domingo, 14 de junho de 2015

Tratado sobre a Práxis -- Evágrio Pôntico IV



Quarta postagem da série dedicada a traduções do ''Tratado sobre a Práxis'', do Abba Evágrio Pôntico. A tipologia das paixões de Evágrio -- que acaba por ser também uma demonologia -- está vinculada à sua psicologia e antropologia. A alma possui uma dimensão passional e uma dimensão noética. A dimensão passional é constituída pela parte erótica, também chamada no Ocidente de concupiscível, e pela parte irascível ou tímica. Evágrio chama de paixões as operações das partes erótica e tímica, ou seja, do conjunto passional da alma. Essas operações são, no homem decaído, contrárias à natureza, se conformando a oito vícios gerais [ou paixões, agora em um sentido negativo], também chamados de logismoi [ou pensamentos apaixonados]: a gula, a luxúria, a avareza, a tristeza, a acídia, a ira, a vanglória e o orgulho. A vida prática [praxis] consiste no esvaziamento dessas paixões ou vícios, e sua substituição pelas virtudes, frutos do funcionamento conforme a natureza dessas operações psicossomáticas [1]. A conquista da virtude é chamada por Evágrio de apatheia, ou impassibilidade, conclusão da práxis necessária ao estágio da gnose, quando então o asceta purifica a dimensão intelectiva, o Nous. A vida prática é, portanto, uma preparação para a vida contemplativa ou gnóstica, que terá suas próprias barreiras, tentações e vícios [2]. Nessa série de postagens estamos nos dedicando à práxis, ou seja, à purificação e retificação dos elementos passionais da alma, que são a parte erótica e irascível do homem. Nas passagens abaixo, Abba Evágrio descreve alguns aspectos fundamentais da causação dos logismoi.




34  Daquelas coisas das quais temos memórias apaixonadas, estas mesmas coisas aceitamos como objetos de paixão. E tantos quantos são os objetos que aceitamos com paixão, destes objetos teremos memórias apaixonadas [3]. Assim, aquele que conquistou os demônios que estão operando despreza o que é realizado por eles [4]. Pois a guerra imaterial é mais amarga do que a guerra realizada nos objetos materiais [5].

35  As paixões da alma tem sua ocasião ou pontos de partida nos homens; as paixões do corpo, no corpo. E a continência corta as paixões do corpo, enquanto a caridade espiritual corta aquelas da alma [6].



36  Aqueles [demônios] que governam as paixões da alma persistem até a morte; aqueles que governam as paixões do corpo se retiram mais rapidamente. E em certo sentido os demais demônios são como o sol que se levanta e se põe, agarrando alguma parte da alma; o [demônio] do meio dia [acídia], por outro lado, tem o costume de envolver toda a alma e de sufocar o Nous. [7] Assim, a vida eremítica se torna doce após o esvaziamento das paixões; porque então as memórias são simples memórias, e a luta não mais prepara o monge para a batalha mas para a própria contemplação [8].

37  É necessário observar se são as ideias [ennoia] que colocam as paixões em movimento; ou se as paixões [colocam em movimento] as ideias. Porque, de um lado, alguns tem a primeira opinião; por outro lado, alguns tem a segunda.




38  É da natureza das paixões serem colocadas em movimento pelos sentidos. E se a caridade e a continência estiverem presentes, as paixões não serão movimentadas; se estiverem ausentes, as paixões serão movimentadas. Mais do que a parte apetitiva [erótica ou desejante] da alma, o temperamento [parte irascível da alma] requer remédios, e, por causa disso, a caridade é chamada de ''grande'' [1 Cor 13:13], pois é a rédea do temperamento. Ela mesma [a caridade] é chamada por aquele santo, Moisés, de ''guerreiro que combate a serpente'', em sua Física [Lev 11:22]. [9]






39  A alma tem o hábito de se incendiar em direção a logismoi como consequência do mau odor que existe entre os demônios; quando da aproximação deles a alma é capturada, tendo sido conformada pela paixão que corresponde ao demônio que a perturba [10].






