Sociedades menos evoluídas, acreditavam os europeus, eram "animistas". Com o tempo passariam a espiritualidades politeístas, que tomariam formas muitas vezes henoteístas. O politeísmo podia ser acompanhado da monolatria. Até que a ideia da existência de um só Deus se imporia quando as populações atingiam determinada complexidade social e política. Os fenômenos religiosos eram classificados de modo a caber nessas categorias. Do mesmo modo, a narrativa histórica tinha de dar conta destas transições [ou evoluções no sentido ideológico do termo, de ''melhora com o passar do tempo''].
Um exemplo bastante nítido: uma das grandes questões dos pesquisadores desse período, por exemplo, era saber quem havia ''criado'' o Monoteísmo. Dada a centralidade do Egito Antigo para a arqueologia -- e o impacto da terra dos Faraós no imaginário da Europa Moderna desde o século XVII --, não surpreende que a resposta científica se voltasse para aqueles lados. E assim egiptólogos propuseram o Faraó Amenhotep IV, mais conhecido como Akhenaton, da décima oitava dinastia, como o arauto de uma nova espiritualidade. Esse Faraó teria conduzido uma verdadeira ''revolução'' política e religiosa no século XIV a.C., desafiando o poderoso sacerdócio do deus Amon em prol de uma perspectiva mais profunda, centrada no culto a Aton, antiga divindade heliopolitana que era simbolizada pelo disco solar.
Alguns iam além, sugerindo que o Profeta Moisés tinha sido influenciado pela "Revolução Amarniana", como chamavam o reinado de Akhenaton. Talvez ele fosse iniciado no culto atoniano, ou vivido em um tempo em que este culto alcançou as elites das regiões que gravitavam em torno do Egito. Esse tipo de especulação, nem tão acadêmica assim, transbordou para a cultura popular, e se tornou leitura padrão de certo ocultismo e esotericismo oitocentista. Ora Moisés era um renegado e traidor dos mistérios egípcios, ora era um enviado do próprio Faraó, ora era o próprio Akhenaton reelaborado pelos hebreus em uma narrativa mitológica.
O entendimento de então era marcado pela projeção das próprias crenças oitocentistas em uma sociedade egípcia para a quais elas seriam incompreensíveis. A visão de um Faraó vanguardista combatendo sacerdotes reacionários para defender uma ideologia mais avançada, ética e solidária representava a sensibilidade mainstream na elite ocidental sobre as revoluções burguesas e liberais da Europa e dos EUA. Um culto solar secreto de iniciados capazes de impulsionar a História adiante caía ao gosto de aristocracias que se reuniam em lojas maçônicas e para-maçônicas a fim de fazer política e contribuir para a ''evolução da humanidade''.
A tendência de ler o passado com lentes do presente está em basicamente toda a iniciativa de se fazer História, seja em que âmbito for. Não era, evidentemente, um vício apenas da pesquisa em religiosidade. Com o tempo, os pesquisadores desenvolveram métodos, ferramentas e experiência suficientes para reduzir os riscos mais flagrantes de anacronismo. Mas eles estão sempre presentes, são incontornáveis em certa medida, porque é impossível que um homem situado em um tempo e lugar se desnude de todo seu arcabouço ideológico e cultural para abordar povos e crenças de séculos e milênios atrás. As próprias questões que orientam a pesquisa expressam preocupações contemporâneas que, seguramente, os povos do passado não tinham, ou as tinham em outra abordagem e contexto.
A consciência de que o passado é, até certo ponto, reconstruído por um olhar presente integra o próprio esforço de objetividade, a tentativa sincera de conhecer a realidade histórica. O perigo de que o viés do historiador nuble a compreensão do passado em vez de torná-lo mais acessível exige uma vigilância contínua que pode ser usada a favor da ciência. E que deu aos estudos históricos uma maior humildade em relação às suas próprias possibilidades e conclusões. Infelizmente, não é assim no discurso público e no senso comum, em que as teses científicas do momento são encaradas quase que como revelações caídas do alto, ungidas por uma verdade da qual divergir beira a insanidade, é praticamente cair no ''crime'' ou "blasfêmia'' do obscurantismo, pior acusação possível que se pode fazer em uma sociedade fundamentada no Iluminismo.
As concepções sobre a história religiosa se tornaram mais complexas já no século XIX, com o conceito de Ur-Monoteísmo, os estudos em fenomenologia da religião, as ferramentas dos estudos antropológicos e culturais. Enfim, um olhar mais crítico logo notou que Akhenaton não se enquadrava no conceito de Monoteísmo, e que nunca aboliu o culto a si próprio ou à sua [esposa] favorita, e que nunca deixou de lado o culto aos deuses funerários [que estão bem representados em seu túmulo]. Mais ainda, logo se notou que o próprio conceito de Monoteísmo não fazia sentido nenhum para os povos deste período, que não era sequer uma questão. Nem os egípcios nem os escritos atribuídos ao Profeta Moisés [o Pentateuco] podem ser compreendidos por meio dessas categorias.
