Em 1997, Gustavo Kuerten levantava pela primeira vez o troféu de Roland Garros -- uma fagulha divina elevou o tennis do catarinense a um patamar inalcançável |
Para boa
parte do mundo ficou impossível pensar em Roland Garros sem ter a mente
invadida pela imagem de um surfista jovial, magro e sempre sorridente,
brasileiro de nome alemão.
Gustavo Kuerten possuía apenas 21 anos em
1997. Era o número 67 do ranking da ATP, posição que indicava um futuro
promissor no top 100, uma boa carreira, mas que não gerava expectativas
desmedidas para o major francês. Apenas um tenista havia conquistado um Grand
Slam com ranking mais alto que Guga apresentava então: Mark Edmonson, no Aussie
Open de 1976 [em 2001, Goran Ivanisevic se juntaria a ele ao deixar a
aposentadoria para levantar o troféu em Wimbledon]. No ano anterior, Guga havia
sido eliminado na primeira rodada.
Como um raio lançado à terra por Zeus,
anunciando o nascimento dum novo herói, um milagre ocorreu naquela semana, um
clique na mente e no corpo do catarinense, fazendo surgir não só um gênio como
também uma revolução. Desde sua estreia, Kuerten passou a exibir um tennis
hipnotizante. Na terceira rodada, derrotou Thomas Muster, o Rei do saibro,
austríaco cujo estilo precedeu em quinze anos o de Rafa Nadal, e que terminou a
carreira como mais de 40 títulos na superfície. Muster havia sido campeão em
1995, e fez de tudo, absolutamente tudo, para estancar as ondas inquebrantáveis
que o afogavam naquele jogo. Em determinado momento, reclamou em voz alta:
''quem é esse cara? o que ele tá fazendo? Para de dar bola impossível!'' Aquele
cara era o sucessor de Thomas como dono inconteste da terra batida.
Muster era incansável na quadra, rápido de
pernas, cobrindo todos os ângulos, jogando sempre mais uma bola. O novo Rei,
pelo contrário, inventou uma nova forma de atuar naquela superfície: sempre no
ataque, pegando a bola por cima, com pancadas retas do fundo de quadra, e dando
nascimento a um novo tipo de revés agressivo, seu famoso golpe de backhand na
paralela.
A França permaneceu atônita quando o
''manezinho'' passou nas oitavas de final por Medvedev, que decidiria o título
em 1999 contra Agassi. Nesse confronto se estabeleceu definitivamente o laço
amoroso entre o brasileiro e o público parisiense. Depois de ter começado o
quinto e decisivo set perdendo por 3 a 0 , Guga contou com a torcida para virar
uma partida quase perdida; e, no momento de seu triunfo, dedicou a vitória aos
franceses, que inventaram um novo grito de guerra: ''Alléz, Gugá!''
Mas foi a rodada seguinte que definiu as
possibilidades de Kuerten no Aberto da França. Ele enfrentou o então campeão,
Yevgeny Kafelnikov. Mais tarde, Guga confessou ter dado o embate por perdido
quando o russo fez dois sets a um. Tudo o que queria a partir dali era
aproveitar o momento, sua despedida daquelas semanas maravilhosas, que,
provavelmente, jamais voltariam a se repetir. Entrou solto e relaxado para o
quarto set, desejando apenas gozar de sua última meia hora no torneio. E eis o
raio de Zeus, aquela fagulha divina que traz o gênio à tona. O surfista de
uniforme colorido atingiu um patamar em seu jogo que tornou o então campeão em
mero espectador do que ocorria do outro lado da rede. Venceu nada menos que
oito games consecutivos, dando um pneu no russo e estabelecendo a quebra que
lhe garantiria presença nas semifinais e o favoritismo para a conquista da taça
-- na opinião de ninguém mais, ninguém menos que Bjorn Borg.
Guga deita no coração que havia desenhado na Philippe Chatrier após a conquista de seu terceiro título, em 2001, vencendo na final Alex Corretja |
O sonho continuou nos dias seguintes, até que
o jovem de cabelos desgrenhados conquistasse seu primeiro major em cima do
bicampeão Sergi Bruguera. Nos próximos anos, o tennis do brasileiro
amadureceria, criando bases para os mágicos anos de 2000/2001, quando se
consolidou como principal jogador da ATP, venceu mais dois títulos em Roland
Garros [vencendo na final, respectivamente, de Magnus Norman e Alex Corretja],
uma Master Cup [na hard court, passando por Pete Sampras e Andre Agassi] e
atingiu o posto de número um do ranking. Quando seu jogo evoluía para a
dominância da quadra dura [Guga vencera Cincinatti passando por Roddick, Haas,
Kafelnikov, Ivanisevic, Henman e Patrick Rafter] de modo a se tornar favorito
absoluto para o US Open 2001, seu corpo cobrou os treinos exaustivos, e uma
lesão crônica no quadril levou embora suas possibilidades de competir por
grandes títulos.
Mesmo assim, nos duros anos que se seguiram,
em que persistiu na carreira com dores e entre cirurgias com o objetivo de
manter o tennis brasileiro em evidência, os momentos de magia emergiam vez ou
outra. Assim foi em 2004, quando disputou a terceira rodada de Roland Garros
contra Roger Federer, que já iniciara sua hegemonia sem igual sobre o circuito.
E eis o 'clique', a mágica fagulha, que elevava o jogo de Guga sobre o saibro a
um patamar capaz de transformar os maiores adversários em espectadores sem
reação: 3 a 0 contra o mestre suíço.
Como expresso no gesto inesquecível após sua
terceira conquista do troféu de Roland Garros-- o coração que desenhou na
Philippe Chatrier, e em que deitou pra simbolizar sua ligação com o público --,
o 'manezinho da Ilha' nunca mais deixou o coração dos brasileiros, dos amantes
do tennis, do público francês, e se tornou reconhecido e lembrado como um dos
maiores saibristas que já existiram.
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