segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

A Bíblia Protestante NÃO É a da Igreja Primitiva e a dos Apóstolos

 "Muita gente não sabe, mas a Bíblia usada pelos protestantes é uma tradução de um texto hebraico completamente diferente daquele usados pelos primeiros cristãos e pela maioria dos judeus na Antiguidade Clássica. É o texto massorético, uma versão do Antigo Testamento que se consolidou entre os judeus a partir do século II depois de Cristo. Os cristãos, e a maioria dos judeus, usavam outra versão das Escrituras, a Septuaginta, uma tradução em grego koiné feita em Alexandria a partir do século III a.C. Existem divergências importantes entre a Septuaginta e o Texto Massorético. Diferenças de palavras, de divisão de livros, e até de número de livros [a Septuaginta é maior, contém mais obras]. Estas diferenças não foram causadas pela tradução para o grego no século III a.C. Escavações realizadas nas cavernas de Qumram, perto do Mar Morto, revelaram um conjunto de textos datados dos séculos II e I a.C. Estes textos demonstram que existiam versões das Escrituras em proto-massorético com divergências uma para a outra. Também foram encontradas a Septuaginta e versões em aramaico e hebraico que traduziam a Septuaginta em determinados trechos."




Algumas pessoas se surpreenderam por eu dizer que a Bíblia utilizada pelos protestantes NÃO É a ''Bíblia" [Escrituras] da "Igreja Primitiva", e sim uma versão escolhida e elaborada pelos Rabinos do Judaísmo a partir do século II depois de Cristo. Vou aprofundar o assunto em etapas.



i. E os textos das Escrituras judaicas antes da Septuaginta?


Essa é uma pergunta recorrente, principalmente dentro daqueles círculos que gostariam de ter os ''textos originais'' em mãos. A resposta para ela é simples: por tudo o que sabemos da composição da 'Tanach' [as Escrituras Judaicas], não conhecemos nenhuma versão, cópia, fragmento de texto comprovadamente anterior à Septuaginta.

A tradição judaica assegura que uma cópia das Escrituras [Lei e Profetas] foi trazida de volta para a Palestina no fim do Exílio na Babilônia, no fim do século VI a.C. Acredita-se que cerca de 40 mil judeus retornaram para a Palestina a fim de reconstruir o Templo e o culto religioso.

Pois bem, como atestado pela própria tradição judaica, o hebraico já tinha se perdido como língua comum do povo nesse tempo. A maioria dos judeus falava o aramaico e, com o passar dos séculos, o grego [principalmente em sua versão popular, o koiné]. Só uma minoria entendia o hebraico, de forma que quando as Escrituras eram lidas em público, elas tinham de ser 'traduzidas' e explicadas para quem a ouvia. [origem dos targums, mas não vou me estender sobre isso aqui.]

Essa versão pós-exílica das Escrituras Judaicas é chamada entre historiadores de "Documento Sacerdotal" [ou ''priestly tradition''], pois foi recomposta pelos levitas que passaram a dominar a religião judaica em torno do culto realizado no Segundo Templo. Ela se consolida por volta do século V. a.C.

Ora, não temos nenhuma copia, fragmento ou versão qualquer desse texto. Mas é provável que tenha sido ele o utilizado para traduzir as Escrituras judaicas para o grego a partir de meados do século III a.C. [A versão conhecida como Septuaginta, ou ''Versão dos Setenta", ou ainda LXX.]

De modo que não há nenhuma razão para imaginar que alguma versão em hebraico é mais próxima do texto pós-exílico do que a Septuaginta. E, como vou explicitar ainda mais, a versão usada pela "Igreja Primitiva'' [Era Apostólica, inclusive] era não só a Septuaginta, como o texto massorético é POSTERIOR a ela.



ii. Existia texto em hebraico usado ao lado da Septuaginta?

Existia mais de uma variante correndo pela Palestina dos dois séculos anteriores a Cristo. Provavelmente existia uma versão usada no Templo de Jerusalém, mas que não nos chegou. E existiam variantes conhecidas a partir, por exemplo, das escavações nas comunidades de Qumram, no Mar Morto [a poucos quilômetros de Jerusalém].