Os relatos do Pentateuco foram comparados e contextualizados segundo o que sabemos das crenças mesopotâmicas e cananéias do segundo milênio e início do primeiro milênio antes de Cristo, principalmente a partir de pesquisas de campo dos anos 1920 e 1930. Afinal, este era o lugar de desenvolvimento dos hebreus e dos israelitas, os próprios relatos escriturísticos ressoavam os mitos comuns daquelas populações semíticas. Havia um complexo cultural comum que pode ser flagrado nas fontes escritas e não escritas, pela arqueologia, pelo estudo da mitologia e simbologia dos povos daquela região.
Os cananeus acreditavam em um panteão que descreviam como um Concílio/Conselho de deuses. A Divindade Suprema era El, que recebia diversos epítetos, como "Altíssimo". El tinha por esposa Athirat, e dessa união nasceram cerca de 72 filhos -- um número que vai se repetir muito nas Escrituras e na Tradição cristã --, os filhos de El, ou Filhos de Deus, eles próprios divinos também e imagens minoradas do próprio pai [porque é isso que significa ser um filho, ou seja, a imagem do progenitor].
A ideia de divindade entre estes povos estava vinculada à de Realeza, ou de domínio sobre uma determinada área do cosmos. De modo que El era o Rei dos reis, e os filhos de El eram todos eles governantes ou príncipes de alguma parte do universo criado: os ventos, os mares, cidades e populações específicas. Todo o cosmos estava dividido entre os filhos de Deus, como numa partilha entre a família divina, e todos eles estavam submetidos à autoridade máxima do Altíssimo.
Os filhos de Deus nem sempre conviviam pacificamente. Eles podiam discordar, entrar em conflito. O barraco era comum no Concílio dos deuses, e os homens podiam ter sinais destas discussões e batalhas por meio dos eventos celestes [astrologia] e políticos [história], por meio de mitos e ritos. Estas dimensões da realidade não estavam separadas, elas se imbricavam e se refletiam mutuamente. Desastres naturais, movimentos dos astros, doenças e guerras estavam ligados a uma dinâmica que ocorria entre os deuses, que governavam estas esferas. O Conselho discutia estas questões em reuniões que ocorriam em Montanhas míticas, em cujo cume existiam jardins de delícias. Estas reuniões eram marcadas por procedimentos jurídicos, com acusações e defesas. El Elyon, o Deus Altíssimo, tinha autoridade para julgar definitivamente as pendengas e aplicar as sentenças.
Mas não era bem o Altíssimo que julgava, e sim seu vice-regente, um dos aspectos mais fascinantes e importantes de todo esse complexo religioso. El escolhia um de seus filhos para governar cotidianamente o Concílio dos deuses. Na virada do segundo para o primeiro milênio antes de Cristo, o vice-regente era Baal.
Durante algum tempo, os pesquisadores da espiritualidade mesopotâmia e cananeia imaginaram que Baal destronou El de seu trono, mais ou menos como os mitos de sucessão da Grécia [em que Urano é deposto por Cronos, e este por uma rebelião da geração olímpica liderada por Zeus]. Mas no arcabouço religioso que deu origem às Escrituras Sagradas, Baal [ou o vice-regente] reinava sob autoridade do Altíssimo e no Nome do Altíssimo -- esta transposição do Nome tornava Baal a imagem acessível de El, considerado mais distante, uma Divindade adormecida e transcendente. De modo que se rebelar contra Baal era se rebelar contra a imagem [filho] de El. Não que inexistissem disputas pelo posto de Vice-Regente, o próprio Baal, deidade celeste e solar, teria sido entronizado ao derrotar seu irmão Yam, deidade do mar, em um conflito cósmico.
Existiam outras entidades espirituais importantes presentes neste Concílio, mas não eram consideradas divinas porque lhes faltava este aspecto da realeza. Elas se prostravam diante dos filhos de El e não tinham voz nas reuniões. Não podiam afirmar sua vontade, não podiam deliberar, discutir decisões, deviam obediência estrita à família de El. Estas entidades estão mais próximas de concepções posteriores sobre os Anjos.
