'[A]ntes de prosseguir, desejo remover uma impressão errada da mente de vocês. Pois de fato muitos daqueles que são menos instruídos pensam que as almas dos que sofreram morte violenta se tornam ''espíritos errantes''. [demônios -- Nota: a palavra grega geralmente tem o significado de almas de homens mortos que muitos acreditavam terem se tornado demônios; no grego arcaico, espíritos guardiões, ou até mesmo deuses inferiores. Aqui é traduzida em geral como espíritos errantes ou demônios]. Mas não é assim. Repito, não é assim. Pois não é a alma daqueles que morreram de forma violenta que se tornam demônios, e sim aquelas que viviam em pecado; não que a natureza delas tenha sido alterada, mas é que em seus desejos elas imitam a natureza má dos demônios. Mostrando isso para os judeus, Cristo lhes disse, ''Vocês são filhos do diabo'' [Jo 4:44]. [Cristo] disse que eles eram filhos do diabo não porque tivessem mudado sua natureza mas porque realizavam ações demoníacas. [...]''
Até o século IV, a visão dominante na Igreja era de que os Nephilim [Gigantes, na Septuaginta] foram gerados por intercurso sexual entre anjos e mulheres. Depois da definição do cânone e das interpretações de Santo Agostinho e Santo Efraim, o Sírio, os Padres preferiram ver nos "Filhos de Deus" a descendência de Seth, que teria corpos distintos dos cainitas por viverem mais próximos do Paraíso Terrenal, mas que em algum momento se corromperam e se deixaram seduzir pelas ''filhas dos homens''. Santo Efraim chega a explicar que essa sedução foi intencional, pois os cainitas geravam mais mulheres que homens, e precisavam de maridos vindos da outra linhagem de Adão.
Esta interpretação difere substancialmente da primeira, que era então bastante consolidada e tinha grande autoridade. Santo Irineu de Lyon, por exemplo, foi discípulo de São Policarpo de Esmirna, discípulo direto de São João Teólogo. Ele ensina em "Exposição do Ensino Apostólico", que escreveu com a intenção de difundir o básico da Tradição Apostólica:
"E por muito tempo, enquanto a perversidade crescia e se espalhava, e alcançava e submetia toda a raça humana, de modo que restou apenas uma pequena descendência de justos, uniões ilícitas se deram sobre a terra, já que anjos se uniram com mulheres da raça humana; e elas geraram filhos que, por seu excessivo tamanho, foram chamados de gigantes. E os anjos presentearam suas esposas com ensinamentos de perversão, e lhes trouxeram as virtudes das raízes e ervas, tinturas de cores e cosméticos, a descoberta de substâncias raras, poções do amor, de aversão, de concupiscência, constrangimentos de amor, encantamentos de feitiçaria, e toda bruxaria e idolatria odiosa a Deus; pela entrada destas coisas no mundo, o mal aumentou e se espalhou, enquanto a justiça diminuiu e enfraqueceu."
Santo Agostinho não negava que demônios pudessem atacar sexualmente mulheres e homens. Ele não via problema na crença da existência de súcubos e íncubos, criaturas demoníacas que talvez tivessem corpos formados de elementos do ar, e inclinados para o vício da porneia. Mas ele e outros Padres não acreditavam que seres de natureza diferente pudessem reproduzir, um argumento que tem bastante fundamento. Além disso, era possível questionar porque os mesmos anjos caídos não atacavam mulheres hoje em dia e geravam Gigantes. Se aconteceu antes do Dilúvio, então por que não acontece atualmente? Onde estão os Gigantes?
Temos de lembrar que os escritos do Antigo Testamento, dos Santos Apóstolos e dos Padres dos primeiros séculos foram produzidos na ambiência cultural e religiosa da Mesopotâmia e do mundo greco-romano. E no Oriente Próximo não existia qualquer problema na crença de que seres celestes copulavam com mulheres ou que podiam gerar descendência. O modo como isso ocorria, no entanto, era ritualístico:
"Encenações mítico-rituais do ano novo, mais ou menos análogas, são atestadas em muitas culturas. Teremos a oportunidade de medir-lhes a importância quando analisarmos a festa babilônica, akitu (cf §22). A encenação compreende o hiero gamos entre duas divindades padroeiras da cidade, representadas por suas estátuas ou pelo soberano -- que recebia o título de marido da deusa Innana e encarnava Dumuzi -- e um hierodulo. Esse hiero gamos atualizava a comunhão entre os deuses e os homens; comunhão por certo passageira, mas com significativas consequências. Pois a energia divina convergia diretamente sobre a cidade -- em outras palavras, sobre a ''Terra" --, santificava-a e lhe garantia a prosperidade e a felicidade para o Ano Novo que começava. [...] Em Babilônia, o Enuma Elish era recitado no templo, por ocasião do quarto dia da festa do ano-novo. Esta festa, denominada zagmuk ("começo do ano") em sumério e akitu em acadiano, era comemorada durante os primeiros 12 dias do mês de Nisan. Apresentava diversas sequências, de que destacaremos as mais importantes: [...] 4) o hieros gamos do rei com uma hierodula que personifica a deusa." [...] Aludimos ao casamento sagrado o rei sumeriano, representando Dumuzi, com a deusa Innana: esse hiero gamos realizava-se durante a festa do ano-novo. Para os sumérios, a realeza tinha descido do Céu; tinha uma origem divina, e essa concepção manteve-se até o desaparecimento da civilização assírio-babilônica." [Eliade, 1976]
Não se trata, portanto, somente do símbolo e da cosmogonia do casamento entre o Céu e a Terra, ou de mitos e analogias sobre a complementariedade masculina e feminina, que existem também no Cristianismo. Não se trata de acusar todas as religiosidades ''pagãs'', nem mesmo afirmar que a Realeza Sagrada é oriunda do capiroto. Tampouco demonizar os conhecimentos de caráter cósmico, pois o conhecimento não é mau em si mesmo. A questão é que a forma como era obtido, e a condição espiritual dos homens que o obtinham, os tornavam impulsionadores da corrupção e da degeneração.