Em Qumram foram encontrados mais de 15 mil rolos de papiros com textos datados de fins do século III a.C. até meados do século I a.C. Quase metade deles são textos das Escrituras Judaicas hoje conhecidas como "Tanach" [mas tenham atenção aqui, pois volto a isso mais adiante].

Pois bem, estes textos tem variações importantes quando comparados com os textos massoréticos. E tem variações importantes dentro de seu próprio ''corpus''. Antes da descoberta e da tradução desses manuscritos, a maior parte dos historiadores acreditava na seguinte teoria de transmissão dos textos: uma versão que teria sido traduzida para a Seputaginta; uma versão que teria dado origem ao texto massorético usado pelo Judaísmo Rabínico; e uma terceira versão usada pelos Samaritanos [um problema à parte, que não vou tratar aqui.]

Esta teoria é considerada muito problemática atualmente: a multiplicidade de variantes em circulação na Palestina era MUITO MAIOR do que apenas três versões textuais.

Mais uma observação: cerca de um terço dos manuscritos encontrados são fragmentos e cópias de textos e livros que não fazem parte hoje da Tanach, ou seja, das Escrituras Judaicas, mas que fazem parte de outras versões do cânone do Antigo Testamento. Alguns destes livros estão presentes na Septuaginta e não estão presentes no texto massorético: Tobit, o livro da Sabedoria, o Salmo 151 etc. Alguns não estão presentes nem mesmo na Septuaginta, como o Livro de Enoch.

Isso demonstra que não existia um cânone fechado no Judaísmo do século I. Não existia uma lista de livros canônica definitiva, esse cânone estava aberto a discussões. Quem acha, portanto, que o texto massorético mais tarde consolidado no Judaísmo Rabínico [e depois usado pelos protestantes] é mais próximo de um "cânone judaico'' original está viajando na maionese: não há nenhuma razão para se acreditar nisto.



iii. Por que a maioria dos judeus usava a Septuaginta?

Já respondi em parte a esta questão: com exceção de uma elite, os judeus não falavam nem liam hebraico. A língua comum da Palestina era o aramaico. E a língua franca dos letrados do Império Romano era, principalmente, o grego.

Vou acrescentar mais uma informação: a maior parte dos judeus no século I, o século em que Cristo realizou sua Missão Pública, NÃO vivia na Palestina, e sim em outras regiões dentro e fora do Império Romano.

A população judaica no Império Romano entre os século I a.C e I d.C. gravitava entre 4 e 6 milhões de pessoas. [entre 5 e 10% da população do Império.]. Existiam também judeus no Império ao lado de Roma, o Império Persa.

Pois bem, a população de judeus na Palestina estava entre 500 mil e 700 mil pessoas. Isto quer dizer que apenas entre 10% e 20% dos judeus viviam na Palestina. Os demais habitavam o Egito, a Síria, a Etiópia, a Itália etc. A população de judeus no Egito, por exemplo, era no mínimo tão grande [provavelmente maior] quanto a da Palestina. [no século I a. C, entre 500 mil e 1 milhão de judeus vivia no Egito].

Alexandria era a segunda maior cidade do mundo romano no século I a.C, atrás apenas da própria Roma. Sua população era estimada em cerca de meio milhão de almas. A população judaica da cidade ficava entre 150 mil e 200 mil habitantes, o que a tornava a maior cidade judaica do mundo [Jerusalém, por exemplo, tinha entre 30 mil e 80 mil habitantes nessa época, e nem todos eram judeus.]

Agora, o uso do grego no dia a dia se espalhavam mesmo na Palestina. A língua era comumente falada nas principais cidades da Galileia e da Judeia [e muito menos nas aldeias e no mundo rural]. A Galileia, por exemplo, era região de forte influência helênica. Uma cópia completa dos Profetas Menores da Septuaginta foi encontrada em uma das cavernas de Qumram!

Conclusão: o grego era a língua franca da maioria dos judeus. Era a língua que distinguia os judeus em Roma até o século V depois de Cristo! [a comunidade judaica de Roma se comunicava em grego, e não em latim!] Isso não apenas ajudou a disseminação da Septuaginta: a Septuaginta era uma DEMANDA das populações judaicas.

Além disso, a Septuaginta era venerada pelas populações judaicas, segundo o testemunho de Fílon de Alexandria. Existia um festival anual no porto de Alexandria em que os judeus, e também gregos, comemoravam o local em que a ''luz da Septuaginta" tinha surgido a partir da tradução dos anciãos.

