sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

DATANDO OS EVANGELHOS SINÓTICOS



Há de se ter sempre cuidado com os critérios de evidência interna do texto utilizados pelos especialistas na composição histórica dos cânones bíblicos.


Por exemplo, a maioria deles considera o libro do Justo Profeta Amós como da primeira metade do século VIII a.C. Mas alguns veem camadas que pertencem ao século VI a.C.

Qual é o argumento? Ora, o de que o livro prevê a destruição de Jerusalém.

O pressuposto aí é que Amós não poderia ter profetizado o evento. O trecho teria de ser escrito depois do ocorrido. Eis o perigo de se ater a um viés travestido de ceticismo metodológico.

Pois algo parecido acontece com a datação dos Evangelhos. A razão mais forte para que datem os Evangelhos de São Lucas e de São Mateus no fim dos anos 80 é que se imagina que eles tem de ser escrito: i. Depois da destruição de Jerusalém e do Segundo Templo pelos romanos, e ii. Depois do Evangelho de São Marcos.

Afinal, Cristo profetizou a debaclé, e a pesquisa prefere apostar que os textos sejam uma releitura cristã das Guerras Judaicas projetada no passado como um discurso de Juízo Divino atribuído ao Senhor.

O curioso é que isso não é justificável sequer em um viés cético. Afinal, os relatos proféticos contra Jerusalém e o Templo são comuns na literatura sagrada, como o próprio Amós é prova. Seria simples supor, nessa ótica, que Cristo estivesse emulando os Profetas.

Mas há um argumento forte, e bem ao gosto daqueles que preferem se restringir a evidências textuais, para que a data dos sinóticos seja anterior ao ano 70.

É consenso de que o autor de Atos dos Apóstolos é o mesmo do Evangelho de São Lucas, não só pelo estilo das duas obras mas também porque uma é apresentada como continuação da outra já nos primeiros versículos. Ou seja, Atos dos Apóstolos foi escrito em conjunto ou pouquíssimo tempo depois que o Evangelho de São Lucas.

Ora, o tema de Atos é a expansão da Igreja por meio de missões, principalmente as lideradas por São Pedro e por São Paulo. Ambos desembocam em Roma em algum momento, onde sabemos que foram martirizados durante as perseguições desencadeadas por Nero -- segundo Tácito, elas começam no ano 64.

Só que Atos dos Apóstolos não faz nenhuma menção a esta perseguição, ou à morte de São Paulo e de São Pedro. Também não há menção à execução ilegal de São Tiago, o Justo, que tem papel importante na obra como líder inconteste da Igreja de Jerusalém -- e que foi morto pelos sacerdotes judeus nos anos 60, tanto segundo Flávio Josefo quanto Santo Hegésipo.

Nada se diz tampouco sobre a destruição de Jerusalém e do Templo, ou, de modo mais amplo, do início das Guerras Judaicas.

O livro chega ao fim com São Paulo vivo e bem em Roma, detido mas bem tratado o suficiente para cuidar do crescimento da comunidade ''com liberdade e sem proibição''.

Isso não tem sentido caso a obra datasse do fim dos anos 80 ou início dos 90, como se pretende. Mas faz todo o sentido do mundo caso o autor a escrevesse antes da perseguição, ainda na primeira metade dos anos 60.

Se essa linha de raciocínio estiver correta, o Evangelho de São Lucas tem foi escrito antes dessa data, já que Atos lhe dá continuação.

E isso muda inteiramente a datação dos demais Evangelhos, principalmente se Mark Goodrace e outros estiverem corretos em sua negação da fonte Q -- tem que tratei noutro local. São Lucas teria conhecimento do Evangelho de São Mateus, que assim seria decididamente da década de 50, jogando São Marcos igualmente para essa época.

Não vou tratar da questão da chamada ''prioridade de Marcos'' aqui. Mas estas observações já são suficientes para alertar o quão frágeis são as tentativas de datar os Evangelhos de forma tardia.

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