sábado, 10 de fevereiro de 2024

A Rebelião de Azazel e dos Anjos Guardiões, ou: A formação do cânone, parte 4


Aproveito a pergunta que me fizeram noutro lugar sobre o Livro de Enoque -- e que pretendo tratar em postagem específica -- pra fazer uma observação sobre o cânone neotestamentário.


Bato na tecla que o Sola Scriptura pareceria delírio para a Igreja dita ''Primitiva". Que nem o cânone judaico nem o cristão estavam fechados nos primeiros séculos depois de Cristo. Que no primeiro século de existência da igreja não se sentia necessidade de um Novo Testamento. Que no primeiro século da Era Cristã, os escritos que mais tarde formariam a ''Bíblia" ainda estavam sendo escritos: as primeiras gerações cristãs morreram sem conhecê-los.

Mas há outro aspecto muito importante: a influência na Igreja de certos escritos e tradições que hoje são pouco conhecidos dos cristãos. Aquelas compiladas no Livro de Enoque estão entre elas.

O Livro de Enoque [me refiro ao I Livro de Enoque] não foi aceito como canônico, com exceção da Igreja etíope. E, no entanto, é muito difícil entender o desenvolvimento da cristologia, da cosmologia, da angelologia, da soteriologia e da escatologia cristãs sem levá-lo em conta.

Muitos tem a impressão bastante equivocada de que boa parte destes elementos doutrinários são 'tardios'. A pesquisa acadêmica do século XIX, fortemente influenciada pelo protestantismo, imaginou essas tradições como misturas indevidas com o 'paganismo' na medida em que o cristianismo se expandia para fora da Palestina ou em que era aceito como religião oficial do Império Romano.

Nada mais falso. Como apontei diversas vezes, o Judaísmo tinha uma diversidade imensa de correntes durante o Segundo Templo. Existiam correntes judaicas disputando o sentido da religião. As correntes farisaicas e saduceias não resumiam nem de longe tudo o que se entendia por Judaísmo nos dois séculos anteriores a Cristo. Nem o culto do Templo de Jerusalém era consensual, pois existiam vertentes que o consideravam conspurcado por se basear em um sacerdócio e/ou calendário ilegítimo.

O Judaísmo Rabínico que se desenvolveu a partir do fim da Antiguidade dá continuidade a certas correntes do Segundo Templo, mais especificamente escolas farisaicas. A Igreja pode ser entendida, em muitos sentidos, como a continuidade de outras correntes deste mesmo complexo religioso.

E aí voltamos ao primeiro livro de Enoque e suas descrições das rebeliões dos Anjos, comandada por Azazel e por Samiyaza, e que ensinam aos homens segredos em diversos âmbitos, incluindo aí a magia, a metalurgia, as estratégias e armas de guerra, e outros tantos mistérios da Criação -- como ritos e cultos que envolvem aborto, abuso sexual, consumo de sangue, sacrifício humano e canibalismo. Estes mesmos "Guardiões" Angélicos estupram mulheres e geram uma descendência de Gigantes [Os Nefilins] que vão escravizar a maior parte dos seres humanos -- narrativa que deixou marca explícita no textos canônicos, como em Gênesis 6:1 a 4, ou como na ordem de São Paulo em I Coríntios 11:10 para que as mulheres usem véus como proteção contra os anjos [Os 'Guardiões' ardem de luxúria pelas mulheres, há todo um vínculo aí entre a natureza feminina, o erotismo, e a sabedoria divina].

O lamento da humanidade escravizada subiu ao trono de Deus por meio de intermediários angélicos -- sim, porque a ideia de intermediação entre os homens e Deus estava colocada no Segundo Templo, não foi nenhuma ''paganização'' do cristianismo --, e Deus ordena a guerra contra os poderes rebelados, levada a efeito pelos Sete Arcanjos que se reúnem ao redor do Trono divino.

Só se compreende as práticas judaicas do primeiro século, e só se percebe o contexto de elementos muito importantes do Novo Testamento, se levamos em conta essas crenças, que eram bastante disseminadas entre os judeus.

Azazel, o anjo aprisionado no deserto, e para o qual os sacerdotes do Templo enviavam o bode expiatório com os pecados de todo o povo.


O Livro de Enoque também traz detalhes do Julgamento Divino sobre os Anjos Rebelados, levado a efeito pela figura do Filho do Homem, um Anjo acima dos próprios Anjos que, muitas vezes, é identificado nesse livro como o próprio Iahweh e também como o Messias.

Definitivamente, as crenças da Igreja dita "Primitiva" não surgiram do nada. E os embates entre cristãos e fariseus e saduceus etc. podem ser vistos, em certo âmbito, como conflitos entre judaísmoS diferenteS. Não tem nada a ver com uma suposta ''helenização'' ocorrida após a conversão do Império Romano.

Só levando em conta as tradições enoquianas que se percebe o desenvolvimento histórico da 'cosmologia' da Descida de Cristo aos Infernos, a libertação dos justos rumo ao Paraíso, o papel capital de Jerusalém como eixo do mundo. É ali que se pode entender melhor também a posição do Apocalipse de São João, que dá continuidade à história do conflito entre os Anjos de Deus e os Anjos Rebelados, e que descreve as "Duas Bestas" como Monstros que emergem do Mar [Leviatã] e da Terra [Behemot].

Além disso, a própria ideia do Anjo está associada, nos tempos apostólicos, ao de Realeza e de 'protetor' de um povo específico, de modo que toda essa cosmologia e angelologia se intersecciona com a História e com o que chamaríamos hoje de ''política''. A Igreja não nasce no mundo de Maquiavel, em que estes âmbitos existem em 'caixinhas' separadas umas das outras.

Mas isso é tema para ser tratado devagar, com cuidado e comedimento. Há uma razão para que não tenham se tornado escritos canônicos. Porque a ideia de cânone está vinculada àquilo que pode ser lido publicamente [cantado em voz alta] nos ritos cristãos. O canônico, por mais divino e inspirado que seja, é também a ponta de um Iceberg que flutua no oceano profundo da Santa Tradição.

Óbvio que o protestantismo impede uma compreensão real de todas estas questões por toda sua associação com o Sola Scriptura, e sua relação moderna com o texto escrito, com a leitura introvertida e individual etc.

Na próxima postagem, volto a falar da formação do cânone.


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