Essas populações judaicas não faziam questão alguma de que o texto fosse em hebraico, nem achavam que isso fosse necessário para que eles se comunicassem com a mensagem divina.



iv. É seguro dizer que a Igreja Primitiva usava a Septuaginta?

É líquido e certo. Por diferentes razões:

a) Todos os livros do Novo Testamento foram escritos em GREGO: as cartas de Sao Paulo, os Evangelhos, Atos dos Apóstolos, as cartas católicas [as epístolas de São Tiago, Sao Judas, de São João e de São Pedro]. O único texto do Novo Testamento que pode ter sido escrito em aramaico ou hebraico é a primeira versão [hoje perdida] do Evangelho de São Mateus. Mas isto é uma Tradição da Igreja que não tem crédito entre os historiadores. Seja como for, o Evangelho canônico de São Mateus é também a versão em grego. Ora, o fato de todos os livros do Novo Testamento terem sido produzidos e copiados em grego indica que eles eram escritos e lidos por comunidades que liam e se comunicavam também em grego.

b) Os escritores cristãos entre os séculos II e V d. C. citavam e defendiam o uso da Septuaginta. E inclusive criticaram os judeus quando os rabinos, a partir de fins do século II e mais acentuadamente no século III, passaram a defender o uso de versões hebraicas [o texto proto-massorético, como vou explicitar].

c) Os próprios textos do Novo Testamento demonstram que seus autores usavam a Seputaginta! Há citações das Escrituras nas cartas de São Paulo que batem perfeitamente com a Septuaginta, mas não com o texto massorético. No Capítulo 7 de Atos dos Apóstolos, Santo Estêvão faz um discurso baseado nas Escrituras Judaicas, e afirma, no versículo 14, que 75 pessoas foram com Jacó para o Egito. Ora, o numero 75 está na Septuaginta, tanto em Gênesis 46:24 quanto em Êxodo 1:5. No texto massorético o número é de 70 pessoas. O autor do Evangelho de Lucas, escrevendo nos anos 60 [ou nos anos 80, segundo os historiadores], usava a versão da Septuaginta. Mais: em 7:43, Santo Estêvão cita o capítulo 5 do livro de Amós, falando do deus Renfão. Ora, no texto massorético, nesse lugar em Amós, o nome do deus é Quinjum! O nome 'Renfão' só se encontra na Septuaginta! São exemplos simples para ilustrar o ponto.

Ou seja, os protestantes não usam a mesma versão do ''Antigo Testamento", ou Escrituras judaicas, que a ''Igreja Primitiva'', que os cristãos da Era Apostólica etc. Eles usam outro texto, que foi adotado pelos Rabinos a partir do século II depois de Cristo.




v. Como surgiu o texto massorético usado pelos protestantes?


A cidade de Jerusalém e o Templo de Jerusalém [o Segundo Templo] foram inteiramente destruídos pelos romanos por volta do ano 70 d.C. como consequência das Guerras Judaicas. Mais tarde, os romanos reconstruíram Jerusalém como cidade romana e deram permissão aos judeus pra que reconstruíssem o Templo [seria o Terceiro Templo]. Mas a Revolta de Bar Kochba, incentivada pelos próprios sacerdotes, levou à expulsão da maior parte dos judeus da Palestina [por volta de 135 d.C.].

A religião judaica teve de ser reconstruída em cima da autoridade dos Rabinos. Esse rabinato se considerava herdeiro das escolas farisaicas da Palestina no século I. Portanto, eles são herdeiros 'espirituais' dos fariseus. O Judaísmo Rabínico nasce a partir da Mishná e, posteriormente, do Talmud, conforme expliquei na outra postagem.

Pois bem ,foram estes rabinos que escolheram uma das variantes em hebraico para ''texto oficial'' e que estabeleceram o cânone judaico -- vamos lembrar que o cânone final dos judeus não estava ainda definido! Essa definição só ocorre no século IV da Era Cristã, quando finalmente se chega a um consenso sobre os 24 livros da Tanach [Escrituras Judaicas].

