De vez em quando recebo, em minhas participações em uma ou outra rede social, algum pedido de esclarecimento de minha posição, como ortodoxo, sobre algum tema socialmente polêmico. Embora os temas trazidos não se coloquem sempre no mesmo campo, surgem quase sempre associados à noção de pecado, na forma de questões tais como ''se beber é pecado'', ''se passar batom é pecado'', ''se falar palavrão é pecado'', e, assunto deste post, se ''fumar maconha [ou usar drogas] é pecado''.
Eu tenho muita dificuldade de
raciocinar com uma tábua de mandamentos debaixo do braço, seja por causa do meu
temperamento, seja porque aprendi que, embora listas de regras possam ter alguma utilidade em certo ponto do contato do homem com a vida religiosa, elas acabam se tornando insuficientes no fim das contas. O apego a listas de mandamentos e normas traz em si o grande perigo do moralismo, um desvio muito comum no cristianismo ocidental, principalmente a partir do pietismo protestante, e que é quase que um antítese da verdadeira vida moral [1].
O moralismo é a busca pela adequação da vida religiosa a um sistema de normas tido por ético, e de natureza comportamental, a ser aplicado às mais diversas situações da vida individual e social, de modo que aqueles que o seguem possam avaliar o que seria uma vida virtuosa tanto para si mesmos quanto para os demais. Um dos grandes problema com a abordagem moralista é que ela mascara a vida interior das pessoas a partir de regras convencionais e de comportamento que são, por natureza, socialmente mediadas . A consequência deste tipo de mentalidade e prática não é a santidade mas a proliferação de atitudes hipócritas ligadas ao medo e à necessidade de auto-justificação [2]. O propósito da Ortodoxia não é, o que pode ser uma surpresa para muitos mergulhados na perspectiva do cristianismo ocidental, levar a este tipo de 'vida virtuosa', e sim à participação na natureza divina, uma transformação de ordem ontológica [3].
É neste sentido que se deve entender a noção de pecado. Ela não é a falha frente a uma regra, mas sim a ''perda do alvo'', é agir a partir de uma ruptura com Deus [4]. E se o homem quiser se manter não apenas unido a Deus como vivenciar um grau ainda maior de união a ponto de se
tornar semelhante a Ele, deve ter atenção para os seguintes pontos:
a)
retirar o olho do coração [5] da contemplação de Deus leva à perda do
discernimento e ao apego às coisas do mundo;
b) um dos mais importantes
elementos da ascese ortodoxa para que o olho da alma esteja sempre desperto é a
prática da vigilância e da oração, ou seja, o afastamento da mente de todo
pensamento deletério capaz de perturbar o diálogo permanente com Deus [6];
c) o desenvolvimento de más paixões, o desvio dos poderes da alma e do corpo
para propósitos hedonistas, desloca a vida do ser humano do amor a Deus para o
desejo daquilo que é contingente.
Pois bem, em que medida e situação o uso da
maconha e outras drogas é condizente com este telos de participação na vida divina e com a ascese a ele necessária? Ainda que imaginemos uma sociedade em que
a droga social não seja o álcool mas algum subproduto, por exemplo, da cannabis sativa, ou
seja, em que o uso da maconha seja socialmente aceitável, o ato de acender um
baseado seria possível sem comprometer os pontos que elenquei? A resposta para
mim é simples, estas substâncias são concentradas a um ponto de turbarem a
consciência da pessoa que as usa e de evitarem que ela mantenha-se orante e
vigilante. Se é assim, por que alguém a usaria a não ser por um apego, por uma
paixão, a sensações transitórias ou por alterações psicológicas geradoras de
dependência e que são expressões de uma desordem psicossomática?
Bom, nem todos usam 'drogas' por simples paixão e sensualismo. Fosse assim, os saddhus da Índia só visariam mesmo alimentar paixões, quando estamos ali diante de um caso de ascese e prática espiritualmente motivada. Desse modo, há na nossa sociedade pessoas que se envolvem com as chamadas 'plantas de poder' e drogas
sintéticas na busca por uma experiência real em uma sociedade vazia de
Tradição. Há outras, por outro lado, que nascem, são criadas ou pertencem
justamente a religiosidades que usam substâncias psicoativas como suporte de práticas espirituais --
muito comun, por exemplo, na Índia, na Ásia, entre indígenas americanos e
outras espiritualidades de raiz xamânica. A intenção por trás destes causos é,
mais das vezes, muito diferente do uso recreativo/psicopatológico de drogas,
sejam elas lícitas ou ilícitas [e nesta minha resposta estou deixando de lado a questão jurídica]. É possível que estas drogas, usadas nestes
contextos, possam proporcionar ao sujeito um vislumbre de que a realidade é
muito mais do que aparenta, possa provocar insights, descobertas psíquicas e de
estratos da personalidade e do mundo até então desconhecidos. Eu mesmo, que já
usei uma ou outra 'planta de poder', afirmo com segurança que elas podem ser
usadas como apoio ou desveladoras da experiência mística. Mas, com esta mesma
segurança, posso ir além e dizer também:
1) tais apoios são incapazes de, per
si, provocarem qualquer realização espiritual ou união com o sagrado, que dirá
a deificação;
2) sem ajuda de alguém experimentado e qualificado, elas
representam um absurdo perigo psíquico e espiritual para aqueles que dela fazem
uso, jogando-os em contato com dimensões e planos dos quais não se tem nem
sombra de domínio;
3) mesmo nas religiosidades xamânicas, é comum que se as
tenha por etapas do aprendizado espiritual, devendo ser deixadas de lado assim
que se consiga caminhar sem elas.