Quando a existência dos hebreus e israelitas é flagrada pela pesquisa histórica, por volta do século X a.C., é este modelo de religiosidade e panteão que emerge das fontes escritas, da arqueologia etc. Ou seja, os autores dos textos sagrados tinham em mente este conjunto de crenças, são estes os mitos e símbolos que servem de pano de fundo dos relatos sagrados. Isto não quer dizer que os hebreus e israelitas praticassem a mesmíssima religião dos demais cananeus. Havia especificidades, diferenças que são muito importantes e sem as quais não é possível entender o Judaísmo do Primeiro e do Segundo Templos nem a emergência do Cristianismo. Mas estas diferenças não eclipsam as similaridades, só tem sentido se atentarmos para o arcabouço comum em torno do qual estas distinções surgiam.
Os autores do Pentateuco e dos relatos de conquista de Canaã acreditavam que Iahweh era Rei de um Concílio divino. Este Conselho reunia 72 filhos de Deus que, assim como o Altíssimo, eram reis de âmbitos diversos da realidade e que dividiam entre si os povos/nações da terra. Havia um Vice-Regente que era imagem do Altíssimo de modo especial: Ele trazia o Nome Oculto e Reinava sobre os demais deuses com a autoridade do próprio Rei dos reis. Este Vice-Regente era portador de emblemas bélicos que o apresentavam como conquistador e vitorioso sobre forças obscuras em um conflito cósmico [que se completaria no futuro] e era também um arauto de boas novas na escatologia. Existiam também seres espirituais menores neste Conselho, mas eles não tinham vontade autônoma, eram mensageiros e servidores dos filhos de Deus.
Os autores do Pentateuco e dos relatos de conquista de Canaã acreditavam que toda a realidade estava trespassada por este modelo religioso e a refletia em algum grau. Não existiam eventos históricos ou políticos separados deste modelo, não existia um mundo natural independente. A geografia era sagrada, toda região, rio, mar, floresta, montanha estava sob égide de algum ser espiritual. Portanto, todo acontecimento ligado a estas áreas flagrava algum movimento também de ordem espiritual. O mesmo pode ser dito para conflitos entre cidades e populações, doenças e pragas que ocorriam em colheitas e homens. Todo rei estava em diálogo com alguma divindade, e todo conflito humano era também conflito entre deuses.
O mesmo em relação aos eventos celestes. Quem lê as Escrituras e não atina a camada astrológica não está conseguindo entender o que os autores escreveram. As estrelas ''fixas'' e ''errantes'' eram símbolos, corpos ou regiões cósmicas governadas e associadas aos filhos de Deus. Os eventos celestes falavam de uma dinâmica espiritual e portanto afetavam a vida humana. Não vou entrar em discussões sobre o melhor termo a ser aplicado a essa perspectiva -- se astronomia, se astroteologia etc. --, e é evidente que entre os hebreus e israelitas não havia crença em determinismo, destino, nem muito menos permissão para culto a estes astros ou seres. Falarei disto em outra ocasião em que retornarei ao tema de O que há de bom na Astrologia?
O fato é que é impossível ser honesto em relação às Escrituras sem entender essa dimensão astrológica. Os Profetas, hagiógrafos e Santos Apóstolos não olhavam para a natureza, a história, as estrelas como se fossem caixinhas estanques de uma realidade natural governada por leis mecânicas e impessoais. Não eram homens modernos e de crenças iluministas. As estrelas eram governadas por deuses, e seus movimentos eram indissociáveis dos mitos, dos ritos, dos símbolos, dos conhecimentos sacros, da história, da escatologia, da soteriologia etc.
Muitos historiadores não desistiram, no entanto, de buscar uma origem para o Monoteísmo judaico ainda na Antiguidade. Se não era possível estabelecê-lo no fim do segundo milênio, se não estava posto já na composição do Pentateuco e na consolidação da monarquia davídica, em que momento da história dos israelitas poderíamos flagrá-lo? Quando foi que os israelitas deixaram de lado o concílio de deuses e partiram para uma visão mais ''sofisticada'' ou ''intolerante" [na segunda metade do século XX, o Monoteísmo passou a ser encarado muitas vezes sob a clave do exclusivismo fanático, não mais do ''avanço civilizacional"]?
No período pós II Guerra Mundial, a resposta se concentrou cada vez mais na Reforma do Rei Josias, acontecida nas décadas que antecederam a derrota de Jerusalém diante da Babilônia. Segundo o consenso do período, o Exílio da Babilônia marca uma reformulação poderosa na tradição judaica. É a partir do século VI e V a.C. que temos a versão definitiva da Torah, agora em hebraico [uma língua também nova]. Falei a respeito da formação do cânone escriturístico em uma série de postagens que se inicia em A Bíblia Protestante não é a da Igreja Primitiva [clique para ler], de modo que não vou me estender sobre este ponto. Mais importante é frisar que, nesta nova abordagem, se acreditava que os escribas do Judaísmo do Segundo Templo revisaram os mitos e textos mais antigos a fim de adequá-los à ideia de que os demais deuses não existiam, de que eram todos ídolos ''construídos por mãos humanas". Um monoteísmo radical sem espaço para um Conselho de deuses intervindo na Criação, e em que todas as entidades espirituais se tornam anjos no sentido descrito nos parágrafos anteriores.
