sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

O PASTOR YAGO MARTINS E O CÂNONE JUDAICO, PARTE II, ou: Os ''deuterocanônicos'' nas fontes citadas

 


O apologeta protestante Yago Martins alega que os ''deuterocanônicos'' foram acrescentados pela Igreja católica-romana, católica-ortodoxa e orientais a um cânone judaico já estabelecido e consolidado na Palestina do século I. 

Algumas pessoas me pediram esclarecimentos sobre pontos específicos da postagem anterior. Vou aproveitar para acrescentar contra-argumentos importantes ao Pastor Yago. Lembro que estou respondendo ao primeiro terço deste vídeo de mais de quarenta minutos [clique], publicado no canal "Dois Dedos de Teologia". 


O video apresenta argumentos apologéticos para defender a ''Bíblia Protestante", cujo Antigo Testamento se fundamenta no texto massorético, que tem um cânone diferente do católico-romano, do cristão ortodoxo e de Igrejas Orientais. Os Protestantes usam os 66 livros estabelecidos pela Reforma Religiosa do século XVI, que ''descanonizou'' obras que, a partir de então, foram chamadas de ''deuterocanônicas'' [pelos católicos] e de "apócrifas" [pelos seguidores do Reformadores].


Na perspectiva Protestante, não foi Lutero quem retirou livros da Bíblia. Os católicos é que teriam adicionado literatura espúria a um cânone judaico já estabelecido nos tempos de Cristo. Os ''apócrifos'' não gozariam de inspiração divina e trariam erros doutrinários graves por conta desta ''deficiência''.


O Antigo Testamento protestante é uma tradução do texto massorético [TM] estabelecido pelos Rabinos Judeus na Idade Média. Lutero e os demais Reformadores acreditava que o TM representava as Escrituras Sagradas dos judeus tal como elas existiam desde a reconstrução do Segundo Templo e do final do Período Profético, na virada do século VI para o século V a.C. Segundo os Rabinos, a partir deste período a Profecia cessou em Israel, e o cânone estava fechado, sem novas revelações. Os protestantes aceitam esta tese e a usam também como motivo para excluir os ''deuterocanônicos'', que foram escritos no "Período Inter-Testamentário'', isto é, entre a cessação profética em Israel e o Nascimento de Cristo.


Será que os Protestantes estão corretos? Os ''deuterocanônicos'' são literatura apócrifa adicionada ao cânone judaico pelos católicos, ortodoxos e cristãos orientais? Quando este acréscimo foi realizado? 


Como estou fazendo séries de postagens sobre a formação do cânone para mostrar que o Sola Scriptura não tem sentido nenhum,  vou lidar mais diretamente com estes temas usando os vídeos do Pastor Yago como exemplo típico da apologética Protestante. 


Dividi o vídeo do Pastor em três grandes blocos de argumentos, cada uma deles contendo adendos mais ou menos secundários em relação ao ponto central:


I. Cânone do Judaísmo Rabínico [com citações importantes de Josefo, Fílon de Alexandria, e das comunidades ''essênias'' de Qumram];

II. Cânone usado por Cristo e, de modo mais amplo, no Novo Testamento;

III. Cânone defendido pelos Padres da Igreja dos primeiros séculos [acrescida de considerações ''doutrinárias'' sobre os ''deuterocanônicos''].


Já escrevi um texto sobre o primeiro bloco de argumentos, com tom mais apologético: clique aqui para ler. Vou aprofundar o assunto.



Lutero e outros reformadores usaram a Tanack como base para seu Antigo Testamento. O texto massorético foi consolidado por meio de elaborações dos Rabinos entre o século V e o X, mas os protestantes a consideram como referência para os escritos sagrados da Palestina do século I. 


1. Cânone e Cânones


A palavra ''cânone'' costuma ser usada com diferentes sentidos. No vídeo do Pastor Yago sobre o Novo Testamento, e que pretendo tratar em postagens futuras, ele pula, aparentemente sem notar, de um para outro uso sem maiores considerações ou explicações.


