quarta-feira, 24 de maio de 2017

O Raio de Zeus, ou: o surgimento de um herói

Em 1997, Gustavo Kuerten levantava pela primeira vez o troféu de Roland Garros -- uma fagulha divina elevou o tennis do catarinense a um patamar inalcançável

Para boa parte do mundo ficou impossível pensar em Roland Garros sem ter a mente invadida pela imagem de um surfista jovial, magro e sempre sorridente, brasileiro de nome alemão.

Gustavo Kuerten possuía apenas 21 anos em 1997. Era o número 67 do ranking da ATP, posição que indicava um futuro promissor no top 100, uma boa carreira, mas que não gerava expectativas desmedidas para o major francês. Apenas um tenista havia conquistado um Grand Slam com ranking mais alto que Guga apresentava então: Mark Edmonson, no Aussie Open de 1976 [em 2001, Goran Ivanisevic se juntaria a ele ao deixar a aposentadoria para levantar o troféu em Wimbledon]. No ano anterior, Guga havia sido eliminado na primeira rodada.

Como um raio lançado à terra por Zeus, anunciando o nascimento dum novo herói, um milagre ocorreu naquela semana, um clique na mente e no corpo do catarinense, fazendo surgir não só um gênio como também uma revolução. Desde sua estreia, Kuerten passou a exibir um tennis hipnotizante. Na terceira rodada, derrotou Thomas Muster, o Rei do saibro, austríaco cujo estilo precedeu em quinze anos o de Rafa Nadal, e que terminou a carreira como mais de 40 títulos na superfície. Muster havia sido campeão em 1995, e fez de tudo, absolutamente tudo, para estancar as ondas inquebrantáveis que o afogavam naquele jogo. Em determinado momento, reclamou em voz alta: ''quem é esse cara? o que ele tá fazendo? Para de dar bola impossível!'' Aquele cara era o sucessor de Thomas como dono inconteste da terra batida.

Muster era incansável na quadra, rápido de pernas, cobrindo todos os ângulos, jogando sempre mais uma bola. O novo Rei, pelo contrário, inventou uma nova forma de atuar naquela superfície: sempre no ataque, pegando a bola por cima, com pancadas retas do fundo de quadra, e dando nascimento a um novo tipo de revés agressivo, seu famoso golpe de backhand na paralela.

A França permaneceu atônita quando o ''manezinho'' passou nas oitavas de final por Medvedev, que decidiria o título em 1999 contra Agassi. Nesse confronto se estabeleceu definitivamente o laço amoroso entre o brasileiro e o público parisiense. Depois de ter começado o quinto e decisivo set perdendo por 3 a 0 , Guga contou com a torcida para virar uma partida quase perdida; e, no momento de seu triunfo, dedicou a vitória aos franceses, que inventaram um novo grito de guerra: ''Alléz, Gugá!''

Mas foi a rodada seguinte que definiu as possibilidades de Kuerten no Aberto da França. Ele enfrentou o então campeão, Yevgeny Kafelnikov. Mais tarde, Guga confessou ter dado o embate por perdido quando o russo fez dois sets a um. Tudo o que queria a partir dali era aproveitar o momento, sua despedida daquelas semanas maravilhosas, que, provavelmente, jamais voltariam a se repetir. Entrou solto e relaxado para o quarto set, desejando apenas gozar de sua última meia hora no torneio. E eis o raio de Zeus, aquela fagulha divina que traz o gênio à tona. O surfista de uniforme colorido atingiu um patamar em seu jogo que tornou o então campeão em mero espectador do que ocorria do outro lado da rede. Venceu nada menos que oito games consecutivos, dando um pneu no russo e estabelecendo a quebra que lhe garantiria presença nas semifinais e o favoritismo para a conquista da taça -- na opinião de ninguém mais, ninguém menos que Bjorn Borg.
 
Guga deita no coração que havia desenhado na Philippe Chatrier após a conquista de seu terceiro título, em 2001, vencendo na final Alex Corretja
O sonho continuou nos dias seguintes, até que o jovem de cabelos desgrenhados conquistasse seu primeiro major em cima do bicampeão Sergi Bruguera. Nos próximos anos, o tennis do brasileiro amadureceria, criando bases para os mágicos anos de 2000/2001, quando se consolidou como principal jogador da ATP, venceu mais dois títulos em Roland Garros [vencendo na final, respectivamente, de Magnus Norman e Alex Corretja], uma Master Cup [na hard court, passando por Pete Sampras e Andre Agassi] e atingiu o posto de número um do ranking. Quando seu jogo evoluía para a dominância da quadra dura [Guga vencera Cincinatti passando por Roddick, Haas, Kafelnikov, Ivanisevic, Henman e Patrick Rafter] de modo a se tornar favorito absoluto para o US Open 2001, seu corpo cobrou os treinos exaustivos, e uma lesão crônica no quadril levou embora suas possibilidades de competir por grandes títulos.

Mesmo assim, nos duros anos que se seguiram, em que persistiu na carreira com dores e entre cirurgias com o objetivo de manter o tennis brasileiro em evidência, os momentos de magia emergiam vez ou outra. Assim foi em 2004, quando disputou a terceira rodada de Roland Garros contra Roger Federer, que já iniciara sua hegemonia sem igual sobre o circuito. E eis o 'clique', a mágica fagulha, que elevava o jogo de Guga sobre o saibro a um patamar capaz de transformar os maiores adversários em espectadores sem reação: 3 a 0 contra o mestre suíço.

Como expresso no gesto inesquecível após sua terceira conquista do troféu de Roland Garros-- o coração que desenhou na Philippe Chatrier, e em que deitou pra simbolizar sua ligação com o público --, o 'manezinho da Ilha' nunca mais deixou o coração dos brasileiros, dos amantes do tennis, do público francês, e se tornou reconhecido e lembrado como um dos maiores saibristas que já existiram.

Nenhum comentário:

Postar um comentário