"Está estabelecido assim que a autoridade da Monarquia temporal desce sem mediação da fonte da autoridade universal. E que esta fonte, una na pureza de sua origem, flui em múltiplos canais dada a abundância de sua excelência."
Dante Alighieri
A Dupla Coroa do Monarca egípcio, a branca representando o Alto Egito e a vermelha o Baixo Egito. É a coroa usada tanto por Horus quanto pelo deus criador Atum
Uma das maiores pendengas entre Tradicionalistas é a divergência entre Guénon e Evola sobre os vínculos entre a "Autoridade Espiritual" e o "Poder Temporal" -- como o francês colocava o problema. Esta questão tem repercussões em vários níveis, não apenas na organização social.
Na varnashrama hindu, os brâmanes são uma casta 'superior' a dos Ksatryias. Os primeiros representam a 'palavra' do Macantropo [Homem Universal], e se ocupam da transmissão da doutrina, tanto em forma expositiva e lógica, como também mistérica e iniciática. A vocação brâmane se vincularia a Vishnu e à guna sattva, de caráter luminoso e ascendente pelos graus de ser. Os homens com essa vocação são os ''intelectuais'', ''contemplativos'' e ''mestres'' em dada civilização. Tem atividades sacerdotais, artísticas e professorais e se vinculam prioritariamente ao conhecimento e sua difusão.
Os Ksatryias, por sua vez, representam os membros do Macantropo, e portanto seu potencial para ação em dado mundo ou ordem de manifestação. Sua vocação está ligada a Brahma, o demiurgo, e à guna Rajas [na verdade, uma mescla entre Sattva e Rajas], que expande ou consolida determinada organização ou ordem ou compossibilidades em dado plano ou âmbito da realidade. Os indivíduos que pertencem a essa varna exercem o poder, o governo e a administração de dada sociedade. Estão também ligados às funções de Justiça e Guerra.
Se fôssemos comparar estas varnas com a psicologia humana, os brâmanes se associam ao Nous, ou ao Intelecto Ativo. Poderíamos também dizer que eles estão associados ao espírito e à cabeça. Já os Ksatryias se vinculam à personalidade, ao peito, à alma irascível. No terreno esotérico, estas varnas estão ligadas a formas diferentes de Iniciação. Os brâmanes são gnósticos, trilham vias jñana, de pura contemplação e metafísica, compatíveis com suas tendências sátvicas. Já os Ksatryias tem apelos emotivos e psíquicos que os tornam mais adequados a caminhos devocionais, à ligação com ''divindades pessoais''.
Guénon ia além ao sustentar que a iniciação dos ksatryias era dos Mistério Menores, ligados à salvação da personalidade, ao retorno ao estado original do homem como centro deste mundo [estado adâmico], e aos conhecimentos cosmológicos. Já a iniciação brâmane era a dos Mistérios Maiores, que levavam à Identificação Suprema [ou realização espiritual], de natureza principalmente metafísica.
Dito isto, ele ensinava que em toda ''civilização normal'' -- ou seja, toda sociedade organizada segundo a Tradição --, os brâmanes exerciam a autoridade sobre os Ksatryias. Estes tinham todo o poder na ordem mundana, mas se curvariam aos sacerdotes e mestres que detinham o ensinamento tradicional de ordem mais elevada. Como o Rei nada mais era que um ksatryia, estaria limitado pelo sacerdócio.
Evola pensava diferente. Ele fazia notar a existência de um estado anterior à divisão de varnas, o estado do próprio Realizado. Neste estado, os poderes de brâmanes e Ksatryias estariam sintetizados. A função social que corresponderia a este estado era a do Rei-Sacerdote, o Pontifex supremo. O Ksatryia teria características que lhe permitiriam conquistar o poder sacerdotal e atingir este elevado patamar espiritual, sem mediação brâmane. Esta via régia colocava o Monarca em uma posição superior a do sacerdote.
A resposta guenoniana ao argumento do Barão é de que não vivemos mais na Era de Ouro, em que alguns homens já nasciam Iniciados. No momento atual de degeneração, a Era de Trevas, a posição de Evola não faria sentido.
Na Cristandade Latina, ambos exemplificavam sua discordância por meio das pendengas entre o Papado e o Império -- ou na terminologia italiana, entre guelfos e gibelinos. Mas elas também tomam forma no fortalecimento das Monarquias no alvorecer da Modernidade, com a Realeza submetendo o clero e insistindo em teorias como a do Direito Divino.
A discordância neste ponto está longe de ser banal, e traz implicações para a análise da decadência espiritual e civilizacional. A tese principal de Guénon era a Rebelião dos Ksatryias, que causa uma ruptura no reflexo pessoal e social do Mancatropo. As considerações de Evola sobre o ''Retrocesso das Castas" são um tanto diferentes, bem como dos meios para evitar ou 'retificar' a situação.
Em outra postagem vou falar de uma perspectiva cristã-ortodoxa sobre este 'problema'.
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