 A palavra aparece raramente nas Escrituras, e nunca para se referir a um conjunto de livros. Ela só é usada pela Igreja neste último sentido a partir do século IV. A ideia de um cânone escriturístico, no entanto, é Rabínica, ainda que os judeus não usassem o termo.  O significado mais abrangente de cânone é ''regra'' ou ''medida''. É a norma ou ideal que rege o conhecimento e a prática em determinada comunidade ou em dado campo da atividade humana. O cânone não precisa ser escrito. O termo aparece algumas vezes em São Paulo e em Padres da Igreja pra se referir à ''regra de fé'', à tradição apostólica, e não a escritos particulares.


Quando aplicada a obras escritas, a palavra aponta aquele conjunto de livros que, em dada área e sobre certo assunto, separam o joio do trigo, ou seja, o modelo que é parâmetro para todo o restante. E é aqui que entramos propriamente no nosso tema. Dizer que determinada comunidade tem livros canônicos, em um sentido abrangente do termo, não significa dizer que eles tem um cânone de livros em um sentido mais estrito. 


Os judeus sempre consideraram a Torah [os cinco livros atribuídos a Moisés] como ''canônica'', ou seja, como o parâmetro de fé que regulava a vida de sua comunidade religiosa. Daí não se tira que os judeus tivesse uma lista oficial de livros separada de todo o restante e considerada fechada e canônica. É este segundo sentido do termo canônico que nos interessa neste momento: estabelecer qual a lista consensual de livros considerados exemplares e obrigatórios para a vida religiosa, e que estão separados de todos os demais.


Saber que existem livros canônicos não implica ter um cânone de livros. Aliás, ter uma coleção de livros canônicos tampouco implica ter um cânone de livros: a coleção pode estar incompleta, pode estar aberta a futuras inclusões em futuro próximo etc. Já a lista oficial de livros religiosos é considerada ela própria canônica.


Segundo o Pastor Yago Martins, os judeus do século I tinham um cânone neste sentido mais estrito. Era um cânone consensual, e que estava fechado desde o século V a.C., quando se inicia o Período Inter-Testamentário, ou seja, quando a Profecia cessa em Israel. Apesar de não existir um documento com a lista oficial e consensual de livros, ela seria mantida por toda a comunidade a partir de uma tradição oral viva. Lutero e demais Protestantes apenas se conformam a este cânone judaico, diferente de católico-romanos, cristãos ortodoxos, e cristãos orientais não calcedonianos, que adicionam a este cânone alguns livros ''espúrios'', que os evangélicos chamam de ''apócrifos''.


Vamos analisar com mais detalhes o primeiro bloco de argumentos do vídeo:



O Eclesiástico, também chamado de Sabedoria de Ben Sirah, foi escrito no século II a.C. Faz parte de uma literatura sapiencial que deixou marcas profundas no Judaísmo e no Cristianismo. O Talmude da Babilônia traz citações da obra, que é tratada mais de uma vez como Escritura Sagrada


2. O Cânone Rabínico ou Farisaico


O Pastor Yago escora seus argumentos nas fontes rabínicas, compiladas entre o século II e o século VI na Mishná e no Talmude. Segundo ele, os judeus receberam a Revelação Divina [os ''oráculos de Deus'' mencionados por São Paulo] e tem o direito de estabelecer o cânone. Os cristãos apenas receberiam esta informação a fim de ter acesso ao Antigo Testamento. Contestei estas alegações a seguinte maneira:


2.1. As fontes citadas por Martins pertencem a comunidades de Rabinos que sobreviveram às Guerras Judaicas [que tiveram por consequência a Destruição de Jerusalém e do Segundo Templo]. Estes Rabinos eram herdeiros de escolas farisaicas da Palestina do século I, e reformularam o Judaísmo, que agora já não podia mais se organizar em torno do culto do Templo, com seus sacrifícios, calendários e festas religiosas. Esta fase do Judaísmo é denominada Judaísmo Rabínico, ou ainda Talmudismo. De qualquer maneira, se apoiar nela traz dois grandes inconvenientes para o Pastor: 