Para simplificar, citemos Castañeda, um nome muito famoso nestas bandas.
Independente da veracidade dos causos e personagens de suas obras, aqueles que acabaram por se envolver com o uso destas substâncias motivados
por leituras semelhantes devem ir além dos primeiros livros. Assim notarão que
naquele universo xamânico por ele descrito, a droga foi usada só no começo do contato entre o
autor e seu ''guru'' indígena, Don Juan. E o motivo do uso é deixado claro por
este último: Castañeda era muito burro. Estava tão permeado de uma mentalidade
tacanha, materialista e, principalmente, descritiva, objetivante e
racionalista, que era necessário uma ruptura existencial que, em pessoas com fortes tendências espirituais e não
tão desvirtuadas, ocorre sem uso necessário
de substâncias psicoativas, embora também de um modo que pode ser psicológica e
psiquicamente traumático. O peyote e similares não eram fundamentais. E, pelos perigos
envolvidos, podem ser substituídos por coisa bem melhor, mesmo em gente burra.
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[1] O pietismo é um fenômeno que tem sua origem no século XVII quando os movimentos reformados desviaram sua atenção primordial dos debates teológicos com os quais se digladiavam entre si e com os católico-romanos para o campo da ''piedade ativa'' [praxis pietatis]. A partir daí, a leitura da vida cristã por parte dos pietistas vai deixar de lado a ideia da ascese como combate às paixões visando uma participação ativa na vida divina através de uma sinergia fundamentada na comunhão da Igreja enquanto corpo místico, e substituí-la por uma vivência ética individual e social marcada pela emotividade na oração e pela ''imitação de virtudes'' e boas obras, que supostamente revelariam um ''progresso moral'' que poderia ser objetiva e socialmente demonstrado por critérios comportamentais. Nascia definitivamente o ''homem de bem'' no interior das comunidades autodenominadas de cristãs.
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[1] O pietismo é um fenômeno que tem sua origem no século XVII quando os movimentos reformados desviaram sua atenção primordial dos debates teológicos com os quais se digladiavam entre si e com os católico-romanos para o campo da ''piedade ativa'' [praxis pietatis]. A partir daí, a leitura da vida cristã por parte dos pietistas vai deixar de lado a ideia da ascese como combate às paixões visando uma participação ativa na vida divina através de uma sinergia fundamentada na comunhão da Igreja enquanto corpo místico, e substituí-la por uma vivência ética individual e social marcada pela emotividade na oração e pela ''imitação de virtudes'' e boas obras, que supostamente revelariam um ''progresso moral'' que poderia ser objetiva e socialmente demonstrado por critérios comportamentais. Nascia definitivamente o ''homem de bem'' no interior das comunidades autodenominadas de cristãs.
[2] O Pe. John Romanides afirmava que ''a tradição bíblica tal como preservada pelos Santos Padres não pode ser identificada ou reduzida a um sistema de preceitos morais ou de ética cristã. Ela é antes um ascetismo terapêutico[...]. Tomar a superfície deste ascetismo, desvinculado de seu coração e núcleo, e aplicá-lo a um sistema de preceitos morais para a ética individual e social é produzir uma sociedade de puritanos hipócritas que acreditam possuir um direito especial ao amor divino por causa de sua moralidade, predestinação ou ambos. [...] Ninguém pode cumprir os mandamentos a menos que tenha purificado e iluminado sua faculdade noética e alcançado o início da glorificação.''
[3] O Arquimandrita George, do Mosteiro de São Gregório, no Monte Athos, chega a dizer na obra ''Theosis, the true purpose of human life'', que o moralismo é um dos maiores obstáculos à consecução da deificação, pois a vida de ''progressão moral'' seria centrada no homem, não na Graça, e, portanto, não apenas limitada como incapaz de satisfazer a busca do homem por Deus.
[4] A palavra harmatia significa originalmente ''estranhamento com Deus'', ''fracasso em atingir o próprio destino'' ou ''falha com a própria meta''. Sendo o objetivo da vida humana a união com as energias divinas, qualquer ato em dissonância com isso cai na categoria de 'pecado', um desvio do via.
[5] ''Olho do coração'' é uma forma de se referir à faculdade noética, ou nous, imagem de Deus na alma e capaz de um conhecimento intuitivo e unitivo com as realidades espirituais. Com a queda e a fragmentação da psique, o Nous se identifica cada vez mais com a mente, a razão, a imaginação e os sentidos, em um processo de fragmentação e obscurecimento.
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