sábado, 13 de junho de 2020

Ciro, Nildo e o Trabalhismo, ou: como Ouriques mirou em Mangabeira e acabou atacando a tradição trabalhista



''A propriedade privada é tão boa que a queremos para todos''
Leonel Brizola




Um dia após seu lançamento, o livro ''Projeto Nacional: o Dever da Esperança", de Ciro Gomes, foi criticado em tons fortes pelo professor Nildo Ouriques, conhecido político nacionalista filiado ao PSOL. No canal do Youtube “Duplo Expresso”, o deputado vaticinou que na obra não há qualquer modelo alternativo para o país. O que Ouriques quer dizer, de fato?


Fora algumas apreciações diretas sobre o pedetista, a maior parte das quais injustas [1] -- como as alegações de que não há uma crítica ao Plano Real ou ao PT no livro, o que é falso --, o verdadeiro problema do deputado não é com Ciro, e sim com Mangabeira Unger, cuja influência ele considera imperdoável.


Ora, eu também tenho diversas reticências contra o ''scholar de Harvard''. Quando Dilma tentou emplacar o ''Pátria Educadora'', fundamentada nas ideias de Mangabeira, escrevi um texto em que levantei diversas ressalvas à perspectiva por trás do plano petista: [Leia nesse link: O Projeto de Brasil de Mangabeira Unger]


Unger adotava a falácia lulista sobre a emergência de uma ''nova classe média'' a partir da ''economia de shopping'' da Era PT, uma nova categoria social formada por mestiços evangélicos cujo perfil religioso seria similar ao do protestantismo individualista nos Estados Unidos. 


Mas nem existia uma ''nova classe média'', nem o pentecostalismo brazuca pode ser entendido por uma abordagem weberiana [2], o que tornava as bases do projeto um nonsense completo.


Além disso, há nele uma tendência, mais ou menos implícita, mais ou menos consciente de acordo com a situação, a ler a experiência civilizatória brasileira como análoga à ianque -- um vício recorrente em intelectuais brasileiros. Em entrevista recente, chegou a dizer que não havia país mais parecido conosco do que os EUA, um disparate completo [3].


[Não vou me alongar sobre esse tema, mas por justiça a Unger, devo dizer que há livros seus em que ele é mais sutil nessa comparação, embora não se livre nunca dessa referência, que, no fundo, é de toda deletéria.]

Só que a inconformidade de Ouriques com "Mangaba", como ele o chama, não vem, aparentemente, de seus limites e defeitos mais evidentes, e sim de alguns de seus elementos mais certeiros. “Não existe Colonialismo Mental”, declara Nildo, citando o título de um dos livros do professor de Harvard cujo impacto mais transparece nas páginas de Ciro.

Mas nos termos colocados por Mangabeira, não só existe um colonialismo mental, como se trata de fenômeno determinante na vida do país. Ele se expressa pela dissociação entre nossas elites, sempre céleres para copiarem instituições e modelos estrangeiros, e a cultura do povo, que é singular, diversa e única em seu desenrolar histórico. 


Ora, um exemplo dado por Unger de esquema importado pelas elites para interpretar e organizar o Brasil segundo parâmetros alienígenas é justamente o marxismo desposado pelo professor Nildo. O marxismo é descrito por Mangaba como uma espécie de fatalismo universalizante, uma fantasia de que teríamos de seguir, necessariamente, os passos sociais e institucionais vivenciados por outras sociedades.

Ouriques não esconde ser um marxista que compreende o trabalhismo como uma via brasileira para a construção do socialismo. Filiando-se a essa ala nacionalista, se sente incomodado que Ciro trilhe um caminho diverso. 

Seria uma posição totalmente legítima não fossem os erros que o psolista atribui ao livro "Projeto Nacional", acusando-o de “ruptura com a história do Trabalhismo”. Para o deputado, as ideias de Ciro são quase que um ovo de serpente colocado no seio do PDT por um professor de universidade ianque, desvinculado dos debates internos ao próprio partido. 