2.1.1 o primeiro é religioso, já que não tem muito sentido levar em consideração a posição de autoridades judaicas após a Paixão, Crucificação e Gloriosa Ressurreição de Cristo. As promessas espirituais a Israel tem continuidade na Igreja, não em uma comunidade de Rabinos que se forma depois e à parte dela. Não custa lembrar que a Igreja dita ''primitiva'' era formada por judeus e prosélitos [convertidos ao Judaísmo]. Os Doze Apóstolos também eram judeus. Segundo uma perspectiva cristã, estavam muito mais aptos para reconhecer o "Antigo Testamento", ou seja, os "oráculos" que Deus tinha revelado aos judeus, do que o Rabinato formado após a Destruiçaõ do Templo. Além disso, o Rabinato se considerava sucessor das escolas farisaicas, o que acrescenta um obstáculo a mais para a argumentação protestante dada as profundas divergências entre estas vertentes e a Igreja dita ''Primitiva''. Por fim, os posicionamentos destes herdeiros do farisaísmo já eram tomados em meio à polêmica contra o crescimento do cristianismo, como é consenso historiográfico;

2.1.2 o segundo é histórico mas também tem implicações religiosas, já que o Pastor incorre em um ingênuo anacronismo ao considerar que fontes compiladas no século VI [como o Talmude da Babilônia] refletem de modo exato o que acontecia na Palestina meio milênio antes. A justificativa de Yago Martins para abraçar este anacronismo é curiosa: segundo ele, os Rabinos mantiveram uma tradição oral confiável por pelo menos um milênio. Assim, o Protestante que nega qualquer validade à tradição oral cristã depois da escrita das obras neotestamentárias, se apega a uma suposta tradição oral farisaica mantida um milênio depois do início do suposto Período Inter-Testamentário. É o Sola Scriptura colocando a si próprio em xeque, e da maneira mais humilhante possível. Convém lembrar que esta mesma tradição oral rabínica ensina no Talmude que Jesus de Nazaré era um feiticeiro que aprendeu magia no Egito e descreve as torturas que ele estaria sofrendo no Inferno por conta de sua idolatria e blasfêmia. O Pastor considera esta tradição oral confiável ou isenta? Por quê?


2.2 Sendo herdeira dos fariseus, o Rabinato tampouco representa a comunidade dos judeus do século I. Existiam outras correntes religiosas na Palestina, como os saduceus [que, segundo Flávio Josefo, eram a seita mais influente na elite judaica e que faziam inclusive Sumo-Sacerdotes], os essênios [e as comunidades ''enochianas'' de Qumram, de modo mais abrangente], os terapeutas [citados por Fílon de Alexandria, outra fonte usada pelo Pastor], os zelotas. E uma massa da população que não se identificava necessariamente com nenhuma dessas vertentes. Não sabemos quais cânones eram usados por estas correntes, se é que eles usavam algum. Sabemos, por exemplo, que os saduceus tinham divergências sérias com a ''tradição oral'' dos fariseus e não acreditavam em anjos ou na Ressurreição dos Mortos. Além disso, cerca de 80% dos judeus do Império Romano viviam fora da Palestina e falavam grego. A maioria deles usava a Septuaginta, versão grega das Escrituras Judaicas e cuja tradução se inicia no século III a.C. A Septuaginta contém obras que o Pastor considera ''deuterocanônicas'' e versões diferentes dos livros sagrados quando comparadas ao texto massorético e usado por Lutero em sua tradução do Antigo Testamento. 


2.3 É consenso que existiam disputas entre os Rabinos sobre a canonicidade de determinados livros. É possível flagrar estes debates tanto na Mishna [escritos entre os séculos II e V] quanto nos Talmudes [compilados nos séculos V e VI]. Os Rabinos tinham dúvidas sobre o Livro de Ester, Cântico dos Cânticos e Eclesiastes. Eles tinham a mesma desconfiança dos historiadores atuais, a de que estes livros foram escritos naquilo que os protestantes chamam de Período Intertestamentário. Ora, Yago Martins admite a existência destas disputas, e portanto tem de admitir também que o cânone farisaico ainda não estava 'fechado' no século II. O Pastor tenta escapar desta óbvia conclusão argumentando que, apesar de existirem divergências sobre a canonicidade destes livro específicos, havia consenso contra todos os ''deuterocanônicos''. Mas não é bem assim: o Talmude da Babilônia, que ele usa como fonte, cita algumas vezes Sabedoria de Ben Sira [chamada também de Eclesiástico] como Escritura Sagrada. Este é um fato puro e simples que não pode ser negado, e que é também consenso historiográfico. Assim, pelo menos este ''deuterocanônico'' era bem conceituado no Judaísmo Rabínico do início da Idade Média a ponto do Talmude conter afirmações a favor da sacralidade do texto. 


