Notícia do Jornal do Brasil dando conta do apoio do STF à intervenção militar de 1964. |
O jornal O Globo de hoje traz um caderno especial que lembra uma vez mais que amanhã se completam cinquenta anos do movimento militar que, em 1964, derrubou o presidente João Goulart e inaugurou um regime que duraria cerca de duas décadas. Nas últimas semanas, choveram especiais e depoimentos sobre a ditadura, a maioria esmagadora deles veiculando uma forte repulsa pelo período, que é pintado com cores mórbidas, em tons de luto e com ares de vergonha nacional. Em todos os cantos surgem ''heróis'' que resistiram contra o mal que saía dos quartéis para avacalhar com a República brasileira e jogá-la em uma época de trevas só comparáveis, dizem, aos totalitarismos mais cruéis. O regime militar seria, assim, um sequestro da sociedade e de nosso destino democrático, um desvio no caminho da construção de uma sociedade justa. Suas marcas seriam o totalitarismo, a alienação do povo, o descalabro econômico, e a tortura e terror generalizados.
O retrato acima é no máximo risível. Não passa da tentativa de construir uma determinada memória do período, uma historieta de bandidos e mocinhos [1] em que muitos se locupletam ou propagandeando suas ideologias particulares, que pretendem ver vitoriosas no ''tribunal da História'', ou ganhando alguma notoriedade e, quem sabe, dinheiro, ao posar de membro de uma suposta resistência democrática e vítima de demônios fardados, ou, até mesmo, limpar a própria barra diante da lembrança de que simpatizavam ou até mesmo contribuíram com o regime [2]. Não há contorcionismo capaz de tornar políticos como Dilma Roussef ou Aloysio Nunes em defensores da democracia ou em vítimas passivas da violência estatal. Os pedidos reiterados de que se faça uma limpa na ditadura, identificando torturadores e criminosos, e passando por cima da Lei da Anistia de 1979, não conseguem esconder a hipocrisia ao deixar de fora não só figuras conhecidas da luta armada de esquerda, que vitimou civis e militares com atentados e sequestros, como também de organizações -- especialmente parte da mídia que repercute a pressão por ''comissões da verdade'' -- que deram apoio explícito à derrubada de Jango e aos generais que o sucederam na presidência [3]. O regime militar possuía bases fortes em todos os setores da sociedade [4], incluindo aí a massa popular [5].
Editorial dando conta da euforia popular em diversas regiões brasileiras por causa da queda de Jango |
Mas o maior dos males criado por toda essa histrionice é o encobertamento de qualquer descrição ou explicação objetiva do que realmente aconteceu, a substituição da busca pela verdade histórica por um pseudo-mito simplista que nada faz além de expressar mesquinharias pessoais e interesses partidários e ideológicos. Digo 'encobertamento' porque há gente qualificada e empenhada justamente no problema de entender o 31 de março de 1964 e o sistema que a ele se seguiu. E é essa boa gente, ou pelo menos parte dela, que está jogada nos porões escuros do espetáculo midiático de ''malhar o judas'' que se tornou a cobertura jornalística do período, que tenho a intenção de revisitar.
Um dos vícios a serem evitados em qualquer descrição ou explicação histórica é a do apego a um único fator causal para explicar as diferentes dimensões e elementos de determinado evento ou época. Quando alguém é atado pela rede de uma explicação monocausal, acaba caindo em disputas inócuas com outros tantos, também confundidos por este tipo parcial de abordagem, em torno de dicotomias construídas para varrer pra debaixo do tapete tudo aquilo que não se encaixa no modelito simplificador em que se pretendeu prender a realidade. Várias dessas supostas contradições devem ser articuladas em uma perspectiva histórica mais ampla, o que não implica que não se deva priorizar em determinada medida um ou outro enfoque a fim de esclarecer um ponto particular ou ressaltar características que, apesar de fundamentais, acabavam esquecidas dentro de um quadro mais geral.