A avaliação está completamente equivocada, e basta citar dois exemplos:

Em primeiro lugar, não fosse o repúdio de Ouriques aos escritos de Unger, que ele qualifica de “intelectual de quinta categoria”, teria de reconhecer que concorda com o autor d’O Colonialismo Mental na crítica à social-democracia europeia. 

Mangabeira denuncia o projeto da Nova República, liderado por PT e PSDB e centrados no mito da “excepcionalidade paulista”[4], como escravidão ao modelo da “Suécia Tropical”. Nildo poderia se abraçar ao acadêmico de Harvard nesse ponto quando critica Ciro, acertadamente, de ainda usar esse referencial, como se ele não fosse a construção de uma Plutocracia, que depende, para sua realização, da permanência do Imperialismo [5].

Em segundo lugar, e ainda mais importante, o pedetista defende a criação de uma nova burguesia pelo Estado, já que a velha classe proprietária brasileira caiu no abismo do rentismo e da conciliação com interesses estrangeiros. Nildo, como bom marxista, não se conforma e acusa Gomes de ter caído na esparrela do empreendedorismo “dos emergentes”, vendida por Mangabeira.




Mas há uma diferença muito importante com a visão de Unger sobre um suposto surgimento de uma “classe média evangélica”: a proposta de Ciro se dá nos marcos da Doutrina Social da Igreja e do distributismo, tal como deixado explícito nas páginas de "Projeto Nacional":

Igualmente, o progressismo do século XXI deveria defender a iniciativa privada e o microempreendedor do poder sem limites dos grandes conglomerados e corporações. Da mesma forma, deveríamos defender a democratização e a generalização da propriedade privada, e não sua posse pelo Estado, porque hoje vivemos num mundo em que cidadãos em suas casas podem ser cada vez mais proprietários de bens de produção. Essa também é uma revolução que nossa sociedade está começando a experimentar e que acaba não com o trabalho, mas com os empregos. Em vez da oposição à propriedade privada de alguns bens de produção, devemos lutar é por sua universalização.’’

Sobre o Trabalhismo, escreve Gomes:


Ele é também a materialização brasileira da Doutrina Social da Igreja e tem essa intenção de origem. Considere, por exemplo, este trecho: “É necessário que mercado e Estado ajam de concerto um com o outro e se tornem complementares. O livre mercado pode produzir efeitos benéficos para a coletividade somente em presença de uma organização do Estado que defina e oriente a direção do desenvolvimento econômico, que faça respeitar regras equitativas e transparentes, que intervenha também de modo direto, pelo tempo estritamente necessário, nos casos em que o mercado não consegue obter os resultados de eficiência desejados e quando se trata de traduzir em ato o princípio redistributivo”.25 Poderia ter saído de uma obra do trabalhista Alberto Pasqualini ou de alguma conferência de Keynes, mas é tão somente um excerto da Doutrina Social da Igreja. Essa comunhão entre a luta por justiça social e o cristianismo caracteriza o trabalhismo desde seu início. Ele advoga um modelo político e econômico que equilibra a garantia da propriedade privada com sua função social. Esse equilíbrio se expressa de forma muito feliz na famosa frase de Leonel Brizola: “A propriedade privada é uma coisa tão boa, que a queremos para todos”. Apresenta-se como uma alternativa tanto ao denominado “socialismo real” quanto à tradição econômica liberal. Continua a ser a verdadeira alternativa nacional ao “petucanismo”, a autodenominada “esquerda” democrática, que quando chegou ao poder aderiu ao neoliberalismo com maior ou menor força.’’


Atingimos aqui o cerne da nossa questão:

E evidente que ela não passou desapercebida pelo professor Ouriques. Daí sua declaração de que Ciro está “flertando com o Papa Francisco I”, sua defesa de que os trabalhistas se afastem de qualquer compromisso religioso, e sua avaliação absurda de que a decadência política de Getúlio se iniciou com a aproximação com a Igreja Católica-Romana [6].