2.4 O maior conjunto de evidências que temos sobre os livros usados na Palestina entre os séculos III a.C e I d.C. são os mais de 15 mil rolos de pergaminhos encontrados nas Carvernas de Qumram e no Deserto da Judeia. São centenas de cópias de livros ou fragmentos de livros. Elas apontam, de modo concreto e insofismável, que as Escrituras Judaicas circulavam na Palestina em formas múltiplas. Existiam diversas variantes em hebraico, de modo que o texto proto-massorético do Judaísmo Rabínico posterior não era o único lido. Mesmo os textos da Torah [a Lei Mosaica] tinha versões divergentes e reelaborações [como a contida no Pergaminho do Templo ou no Pentateuco Samaritano]. Foram encontradas duas versões diferentes do Livro de Jeremias [uma mais curta, coincidindo com a Septuaginta, em que o livro tem cerca 2700 palavras a menos e uma disposição distinta dos capítulos] e uma mais longa [mais próxima do texto proto-massorético]. E, mais importante ainda, existiam cópias de ''deuterocanônicos'', como Ben Sira [Eclesiástico] e Tobit. E obras que geralmente não constam de cânones, como o Primeiro de Enoque e o Livro de Jubileus. O número de cópias destas obras era considerável o suficiente para que concluamos que eles eram considerados importantes.



A Mishná é uma coleção de tradições rabínicas escrita entre o século II e IV da Era Cristã. O Pastor Yago Martins a usa como fonte, mas ela é testemunha de disputas sobre a canonicidade dos Livros de Ester, Cântico dos Cânticos, Eclesiastes e até mesmo Ezequiel. Nem mesmo o cânone rabínico parecia fechado no período.


3. O Testemunho de Flávio Josefo


Yago Martins usa o famoso historiador para sustentar a tese de que já havia um cânone tradicional judaico na Palestina do século I. Na obra "Contra Ápio", Josefo diz:

"Pois não temos uma inumerável multidão de livros entre nós, discordando e contradizendo uns aos outros, [como os gregos], mas somente vinte e dois livros, (8) que contêm os registros de todo o tempo decorrido; que são devidamente acreditados [como] sendo divinos; destes, cinco pertencem a Moisés, que contém suas leis e as tradições da origem da espécie humana até a morte dele. Este intervalo de tempo foi de apenas três mil anos. Mas da morte de Moisés até o reinado de Artaxerxes, rei da Pérsia, que reinou depois de Xerxes, os profetas que houveram depois de Moisés escreveram o que foi feito em seus tempos em treze livros. Os quatro livros restantes contêm hinos a Deus, e preceitos de conduta para a vida humana. É verdade que nossa história tem possuido escritores desde Artaxerxes, muito particularmente, mas não são estimados de semelhante autoridade como os anteriores, de nossos antepassados, porque não tem havido uma exata sucessão dos profetas desde aquele tempo. E que nós temos dado crédito firmemente a estes livros de 8 nossa nação é evidente pelo que fazemos; pois durante muitas gerações conforme já passamos, ninguém teve a ousadia de acrescentar coisa alguma, nem tirar coisa alguma, ou mudar algo neles."

Parte deste trecho é apresentado no vídeo em uma versão um pouco diferente. Segundo Martins, ela indica que o cânone judaico já era formado pelos 22 livros tradicionalmente aceitos, sem qualquer presença dos ''deuterocanônicos''. E que o próprio Josefo dá testemunho da existência do Período Intertestamentário ao citar o Reinado de Artaxerxes I, no século V, como um ponto limite da presença de Profetas entre os judeus. 