Para os pesquisadores da segunda metade do século XX, a revisão realizada pelos escribas e sacerdotes do Judaísmo pós-exílico não foi perfeita. É possível flagrar nos textos os motivos mitológicos mais antigos e entender a transição realizada da mentalidade cananeia para a nova abordagem monoteísta, influenciada pelos persas e pelo mundo helênico. O Judaísmo do Segundo Templo teria originado toda uma ''história deuteronômica'' da monarquia davídica já adaptada às Reformas do Rei Josias. Os livros proféticos refletiriam essa mudança na condenação mais extremada à idolatria, como se vê no "Pseudo-Isaías" [também chamado de Deutero-Isaías, já que os críticos da forma passaram a acreditar que o livro de Isaías foi composto em três períodos históricos diferentes]. E a literatura sapiencial desenvolvida entre os séculos III e I a.C. já traria uma perspectiva mais metafísica e sutil que contextualizava as Escrituras segundo o Logos grego.
É muito fácil perceber a projeção de temas protestantes no consenso historiográfico do período. É uma narrativa que cabe na fantasia de um Monoteísmo mosaico original que mais tarde foi deixado de lado em prol de um politeísmo cananeu e por práticas idolátricas, e depois recuperado por reformadores, mesma história que os protestantes imaginam para a Igreja. É possível ver também porque esta mesma narrativa se tornou cômoda para muitos católico-romanos e alguns cristãos ortodoxos. Ele permite que eles se livrem de todos aqueles mitos e símbolos e textos estranhos sobre Jardins, Montanhas Sagradas, Nephilim, Gigantomaquia, Concílios Divinos, Astrologia, Dilúvios etc. em prol de uma religião supostamente mais ''intelectualizada'' [leia-se, que não desafie demasiadamente o senso comum contemporâneo.]
A questão é que o mesmo ímpeto crítico da historiografia tem colocado tudo isto em xeque. É possível sustentar academicamente, sem qualquer problema, que os revisores do Judaísmo do Segundo Templo não tinham intenção nenhuma de esconder o Conselho de deuses, a camada astrológica das Escrituras, o Vice-Regente, nem tampouco os mitos do Pentateuco. Mais ainda, eles continuavam acreditando em tudo isto, como se flagra nos livros hoje canônicos e nos pseudopígrafos e apócrifos [O cânone não estava fechado até o século III e IV da Era cristã: clique para ler a série: O cânone judaico parte I].
As alegações pós-exílicas de que ''não há deuses ao lado de Iahweh'' não são em nada diferentes de declarações do mesmo tipo encontradas em escritos pré-exílicos ou na religiosidade cananeia. Não era a negação da existência dos outros deuses, mas uma declaração a respeito da incomparabilidade, do status especial e inalcançável do próprio Altíssimo. De modo similar, as acusações de idolatria não podem ser lidas da forma como os protestantes modernos e iconoclastas as encaram. Ídolo e Idolatria eram conceitos e práticas bem específicos, e que não significavam nem de longe apenas a confecção de imagens dos poderes celestes nem muito menos a crença tosca, e inexistente na Antiguidade, de que estas imagens eram as divindades elas próprias.
Ou seja, o Judaísmo do Segundo Templo, os escritos proféticos pós-exílicos, toda a literatura pseudopígrafa [que muitos consideravam canônica no período], todos os escritos sapienciais, as correntes judaicas anteriores à emergência do Judaísmo Rabínico nos primeiros séculos da Era Cristã, bem como a Igreja apostólica e os Padres dos primeiros séculos, viam o mundo de modo similar ao modelo ''cananeu''. E assim jamais poderiam ser descritos nos termos do monoteísmo consolidado durante a Era Moderna.
Daí não se tira, já me repetindo, a inexistência de mudanças durante o primeiro milênio antes de Cristo nem que as crenças do Judaísmo eram as mesmas dos assírios e babilônios. Mas é necessário ''limpar o terreno'' antes de mencionar as divergências entre os judeus e os cananeus, ou entre os cristãos e a religiosidade greco-romana. Afinal, protestantismo é uma novidade dos séculos XVI e XVII. O Iluminismo é uma novidade ainda mais tardia. E o progressismo, obviamente, não passa de ideologia.
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