Existiam, então, certos tipos de rituais que envolviam identificação do soberano com um deus e o intercurso sexual com uma sacerdotisa [hierodula], práticas que envolviam a quebra de 'tabus', e que se tornaram comuns em ambientes aristocráticos de diversas regiões do planeta -- especialmente no Oriente Médio e na Grécia, regiões em que a Tradição Cristã se desenvolveu --, e que se vulgarizaram também entre vias místicas e entre o populacho. O complexo ritualístico-mágico que envolvia cópulas com sacerdotes e reis ''possuídos'' ou ''identificados'' com potências espirituais é muito vasto. Elas não se davam apenas no Ano Novo ou em momentos específicos do ano, mas existiam comumente em templos com ''prostitutas sagradas'' destinadas a copular com 'deuses' em diversas ocasiões. [O conceito de ''prostituta sagrada'' se tornou problemático e politicamente incorreto com a ascensão dos estudos de gênero, mas não vou entrar nessa querela. O importante é indicar a existência de virgens/sacerdotes dedicados a um determinado tipo de rito sexual sagrado que envolve a participação de entidades espirituais.]
Este tipo de rito mágico-sexual pode ser encontrado em outros continentes, tanto na forma de orgias públicas, como também em cerimônias mais restritas, ligadas à realeza e/ou a vias iniciáticas. Posso exemplificar com o Kaula Tantra, da Caxemira, ligado à Abhinavagupta, metafísico e mestre tântrico do século X. Segundo Christopher D. Wallis, Abhinava foi iniciado, ainda muito jovem, na Sampradaya Kalikula, mais especificamente no Krama, via que remontava a Cakrabhanu, que "presidia regularmente eventos chamados cakra-melapas ou ''círculos de encontro''. Eram prolongados rituais de grupos krama de caráter orgiástico que começavam com grande solenidade ritual e se tornavam...bem, muito selvagens. Como guru que os presidia, Cakrabhanu recebia uma daksina ou doação de cada um dos seus participantes. Parece que o rei desaprovou fortemente que membros respeitáveis da sociedade gastassem seu dinheiro nesse tipo de evento, pois puniu Cakrabhanu de forma dura, colocando na testa dele a marca do pé de um cachorro, punição reservada aos grandes ladrões". [Wallis, 2012]
Mais interessante ainda é este componente da biografia do próprio Abhinavagupta, segundo o mesmo Wallis: "Os pais de Abhinava eram praticantes Tantrika avançados e o conceberam no ritual Kaula. Ele era considerado então yogini-bhu, ''nascido de uma yogini'', e assim tendo uma capacidade especial para a liberação. Abhinava alude à sua filiação e concepção em sua assinatura, presente no início de suas cinco principais obras." Desnecessário dizer que estes ritos ocorriam, muitas vezes, em meio a práticas que incluíam sacrifícios, consumo de sangue e outros fluidos, e invocação de deidades e Poderes Divinos que se identificavam mística e magicamente com os Iniciados e praticantes.
A Hierodulia, os ritos orgiásticos, e os sacrifícios -- tanto do povo, quanto de aristocracias e organizações mais discretas de Iniciados -- podem ser encontrados também na América do Sul, na África, na Europa e do Extremo-Oriente, como se pode atestar por meio da pesquisa histórica e do estudo das religiões. A intenção era provocar a identidade entre os homens e determinadas manifestações espirituais, levando a certos poderes. Em alguns casos, pessoas nasciam destes ritos, e eram consideradas com habilidades, tendências e conhecimentos especiais por causa das influências implicadas em sua concepção. Ou seja, sua estrutura psicossomática, seus corpos, traziam as marcas desta origem. Histórias sobre estes indivíduos ''semi-divinos'' [ou semi-demoníacos] estão registradas por toda a parte do globo. Na Grécia, eram associados à Nobreza, à capacidade para violência, e também à hybris, o que lhes dava um caráter titânico.