Contestei essas alegações da seguinte forma:


3.1 Josefo escreve no fim do século I, após a Destruição de Jerusalém, e adere explicitamente ao farisaísmo -- ele afirma que discorda essênios, saduceus e zelotas. Suas obras já eram, então, orientadas pelas escolas que estavam dando origem ao Judaísmo Rabínico e não uma expressão do status quo do Judaísmo do Segundo Templo. Um dos objetivos de Josefo é demonstrar que as Revoltas Judaicas contra o Império Romano foram obras dos zelotes, e não dos fariseus, aliviando a barra da comunidade judaica diante das autoridades de seu tempo. Esta agenda foi em parte bem sucedida, porque os romanos permitiram a reconstrução de Jerusalém e do Templo. Mas esta última não foi concluída porque estourou uma nova Guerra Judaica, a Revolta de Bar Kochba [131 a 135 d.C.], que teve apoio dos fariseus. A maior liderança do Rabinato judaico, o Rabi Akiva Ben Joseph, reconheceu Simão Bar Kochba, o comandante da Revolta, como o Messias Judaico, o que mostrou definitivamente aos romanos que, diferente do que alegavam os fariseus, o ''problema'' não estava apenas na corrente zelota. O mais interessante é que Yago Martins cita Aquila de Sínope, um discípulo do Rabi Akiva Ben Joseph, como exemplo de que as Escrituras Judaicas podiam ser traduzidas para o grego numa boa, que a versão da Septuaginta não era necessária. Mais uma vez, a argumentação Protestante tem problemas históricos mas também religiosos. De todo modo, e voltando ao ponto central, Josefo é exemplo das crenças principais desses Rabinos, não da comunidade judaica do século I.


3.2 Flávio Josefo afirma que são 22 os livros aceitos. A Tanach tem 24 livros. É provável, portanto, que o cânone rabínico conhecido por Josefo tenha divergências com o t exto massorético. Não sabemos se as diferenças da lista de Josefo se devem apenas a uma disposição diferentes dos livros ou se sua lista era diferente. Mas sabemos que a versão de Estar usada por ele era aquela que condiz com a Septuaginta e não a do texto proto-massorético dos fariseus. O Livro de Ester na Septuaginta tem capítulos a mais que a versão hebraica. Estas adições eram usadas por Flávio Josefo. Lembrem-se que Ester era motivo de polêmica na Mishná.


3.3 Josefo não diz que os Profetas cessaram em Israel no século V a.C., como depois alegado pelos Talmudistas, e sim que a sucessão dos Profetas não é clara depois do Reinado de Artaxerxes I, afirmação que tem de ser entendida diante da comparação que ele faz com a estabilidade do Sumo-Sacerdócio. Segundo ele, a sucessão de Reis e de Profetas tinha sido interrompida de alguma maneira, mas não a do Sumo-Sacerdócio -- uma alegação bastante contestada por algumas correntes do Judaísmo da Palestina do século I. Mas Josefo reconhece a existência de profetas posteriores a Artaxerxes, sendo João Hircano, que reinou na segunda metade do século II a.C., um dos exemplos mais claros:

"But when Hyrcanus had put an end to this sedition, he after that lived happily, and administered the government in the best manner for thirty-one years, and then died, 30 leaving behind him five sons. He was esteemed by God worthy of three of the greatest privileges,—the government of his nation, the dignity of the high priesthood, and prophecy; for God was with him, and enabled him to know futurities; and to foretell this in particular, that, as to his two eldest sons, he foretold that they would not long continue in the government of public affairs; whose unhappy catastrophe will be worth our description, that we may thence learn how very much they were inferior to their father's happiness."

["Mas quando Hircano colocou um fim à sua sedição, viveu feliz; e governou da melhor maneira por trinta e um anos, e depois morreu, deixando cinco filhos. Ele foi considerado por Deus digno de três dos maiores privilégios -- o governo de sua nação, a dignidade do sumo-sacerdócio, e a profecia; pois Deus estava com ele, e o tornou apto a conhecer os eventos futuros; e a prever, por exemplo, que seus dois filhos mais velhos não teriam continuidade no governo dos assuntos públicos; e cuja catástrofe infeliz será descrita po nós, de modo que aprendamos o quanto eles foram inferiores em felicidade ao pai deles."]

É provável que houvesse dúvida nas escolas farisaicas sobre a cessação da profecia antes do período Asmoneu ou da Destruição do Segundo Templo. O que explica as discussões sobre livros como Ester e Eclesiástico [Sabedoria de Ben Sirah].