Marchas a favor da intervenção militar tomaram capitais brasileiras em 1964 |
Um das dicotomias a serem superadas é aquela marcada pela contraposição entre fatores estruturais e fatores intencionais. Entre os primeiros se discute muito a crise de desenvolvimento econômico e o esgotamento de um padrão de industrialização (a substituição das importações) que seria base da política populista e do consenso que embasava o sistema partidário e o Estado. A conclusão parcial seria que a crise econômica explicaria, por si só, a ruptura política do sistema [6]. Outra forma de reducionismo está no enfoque limitado ao fatores da estrutura política. Um exemplo é a ideia de ''Paralisia Decisória'', defendida por Wanderley Guilherme dos Santos, que advoga que foi determinada composição dos poderes que, em determinado momento, levou a uma paralisação decisória das instituições, levando todo o sistema à crise e possibilitando a intervenção militar. Já entre aqueles que defendem o pólo oposto, ligado à intencionalidade dos atores políticos, temos aqueles que focam nas escolhas particulares dos sujeitos, sem levar em conta as condições que delimitam a possibilidade de determinadas decisões e a repercussão das dita cujas. Também aqui entram as teorias conspiratórias, que enfatizam ora elementos externos como a CIA, a diplomacia estadunidense, o movimento comunista internacional, ou em elementos internos, marcados pela noção de uma conspiração desestabilizadora levada a frente por agentes e associações militares e empresariais. Muito mais sóbria é, neste ponto, o conceito de ''decisão estratégica'' de Angelina Figueiredo, que consegue abarcar ao mesmo tempo a existência de determinações estruturais e as escolhas e projetos intencionais que se movimentam nos meandros destas determinações e em diálogo com elas. Outra dicotomia, que muitas vezes se associa a anterior, está entre a postulação de causa exclusivamente externas ou internas como determinante final do movimento. No primeiro caso, 1964 se torna praticamente ato de um imperialismo estrangeiro que faria o sistema político brasileiro de mero joguete, ou então no pálido reflexo da Guerra Fria, um exemplo a mais a ser dado em um confronto ou processo que em tudo ultrapassaria os limites do país. No segundo caso, o Brasil é tratado como se fosse uma ilha, que, não apenas estaria desvinculada fortemente dos embates ocorridos no cenário internacional, como os utilizaria para expressar uma dinâmica que seria tão somente interna, embora camuflada por uma linguagem e discurso importados de experiências estrangeiras.
Uma das linhas explicativas mais interessantes e frutíferas para dar conta do golpe militar de 1964 é aquela marcada pelo funcionalismo estadunidense, com influências de visões liberais, importação de análises ligadas à administração de empresas, uma forte pitada de Weber e/ou Durkheim e também de psicologia comportamental, especialmente o behavorismo. Este tipo de abordagem visa, dentre outras coisas, escapar de análises marcadas exclusivamente pela sociologia do conflito, principalmente o marxismo, que tenta adequar os fatos a uma dinâmica puramente de classes determinada por uma conjuntura de guerra fria e de industrialização e urbanização do país. No próximo post, vou passar os olhos por aspectos da perspectiva de três autores que, em maior ou menor grau, se ligam a um ponto de vista marcado pela teoria organizacional, pela análise das identidades corporativas e pela ciência política funcionalista, muito forte nas academias norte-americanas: Gláucio Ary Dillon Soares, Edmundo Campos Coelho e Alfred Stepan.