É possível argumentar que o intercurso frequente e ritualístico com essas entidades e suas energias tornassem o praticamente uma imagem menor delas. Um "filho do diabo", por assim dizer. É possível argumentar que, uma vez mortos, os Nephilim continuassem aprisionados e assemelhados a estas potências celestes, e operassem tal como demônios. Para isto, precisamos citar algumas concepçoes sumério-acadianas sobre a vida após a morte:
"Não se pode dizer que a morte correspondia ao aniquilamento total. Mas o defunto não se torna um deus, como no Egito; podem ser contados pelos dedos os mortais que a tradição mitológica consentiu em divinizar. Ao mesmo tempo que a vida, uma sombra, um espírito separa-se do corpo. Principalmente em virtude da falta de sepultura e, acessoriamente, de oferendas alimentares, este espírito, maligno por natureza e errante, se possibilidade de repouso, atormenta os sobreviventes. O interesse destes e do defunto emparelham-se, portanto, o que explica a preocupação de garantir um filho, mesmo por meio de adoção: caberá ao filho organizar exéquias condignas e, mais tarde, será ele o ''libador de água" e o organizador dos repastos funerários. Porquanto, preenchidos os últimos deveres em relação ao cadáver, o espírito desce para ''a terra'', a ''grande terra'', a ''terra lá de baixo'', a ''terra sem retorno". [Aymar e Auboyer, 1998]
É possível comparar com São Gregório de Nyssa:
"Parece existir certo fundamento para esta opinião naquilo que é dito por certas pessoas, que frequentemente ao redor dos túmulos aparece alguma espécie de formas sombrias dos que se foram. Se isto realmente acontece, prova que a alma se tornou mais apegada do que deveria à vida carnal presente, de modo que mesmo quando abandona a carne não está disposta a voar para longe. Sequer permite que sua forma se torne completamente invisível, mas permanece com ela mesmo depois de ter sido dissolvida. Apesar de ter saído da forma, vagueia com saudade nos lugares materiais e passa seu tempo neles.'' [cf. The Soul and the Resurrection, 71.]
Podemos comparar também com São Justino Mártir:
"Mas os anjos transgrediram este compromisso e foram cativados pelo amor de mulheres, e geraram filhos que são aqueles chamados demônios; e além disso, eles submeteram a raça humana em parte por meio de escritos mágicos, e em parte pelo medo e por punições que eles conduziam, e em parte também ensinando-os a realizar sacrifícios e acender incensos, e realizar libações, e aquelas coisas com as quais foram escravizados por paixões luxuriosas; e eles semearam entre os homens assassinos, guerras, adultérios, obras desmedidas, e toda perversidade. [...] Mas ''Jesus'', seu nome como homem e Salvador, também tem significado. Pois ele se fez homem, concebido de acordo com a vontade de Deus Pai, por amor aos fiéis, e para a destruição dos demônios. E você pode aprender a partir do que pode ser observado. Pois cristãos exorcizam incontáveis demônios em todo o mundo, e em suas cidades, em nome de Jesus Cristo [...]." [Segunda Apologia]
Os Padres falavam de algo similar ao se referirem ao nascimento do Anticristo, com expliquei aqui [clique para ler], e não é à toa que Santo Hipólito de Roma associasse a Gematria do número 666 ao nome Titã. O exemplo de Abhinava também responde a nossa segunda questão, pois é óbvio que existem Gigantes depois do Dilúvio, o que está explícito na passagem que os cita em Gênesis e também durante o Êxodo, a conquista de Canaã e o estabelecimento do Estado israelita.
Seria exaustivo citar diversas passagens demonstrando as guerras ordenadas por Deus entre os israelitas e as populações de Nephilim, desde o Rei Og, até as tribos de Rephaim [Gigantes], dentre eles os Enaquim e, especialmente, os amalequitas [que descendem do Rei Esaú por meio de seu bisneto Elifaz, casada com Timna, irmã de Lothan, e misteriosa concubina horita, outro povo de Gigantes]. Os filhos de Amaleque são os inimigos arquetípicos dos israelitas desde Êxodo, e em várias fontes associados a Nephilim, a sugadores de sangue [talvez adeptos de sacrifícios que incluíam beber sangue humano] e feitiçaria. Os Padres consideravam as vitórias de Israel sobre os amalequitas tanto como eventos históricos, como também ensinamentos ascéticos e para a vida espiritual de todo cristão, e ao mesmo tempo antecipações e símbolos da vitória de Cristo sobre o diabo e o Anticristo.
Daí o caráter icônico da vitória do Justo Profeta Davi em cima de Golias, invertendo a recusa do Rei Saul de eliminar amalequitas, que o levou a perder o favor divino. A Monarquia Davídica é o exemplo arquetípico do governo cristão e é desta linhagem que se esperava o cumprimento das expectativas messiânicas. O tema de Davi matando o Gigante Golias se torna um tipo do Cristo exorcizando os demônios e os mandando para o abismo, e de Sua vitória final contra o Anticristo, colocando fim à Apostasia dos anjos e ao Mistério da Iniquidade que assola a terra desde Caim.
Enfim, não é necessário me estender muito mais sobre este sentido específico da Grande Apostasia, da Rebelião dos Anjos e dos homens, e do Mistério da Iniquidade. Cristo nos livra da morte e do Hades, mas também do domínio do diabo, que se estabeleceu no coração humano, na criação e na história.
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