Desse modo, Ouriques perde inteiramente a razão ao dizer que “Projeto Nacional” constitui um rompimento com o trabalhismo. Pois o trabalhismo não é apenas marxismo pra brasileiro deseducado, e sim uma tradição política própria, que tem como um de seus fundamentos mais perenes a Doutrina Social da Igreja, tal como defendido não apenas por Vargas, mas também por Pasqualini e João Goulart. 

Todos os momentos políticos capitais do Trabalhismo foram amparados pelos vínculos com os ensinamentos sociais do cristianismo católico-romano, desde a ideologia do Estado Novo, passando pela Consolidação das Leis do Trabalho, até a luta pelas Reformas de Base.

Portanto, diferente do que diz Nildo Ouriques, o livro de Ciro oferece sim um modelo alternativo ao da Nova República. Mas esse modelo não é marxista nem coloca a luta de classes no centro de suas motivações, embora reconheça claramente sua existência. Trata-se de um projeto escorado na mais autêntica e patriótica tradição do Trabalhismo, que remete diretamente à Getúlio e seu escopo de criação de uma Democracia Social. 

É verdade que Ciro não pretende liderar uma revolução, como bem afirma Nildo. Mas o próprio Vargas declarou no início dos anos 1950 que os tempos exigiam agir dentro da ordem. Não se trata, portanto, de novidade ou invenção de Mangabeira Unger também. O que não significa ausência de um horizonte de quebra com a organização social e econômica atual.

O distributismo, com sua exigência de democratização da propriedade privada, sua denúncia do 'rentismo' e do consumismo, fornecem meios para uma verdadeira guinada. Mas ela não será marxista, como os udenistas e os comunistas, cada um à sua maneira, pensavam que seria.

__________________________________________________


[1] Embora negue, o psolista cobra de Ciro um "mea culpa" público por sua participação no Plano Real, o que é de todo irrelevante na medida em que o pedetista critica os fundamentos do governo apátrida de Fernando Henrique Cardoso. De lá para cá, já se passou mais de um quarto de século.

[2] Como já argumentei em outros espaços, o pentecostalismo é lido no Brasil muito mais em continuidade com experiências extáticas e um mentalidade mágica repleta de uma sensibilidade "macumbeira" do que qualquer coisa parecida com o protestantimo tradicional ou mesmo com a rede evangélica ianque.

[3] São formações sócio-culturais com matrizes, bases e eventos fundantes e originários completamente diferentes. Os países mais próximos de nós, evidentemente, são nossos vizinhos sul-americanos. Afirmar uma semelhança profunda do Brasil com os EUA apenas porque temos um território grande, termos sido colonizados por europeus, ou passarmos pela experiência do escravismo é de uma superficialidade algo patética, dada a diferença cabal nesses e em diversos outros processos. Só para ficar nos elementos citados por Unger: o território continental norte-americano foi conquistado a partir de uma expansão conquistadora após a independência, enquanto o Brasil interiorizou o Império português; os colonizadores dos EUA foram anglo-saxões, e não ibéricos, existindo um mundo de diferença entre ambas as sociedades e culturas; o escravismo foi elemento foi estruturante no Brasil do Oiapoque ao Chuí, enquanto nos Estados Unidos só tinha dimensão significativa nos Estados do Sul, e isso abstraindo as imensas distinções entre as relações étnicas ianques e brasileiras.

[4] Ressalto que a análise de Mangabeira está em passo com a que faço há anos nesse e em outros espaços, em que classifico a Nova República de "paulistocentrismo".

[5] Embora seja falsa a análise de Nildo de que Ciro não dê importância ao fenômeno do Imperialismo, é verdade que o pedestista subestima o fenômeno do bolivarianismo.

[6] O imortal Presidente se aproximou do catolicismo-romano ainda nos primeiros anos da década de 1930, quando o próprio trabalhismo ainda era uma ideia e um movimento em construção, se é que podemos considerá-lo mais do que uma semente nesse período.

Um comentário: