NÚMERO 3: My Darling Clementine [''Paixão dos Fortes''], de 1946
Wyatt Earp é um símbolo do Velho Oeste. Um sujeito de carne e osso, que atravessou todo aquele período histórico e fez de quase tudo. Caçou búfalos, foi operário de ferrovias, buscou prata em minas, gerenciou cassinos, conduziu gado por trilhas no deserto, se tornou justiceiro. Mas sua fama se consolidou por seu trabalho como xerife de cidades conflagradas, mergulhadas no caos e no conflito.
Wyatt sobreviveu ao Velho Oeste, adentrou o século XX e testemunhou o fim do estilo de vida aventureiro e desordenado que formataria para sempre o imaginário americano. Depois da Primeira Guerra Mundial já era uma lenda viva, um fóssil, e também uma fonte para os primeiros "bangue-bangues" -- força do cinema americano já na década de 1910, em pleno apogeu do cinema mudo, em um tempo em que Hollywood ainda não existia.
Uma biografia muito famosa de Earp foi lançada e se tornou um clássico instantâneo: ''Frontier Marshall'' [''Xerife da Fronteira'']. Imediatamente ela se tornou inspiração para produções dos grandes estúdios, mesmo depois que se descobriu que ela pecava por seu pequeno apego à verdade histórica. A lenda de Earp era mais forte do que os fatos, e foi elaborada, modificada, expandida em diversas versões.
Rapidamente episódios da vida de Earp se tornaram pedras basilares do mito do Oeste, como o famoso tiroteio do Curral OK, em Tombstone, em que Wyatt e dois de seus irmãos, ajudados pelo amigo Doc Holliday [outra figura indispensável na história do século XIX americano], derrotam representantes de uma gangue de ladrões de gado que se recusavam a obedecer a ordem do Xerife Virgil, que tinha proibido o porte de armas na cidade.
Elevado a símbolo da lei e da ordem, de um bravo que impôs com métodos violentos a civilização em meio a caubóis bêbedos e de armas em punho, Earp também soube deixar o distintivo de lado quando lhe apeteceu. Trabalhando muitas vezes nos meandros entre o legal e o ilegal, abraçou de vez a vida de ''fora da lei'' quando os tribunais não deram conta dos atentados que seus irmãos sofriam na mão de desafetos, incomodados com seu sucesso em pacificar cidades. O heroi reuniu um grupo, sempre apoiado pelo perigoso e carismático Doc Holliday, e saiu à caça dos inimigos, circunstância que definitivamente gravou seu nome na história da conquista do Oeste.
De todos os sucessos cinematográficos inspirados pela vida de Earp -- tais como ''Dodge City'', ''Frontier Marshall'', ''Doc'', ''Winchester 73'', ''Gunfight at the Ok Corral'', ''Hour of the Gun'', e os mais recentes ''Tombstone'' e ''Wyatt Earp'' --, ''My Darling Clementine'' [1946] é certamente o mais importante de todos, e também uma das melhores obras do mestre John Ford.
Romantizando a biografia já ultra-idealizada de Earp, Ford compôs uma poesia em forma de cinema. Não deu o papel principal para John Wayne, preferindo a figura menos dura e menos ameaçadora de Henry Fonda. Seu Wyatt é sujeito civilizado, repleto de discernimento, bem apessoado e de boa higiene, que é capaz de desarmar quase todos com sua liderança misturada a bons modos.
O lado mais sujo do heroi do ''western'' fica por conta do Doc Halliday [a mudança de nome foi para evitar conflitos com a família de Holliday] de Victor Mature, um cirurgião que deixou a sociedade da Costa Leste para se tornar o homem mais respeitado de Tombstone, levando a vida entre tiroteios, bebedeiras em tabernas, jogos de azar, os amores da dançarina Chihuahua e crises de uma tuberculose já em estágio avançado. Halliday poderia parecer um perigo para a tentativa de Earp de colocar ordem na cidade conflagrada, mas os dois estabelecem uma genuína amizade desde o primeiro encontro.
O título do filme faz menção a uma personagem fictícia e à famosa música folclórica. Clementine é uma enfermeira apaixonada por Doc, e que procura por ele na tumba do Oeste em decomposição. Apesar de todo o amor, os dois não ficarão juntos. O cirurgião sabe que há uma sentença de morte pairando sobre ele, similar ao destino traçado para o próprio Velho Oeste. A tensão que se estabelece entre a moça civilizada das metrópoles e Earp dá o tom do filme, uma paixão platônica que jamais se concretiza pela lealdade implicada na amizade entre o pistoleiro tuberculoso e o xerife.
A dinâmica da narrativa não esconde o fio de Ariadne do gênero, a busca por vingança. Wyatt aceitou ser xerife de Tombstone depois que seu irmão mais novo foi assassinado por ladrões de gado. A possibilidade de revanche dos Earp dá um sentido diferente a todos os atos que realiza em defesa da lei.
Mas o que chama atenção nessa peça única de Ford é o seu retrato singular do Faroeste. Os EUA saíam da II Guerra Mundial e rumavam para seu destino urbano, cosmopolita e tecnológico. Em contraste, John Ford oferece para sua Tombstone um panorama rústico, simples, vagaroso. O cotidiano rural está em todo lugar: conversas na taberna, preparativos para a quermesse, pregações da Igreja, danças, jogos de pôquer. O diretor presta homenagem àquele ritmo peculiar, àquela temporalidade distinta que marca a vida campestre do Velho Oeste, mais do que a uma loucura veloz de perseguições, duelos e balas zunindo que caracterizavam esse mundo imaginário.
Mais do que ação desenfreada, Ford dá a seu público um poema, uma ilustração da canção homônima do filme, como se um pequeno criador de gado tocasse sua viola do fundo de um Saloon e colocasse em palavras ritmadas e caipiras as cenas predominantes do mito. Ou como a tomada de Wyatt Earp [Henry Fonda] sentado em frente ao hotel da cidade, apoiando seu pé numa pilastra e balançando sua cadeira enquanto observa sem pressa o caminhar do pequeno povoado que se desdobra diante de seus olhos.
Texto maravilhosamente envolvente. Li tudo de uma golada rs. Te amo. Lívia.
ResponderExcluir