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[1] Recentemente, o historiador Ronaldo Vainfas expressou seu desgosto com o que chamou de ''carnavalização da História'' e a propaganda de mitos sobre o período, muitas vezes com apoio de seus colegas. Segundo Vainfas, ''O que a maioria dos pesquisadores produz hoje sobre o golpe de 64 é de embrulhar o estômago de historiadores comprometidos com o ofício, e não com ideologias ou mitologias interesseiras e interessadas. [...]Estou defendendo uma história levada a sério, não a carnavalização dela. Toda esta bobagem lembra o filme de Carla Camurati sobre Carlota Joaquina, tratada como ninfomaníaca: narrativa iniciada por um velho escocês à sua neta, contando a história de um país exótico. Ou a série global "O Quinto dos Infernos", com seu d. Pedro I garanhão, full time. Esta série de matérias sobre 64 segue a linha histriônica e ignorante da história. Não faltam ex-perseguidos (em geral falsos perseguidos, que ganham bolsas-ditadura!) contando piadas sobre suas pretensas ou episódicas. Gente das artes, do teatro, do Pasquim!'' O texto pode ser lido inteiro em: Sobre a Ditadura
[2] Um exemplo de apoio aos militares é o Conselho Federal da OAB, que na década de 1960 se manifestou claramente a favor do regime. ''O presente artigo examina o combate travado pela OAB, por meio de sua instância diretiva máxima, o Conselho Federal, contra o governo Goulart. A atuação oposicionista da OAB deve ser compreendida no quadro da mobilização civil que colocou em marcha uma campanha de desestabilização do governo federal. Deposto Goulart, a OAB, como instituição, e os conselheiros federais, individualmente, colaboraram ativamente com a ditadura militar nos seus primeiros anos. Propõe-se que o oposicionismo da OAB ao governo Goulart derivasse de quatro fatores: os interesses socioeconômicos dos conselheiros federais; seus vínculos político-partidários; a cultura política dominante no Conselho Federal; questões corporativo-institucionais .''Conselho Federal da OAB apoia regime militar
[3] Caso notório é o do próprio Jornal O Globo, que possui jornalistas claramente militantes por punições contra aqueles que praticaram a tortura durante o regime militar mas que se calam ou inventam justificativas capciosas para deixar impunes grande parte da elite política atual, também envolvida em ações de arbitrariedade, e seus próprios patrões, que participaram ativamente do regime com propaganda, auto-censura, distorções jornalísticas etc.
[4] Daniel Aarão Reis prefere falar de ''Regime civil-militar'' para indicar que houve tremendo respaldo da sociedade civil à intervenção militar de 1964 como também apoio ao regime que se seguiu. Um vídeo com o professor da UFF: A Ditadura Civil-Militar Leiam também: ''Tornou-se um lugar comum chamar o regime político existente entre 1964 e 1979 de “ditadura militar”. Trata-se de um exercício de memória, que se mantém graças a diferentes interesses, a hábitos adquiridos e à preguiça intelectual. O problema é que esta memória não contribui para a compreensão da história recente do país e da ditadura em particular. É inútil esconder a participação de amplos segmentos da população no golpe que instaurou a ditadura, em 1964. É como tapar o sol com a peneira. As marchas da Família com Deus e pela Liberdade mobilizaram dezenas de milhões de pessoas, de todas as classes sociais, contra o governo João Goulart. A primeira marcha realizou-se em São Paulo, em 19 de março de 1964, reunindo meio milhão de pessoas. Foi convocada em reação ao Comício pelas Reformas que teve lugar uma semana antes, no Rio de Janeiro, com 350 mil pessoas. Depois houve a Marcha da Vitória, para comemorar o triunfo do golpe, no Rio de Janeiro, em 2 de abril. Estiveram ali, no mínimo, a mesma quantidade de pessoas que em São Paulo. Sucederam-se marchas nas capitais dos estados e em cidades menores. Até setembro de 1964, marchou-se sem descanso. Mesmo descontada a tendência humana a aderir à Ordem, trata-se de um impressionante movimento de massas. [...]No Brasil, estiveram com as Marchas a maioria dos partidos, lideranças empresariais, políticas e religiosas, e entidades da sociedade civil, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros (CNBB), as direitas. A favor das reformas, uma parte ponderável de sindicatos de trabalhadores urbanos e rurais, alguns partidos, as esquerdas. Difícil dizer quem tinha a maioria. Mas é impossível não ver as multidões — civis — que apoiaram a instauração da ditadura. [...] Entretanto, expressivos segmentos apoiaram a ditadura. Houve, é claro, ziguezagues, metamorfoses, ambivalências. Gente que apoiou do início ao fim. Outros aplaudiram a vitória e depois migraram para as oposições. Houve os que vaiaram ou aplaudiram, segundo as circunstâncias. A