3.4 Josefo tem a Septuaginta em alta conta e dá crédito à Carta de Aristeia, que alega que a Tradução dos Setenta e Dois Anciões foi inspirada por Deus. Isso indica que, apesar de sua adesão ao farisaísmo, o historiador não vê diferença de valor entre o texto proto-massorético e a Septuaginta, que incluía os ''deuterocanônicos''. 



Simão Bar Kochbah foi o líder da Terceira Guerra Judaica, ocorrida entre 131 e 135 d.C. O Rabi Akiva Ben Joseph, principal liderança rabínica do século II, e referência para toda a Mishná, apoiou a Revolta e reconheceu Bar Kochbah como o Messias. Após a rebelião, os romanos proibiram os judeus de entrarem em Jerusalém.


4. O testemunho de Fílon de Alexandria


De modo um tanto surpreendente, o Youtuber usa o filósofo Fílon, que escreveu no segundo terço do século I, para defender que nem mesmo os judeus que usavam a Septuaginta consideravam os "deuterocanônicos" como obras inspiradas por Deus. Fílon não os teria citado diretamente em suas obras, e assim, conclui o Pastor, "um dos maiores pensadores hebreus de seu tempo simplesmente não se relaciona com os apócrifos em sua construção teológica". 


Contestei essa alegação da seguinte maneira:


4.1 É verdade que Fílon não cita diretamente os ''deuterocanônicos". A questão é que ele tampouco cita Ezequiel, Ester, Lamentações de Jeremias, Eclesiastes, Cântico dos Cânticos e Daniel. A ausência de citação direta de um livro na obra de Fílon não pode ser usada, portanto, para averiguar seu status canônico, ou então teríamos de considerar todas essas obras fora do cânone aceito pelo teólogo e assumir que havia divergência sobre as listas entre os judeus do século I;


4.2 Apesar de não citar ''deuterocanônicos'', há alusões e referências ao texto de Ben Sira [Eclesiástico] na obra de Fílon. Mais ainda, é consenso que a literatura sapiencial alexandrina, da qual faziam parte os ''deuterocanônicos'', é basilar para a teologia de Fílon. Não tem sentido nenhum afirmar que eles não contribuíram para as construções teóricas deste pensador;


4.3 Fílon reconhece explicitamente a Septuaginta como Escritura Sagrada, dando crédito à versão de que os 72 Anciões foram inspirados por Deus. Ele não faz em nenhum momento distinção ou separação deste ou daquele livro contido na Septuaginta. Como o próprio Pastor admite, a "Tradução dos 70" trazia os ''deuterocanônicos".



Ilustração de João Hircarno, que era considerado Profeta por Flávio Josefo. O historiador judeu alegava que a sucessão dos Profetas era desconhecida, mas não que a Profecia tinha cessado em Israel.


5. Conclusão


Enfim, nem mesmo as escolas farisaicas do período posterior à Destruição do Segundo Templo tinham um cânone fechado ou concordavam inteiramente sobre a cessação da Profecia em Israel. Além disso, existiam outras correntes na Palestina do século I, com crenças bem distintas, e que possivelmente reconheciam uma literatura diferente daquela farisaica. Temos evidências de que o número de livros que circulava na região era maior do que o cânone Rabínico posterior, e que suas próprias formas textuais eram mais fluidas. Para completar, a maioria dos judeus no período usava a Septuaginta, versão em grego que trazia os "deuterocanônicos'' e que era comumente considerada inspirada por Deus.


Este bloco de argumento do Pastor Yago Martins não demonstra em lugar nenhum que os "deuterocanônicos" eram desprezados ou deixados de lado por um cânone já estabelecido e fechado, mantido desde o século V a.C., e que seria hoje usado pelos Protestantes. Há evidências de uso das obras ''deuterocanônicas'' tanto pelo Rabinato, quanto por outras correntes do Judaísmo do século I, e também por Flávio Josefo [Adições a Ester, pelo menos] e Fílon de Alexandria.


Esclarecida a questão, vou me preocupar agora com o segundo bloco de argumentos do vídeo do canal "Dois dedos de Teologia", aquelas que buscam considerar o cânone usado por Cristo e pelos autores do Novo Testamento. Será que é possível demonstrar que Cristo e os Apóstolos tinham um cânone judaico fechado e que ele era aquele do texto massorético, hoje usado pelos Protestantes?

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