 justamente por causa da investida nos sindicatos entre soldados e sargentos, que ameaçava fazer desabar, pelo menos assim pensavam os generais, a cadeia de comando construída pela Doutrina Góes e que tão essencial era ao papel das FFAA. Militares nacionalistas em conflito com o mais nacionalista dos movimentos políticos brasileiros, divididos em torno da herança de Getúlio e sobre um grupo político cuja origem possui traços que se explicam por causa do peso dos militares na elite gaúcha e na ocupação do Rio Grande. 

Em meio a esse cenário, muitas escolhas pessoais que mais tarde se tornaram dramas. Lembrei hoje de Costa e Silva. Difícil afastar a imagem de um brucutu golpista que mergulhou o país nas trevas com o AI 5, um sujeito que, segundo muitos, instaurou a linha dura no poder afastando os ''castelistas'', corrente de oficiais que seria consciente da necessidade de devolver o poder aos civis. Há um quê de verdade nestas imagens, misturadas com muito estereótipo. Costa e Silva era um general de pulso, que, diferente de Castelo, se distanciava da figura de acadêmico e possuía um perfil de ação, um verdadeiro comandante de tropas que todos gostariam de ter ao lado durante uma guerra ou, por que não dizer?, um período revolucionário. Mas não era um politico e foi engolido pelas conjunturas nas quais estava imerso. Não parecia querer fechar o Congresso, mas tampouco teve resposta à provocação irresponsável do parlamentar Márcio Moreira Alves, que, em discurso explosivo em setembro de 1968, pediu aos brasileiros que boicotassem os desfiles militares do 7 de setembro e às donzelas do país que evitassem se envolver com os homens de farda, um discurso que forneceu aos que desejavam medidas extremas para combater os protestos e ataques de esquerda que tomaram o país em 1968 a oportunidade de que precisavam. O médico que cuidava de Costa e Silva o avisara que sua pressão estava alta quando da votação no Congresso que, apesar de toda a manipulação do governo, negou a suspensão da imunidade parlamentar do deputado abusado. Costa e Silva respondeu, ''hoje eu preciso dela alta mesmo!''

É possível que não desejasse também o AI 5. Na reunião de líderes que convocou para decidir o que fazer, Pedro Aleixo, seu vice-presidente, foi o único a se posicionar contra a medida. O famoso jurista Gama e Filho, na época Ministro da Justiça -- e que votou a favor do Ato fazendo um sinal com o polegar invertido, como se falasse a um César no Coliseu--, perguntou-lhe ironicamente, ''Mas o senhor desconfia das mãos honradas do presidente Costa e Silva, aqui presente?'' O vice-presidente respondeu, ''Não, ministro, das mãos honradas do presidente eu não desconfio, eu desconfio é do guarda da esquina.'' [2]

Todo mundo sabe que Costa e Silva decidiu pelo Ato Institucional. Mas poucos sabem que desde março do ano seguinte vinha tentando revogá-lo, bancando inclusive um ante-projeto que abolia a má afamada arbitrariedade, cuja elaboração se encontrava nas mãos do próprio Pedro Aleixo. Mas sofria resistência dos militares que foram a base de apoio que o colocaram no cargo. Ainda assim fez a escolha ousada de abrir o país. Sobre aqueles dias, conta o jornalista Carlos Chagas:

''Porque os militares, amicíssimos dele -- Rademaker, Lyra Tavares, Márcio Mello, Portella, Sizeno --, todos estavam contra o que ele estava fazendo. Diziam: ''Costa, você não pode abrir, não pode, é muito cedo. Não pode, não pode.'' [...] ele já tinha tomado a decisão de não passar à história como ditador. ''Eu vou abri de qualquer maneira. Só eu tenho condições de abrir. Só eu mando nesse pessoal.'' E mandava mesmo. Então, dentro do inconsciente dele, aquele conflito foi se agravando, até que o inconsciente escolheu a saída. Que foi ele ficar fora de tudo. Ele teve o primeiro processo de ''insulto'', como eles chamam o derrame, no dia 27 de agosto de 1969. Foi lá no Palácio do Planalto. Depois o segundo, à noite. Depois no dia seguinte. O médico percebeu. Era um capitão do Exército, muito bom médico. Percebeu e lhe disse que era uma coisa grave, que teria que ficar deitado. ''Vamos chamar os neurologistas do Rio de Janeiro imediatamente. O senhor tem de ficar de repouso.'' Isso foi na quarta ou quinta-feira. Ele queria ir para o Rio na sexta para assinar a legislação da abertura. A mulher, dona Yolanda, estava lá. O capitão-médico vai ao general Portella, de madrugada, e lhe diz que o negócio é muito grave. É derrame. Aconselha-o a chamar imediatamente os neurologistas e a dopar o presidente, porque, ele estando na horizontal e dopado era possível que os ''insultos'' viessem mais fracos. ''Se ele começar a se mexer muito é fatal; o derrame será muito grave''. Aí o Portella disse: ''É, mas o presidente quer ir para o Rio amanhã de qualquer maneira''. [...]Porque no Rio estava o foco de resistência à abertura. Então o presidente vai para o Rio, numa viagem dramática de avião. Vai com um cachecol enrolado no pescoço, para fingir que era gripe, que estava afônico. Na verdade, ele já estava sem poder falar, já estava semi-paralisado de um dos lados. Desce a escada do avião, chega ao Palácio das Laranjeiras. Aí é o clímax. Chega lá ao meio dia, mais ou menos, vai para os seus aposentos, chama o ajudante-de-ordens, o Ariel, acho que hoje está na reserva da Aeronáutica. Chama-o e pede papel. Pega a caneta e começa a tentar a assinar o nome. Só que o comando do cérebro não chega mais na ponta da mão. Então não sai mais Arthur da Costa e Silva. Sai A. Silva, Co e Silva, e não sei mais o quê. Depois de algumas tentativas, a caneta cai da mão e ele começa a chorar copiosamente. Entra em estado de coma daí a meia hora. Processo total. Meses depois, ele tinha se recuperado em parte. Quer dizer, nem a fala nem o lado esquerdo, mas entendia tudo. O drama era o seguinte: o ''aparelho receptor'' dele recebia mais ou menos bem tudo o que estava em volta. Ele escutava rádio bem. Mas o ''aparelho transmissor'' estava em curto-circuito. Quando ele queria falar dava um nó. Deve ser horrível isso. Mas esse Ariel, esse ajudante-de-ordens, quando ele, Costa e Silva, estava deitado, num belo dia, já o Médici no governo e tudo, esse Ariel pergunta: ''Presidente, o senhor se lembra daquele dia em que o senhor adoeceu?'' Ele faz assim com a cabeça [Concorda]. ''O que o senhor queria?'' Era sexta-feira: ''O senhor estava querendo fazer uma apostazinha nos cavalos?'' Ele jogava nos cavalos todo fim de semana. Ele faz assim [Nega]. O rapaz já sabia o que perguntar. Então pergunta: ''O senhor queria assinar a Constituição e abrir o Congresso?'' Ele concorda e começa a chorar.'' [3]

Pedro Aleixo não assumiu a presidência. Uma junta militar chegou ao poder, mexeu na emenda do anterior vice-presidente e um sucessor foi escolhido a partir de uma consulta a oficiais.


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[1] Foi a instituição de um ''universalismo de procedimentos'' na burocracia, a partir dali formada por concursos públicos. Foi dessa forma que o  avô materno daquele que vos escreve, que trabalhou durante a vida em plantações de cana e depois como operário de uma fábrica de cartuchos do Exército, em Realengo, adentrou o serviço público federal como funcionário da Casa da Moeda. A reconstrução do Estado realizada por Getúlio vai possibilitar o planejamento da economia e do governo que foram marcas dos anos JK e do período militar. Por outro lado, deve-se dizer que teve por efeito não previsto não o fim do clientelismo mas sua nacionalização.

[2] Um diálogo interessante entre dois civis que possuíam trajetórias políticas bem distintas. Pedro Aleixo apoiou a Revolução de 1930, havia sido o nome a substituir Vargas durante o Estado Novo, mas se voltou contra o trabalhismo e se tornou ferrenho adepto da UDN na década de 1950. Gama e Filho, pelo contrário, esteve do lado da oligarquia paulista quando da Revolta de 1932 mas depois seguiu carreira acadêmica na USP.

[3] Entrevista concedida a Ronaldo Costa Couto em 30 de abril de 1995 e publicada no livro ''Memória viva do Regime militar''.