favor e contra. Sem falar nos que não eram contra nem a favor — muito pelo contrário. [...]Também seria interessante pesquisar as grandes empresas estatais e privadas, os ministérios, as comissões e os conselhos de assessoramento, os cursos de pós-graduação, as universidades, as academias científicas e literárias, os meios de comunicação, a diplomacia, os tribunais. Estiveram ali, colaborando, eminentes personalidades, homens de Bem, alguns seriam mesmo tentados a dizer que estavam acima do Bem e do Mal. [...] São interessados na memória atual as lideranças e entidades civis que apoiaram a ditadura. Se ela foi “apenas” militar, todas elas passam para o campo das oposições. Desde sempre. Desaparecem os civis que se beneficiaram do regime ditatorial. Os que financiaram a máquina repressiva. Os que celebraram os atos de exceção. O mesmo se pode dizer dos segmentos sociais que, em algum momento, apoiaram a ditadura. E dos que defendem a ideia não demonstrada, mas assumida como verdade, de que a maioria das pessoas sempre fora — e foi — contra a ditadura. Por essas razões é injusto dizer — outro lugar comum — que o povo não tem memória. Ao contrário, a história atual está saturada de memória. Seletiva e conveniente, como toda memória. No exercício desta absolve-se a sociedade de qualquer tipo de participação nesse triste — e sinistro — processo. Apagam-se as pontes existentes entre a ditadura e os passados próximo e distante, assim como os desdobramentos dela na atual democracia, emblematicamente traduzidos na decisão do Supremo Tribunal Federal em 2010, impedindo a revisão da Lei da Anistia. Varridos para debaixo do tapete os fundamentos sociais e históricos da construção da ditadura. [...]'' O Texto pode ser lido por inteiro em: A Ditadura Civil-Militar 2
[5] O próprio Lula o confirma, em entrevista a Ronaldo Costa Couto em 3 de abril de 1997, e que consta do livro ''Memória Viva do Regime Militar'': "Eu acho que a gente tem de dividir o regime militar entre a intenção dos militares que deram o golpe em 1964 e aquilo em que ele se transformou depois o golpe, a revolução. Pois eu acho que houve uma deformação. Agora, com toda a deformação, se você tirar as questões políticas, as perseguições e tal, do ponto de vista da classe trabalhadora o regime militar impulsionou a economia do Brasil de forma extraordinária. Hoje a gente pode dizer que foi por conta da dívida externa, 'milagre' brasileiro e tal, mas o dado concreto é que, naquela época, se tivesse eleições diretas, o Médici ganhava. É o problema da questão política com as outras questões. Se houvesse eleição, o Médici ganhava. E foi no auge da repressão política mesmo, o que a gente chama de período mais duro do regime militar. A popularidade do Médici na classe trabalhadora era muito grande. Ora, por quê? Porque era uma época de pleno emprego. Era um tempo em que a gente trocava de emprego na hora em que a gente queria. Tinha empresa que colocava perua para roubar o empregado de outra empresa. [...] Eles estabeleciam planos, coisa que nós não temos há muito tempo. O Brasil vai do jeito que Deus quer. E os militares tiveram, na minha opinião, essa virtude. [...]Tinha uma proposta de país. Com uma coisa nacionalista, que eu acho importante. Que nós perdemos. Que nós perdemos, não. Que o governo perdeu.''[...] "Quando houve o 31 de março de 1964, eu tinha exatamente dezoito anos de idade. Trabalhava na Metalúrgica Independência. E eu achava que o golpe era uma coisa boa. Eu trabalhava junto com várias pessoas de idade. E pra essas pessoas o Exército era uma instituição de muita credibilidade. Como se fosse uma coisa sagrada. Uma coisa intocável. O Exército era uma coisa que poderia consertar o Brasil. Quando houve o golpe, a Metalúrgica Independência tinhas umas 45 pessoas, e a gente tinha uma meia hora para o almoço. Todo mundo de marmita, a gente sentava para comer e eu via os velhinhos comentarem: 'Agora vai dar certo, agora vão consertar o Brasil, agora vão acabar com o comunismo', agora vai não sei mais o quê. Era essa a idéia. Essa era a visão que eu tinha na época do golpe militar. Na minha casa, a minha mãe escutava o rádio e dizia: 'O Exército vai consertar o Brasil. Agora nós vamos melhorar.' Era essa a visão. Pelo menos a parte mais pobre da população, que não tinha consciência política, tinha essa ideia.''
[6] Um exemplo nítido são as análises de Fernando Henrique Cardoso, que partem de sua ''teoria da dependência'', segundo a qual haveria uma mudança na forma de acumulação de capital. O modelo não se adequaria às novas necessidades do Capital Internacional. A crise teria advindo, portanto, como uma adaptação do modelo de organização estatal às novas demandas macro-econômicas do capitalismo mundial.
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