Voltando ao ponto principal, o texto em hebraico adotado pelos Rabinos é chamado de Proto-Massorético. Não é ainda esse o texto usado depois pelos judeus e pelos protestantes. Explico:

O hebraico não tem vogais. Assim, na hora de entender o texto, as vogais tem de ser inseridas. Não apenas isso, mas também os acentos etc. Qualquer mudança na vocalização do texto pode trazer diferenças de sentido. Os massoretas [os escribas responsáveis pela definição do texto que os judeus passaram a chamar de ''tradicional''] trabalharam nesta uniformização. Martin Goodman, professor da Universidade de Oxford, diz o seguinte:

"Os estudiosos responsáveis pela produção do que ficou conhecido como masorah, ou ''texto tradicional'', trabalharam principalmente na segunda metade do primeiro milênio da Era Comum, a maior parte na terra de Israel, culminando no texto bíblico determinado na Escola de Tiberíades no século X. Suas anotações críticas consistiam em marcar cada lugar onde o que é lido no texto (keri) deve ser diferente do que está escrito (ketiv). Esse processo poderia alterar completamente o sentido aparente de um trecho, lendo (por exemplo) lo (com um vav) significando ''para ele'' em vez de lo (com um aleph) significando ''não'' em Isaías 63:9. Em vez de ler que ''não era nem um mensagem nem um anjo, mas sua própria Face que os salvava", os massoretas entendiam que o texto dizia, "e Se tornou seu salvador. Ante sua angústia Ele se angustiava", com a importante implicação de que Deus sofre com os sofrimentos de Israel".[GOODMAN, 2017]

O trecho citado pelo professor é típico: comparem Isaías 63:9 numa bíblia protestante, que segue o texto dos Rabinos, com o texto nas traduções que seguem a Septuaginta nesse trecho [bíblia Ave Maria, por exemplo]. As implicações são óbvias pra quem quiser refletir minimamente sobre o tema...

Enfim, os massoretas trabalharam em cima do texto em Academias na Palestina e na Babilônia entre o século V e o século X. Só no fim desse período podemos falar do estabelecimento definitivo de um Texto Massorético, seguindo as linhas das famílias rabínicas que dominavam a chamada "Escola de Tiberíades". Só a partir daí ocorreu real homogeneidade de transmissão do texto em hebraico.




vi. Os protestantes e o Texto Massorético

Quando Lutero rompeu com a Igreja Católica-Romana e traduziu as Escrituras para o alemão, decidiu utilizar o texto massoreta dos Rabinos por supor ingenuamente que ela refletia de forma mais exata as Escrituras dos tempos de Cristo.

Conforme argumentei aqui, os protestantes ESTÃO ERRADOS. O Texto Massorético é uma elaboração gradual realizada entre os séculos V e X a partir de uma versão em hebraico chamada de 'proto-massorético', adotada pelos Rabinos nos séculos II e III, e que era UMA DAS variantes existentes na Palestina entre os séculos II a.C e I d.C.

Não bastasse isto, o texto proto-massorético NÃO ERA a versão das Escrituras usada pela ''Igreja Primitiva'' e pelos Apóstolos.

Existe ainda um problema a mais para o protestantismo: os Rabinos que escolheram e elaboraram o Texto Massorético alegavam ser herdeiros das escolas farisaicas. Não preciso nem dizer o que os Apóstolos e o próprio Cristo pensavam dos fariseus, basta ler os Evangelhos, principalmente os de São Mateus e São João.

Por fim, esses mesmos Rabinos que estavam compondo o Texto Massorético elaboravam e ensinavam também o Talmude. Existem trabalhos acadêmicos que demonstram que, no Talmude, Jesus Cristo é retratado como um feiticeiro, que aprendeu magia no Egito, foi corretamente executado, e cuja alma se encontra no inferno [eles descrevem as torturas de Cristo no Inferno].

Nada disso aqui é invenção minha, tudo pode ser facilmente comprovado.

Muitos protestantes acreditam no 'Sola Scriptura', ou nas Escrituras como única regra de fé. Ao mesmo tempo, usam Escrituras que foram elaboradas por autodeclarados herdeiros dos fariseus séculos depois da Ressurreição do Senhor e que NÃO ERAM usadas na ''Igreja Primitiva'', que os próprios protestantes tendem a ver como uma ''era de ouro'' do cristianismo.

Complicado, né?

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