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[1] A Impassibilidade, portanto, não é considerada como o simples esvaziamento ou abandono dessas operações da alma, confundidas com as paixões em um sentido negativo. Ela não é a morte da psique, mas seu redirecionamento, sua cura, seu funcionamento de modo reto com a natureza, entendida aqui como o mundo edênico saído das mãos de Deus e perdido com a Queda. O critério usado por Evágrio para a impassibilidade é o cumprimento dos mandamentos divinos, tanto em pensamentos quanto em atos. Algo que só é possível, explica ele, pela manutenção da verdadeira fé e da sã doutrina.

[2] Noutras passagens, Evágrio deixa claro que essa divisão entre a vida prática e a contemplativa não é esquemática. Ninguém alcança em vida uma impassibilidade absoluta que lhe garanta a 'impecabilidade', para só depois se iniciar na gnose ou contemplação dos logoi dos entes visíveis e invisíveis. A partir de determinado ponto da ascese há uma simultaneidade entre a práxis e a gnose. Quanto mais purificado das paixões, mais o asceta pode contemplar as essências criadas. A própria gnose tem um papel purificador e curativo para o conjunto da alma, de modo que a santidade não pode ser alcançada sem ela. Determinado grau de gnose faz, inclusive, que o asceta volte a se 'nutrir' ou 'alimentar' da própria contemplação, um estado que é vivenciado pelos anjos.

[3] Em outras passagens, Evágrio explica que as paixões se voltam para a consecução do prazer sensorial e que tem sua raiz no 'amor-próprio'. Elas também podem ser movidas pelo ataque dos demônios ou, como se deixa claro nesse trecho, por memórias apaixonadas. Quando estas lembranças retornam à mente, a paixão correspondente é acionada. De forma semelhante, ao aceitarmos na mente a ideia de um objeto percebido de modo apaixonado, vamos gerar sobre ele memórias passionais, que, mais tarde e em outras ocasiões, voltarão à mente e reiniciarão a excitação da paixão correspondente.

[4] Os demônios excitam as paixões segundo o explicado no trecho 39, exposto mais adiante. A maneira de conquistar os demônios e vencer a guerra imaterial é o esvaziamento dos vícios ou logismoi das operações da alma e sua substituição pelas virtudes correspondentes. Uma reorientação, enfim, das atividades psicossomáticas.

[5] A guerra 'material' é o cumprimento dos mandamentos divinos no comportamento exterior. Essa guerra não inclui a disposição interior e mental do cristão, e, desse modo, apesar de muito difícil, não é tão amarga ou pesada quanto a guerra imaterial, que envolve o controle dos pensamentos, a batalha contra os demônios e a luta pela retificação do ordenamento da psique. 

[6] Temos aqui outro aspecto da tipologia das paixões de Abba Evágrio, a divisão entre paixões do corpo e paixões da alma. As paixões com raízes no corpo são a gula e a luxúria, dizem respeito à parte erótica da psique, e devem ser tratadas pelo jejum e pela castidade. As paixões com raízes na alma, ou no homem enquanto homem, são a avareza, a tristeza, a acídia, a ira, a vanglória e o orgulho, e estão associadas com a parte irascível [tímica] da psique. Elas devem ser tratadas por meio da caridade espiritual, que assume o sentido de humildade nos escritos de Evágrio e também no dos Santos Padres. Santo Antão vai ensinar que o diabo é derrotado pela humildade. 

[7] Os demônios se relacionam de forma específica com uma paixão, se associando exclusivamente a essa esfera de atuação. A exceção é o demônio da acídia, que age sobre o conjunto da alma.

[8] Após a relativa impassibilidade -- aquela possível de ser alcançada pelo homem ainda em vida e que consiste não só no esvaziamento das paixões mas na sua retificação em operações conforme a natureza, ou seja, na passagem do vício e do pecado para a virtude -- a praxis se une à vida contemplativa, e o cristão se torna um gnóstico. Nesse estágio, as batalhas  com os demônios prosseguem. Não somente porque os demônios que combatem a alma persistem até a morte como também a gnose tem seus próprios perigos que, embora não sejam vícios morais, são 'vícios intelectuais', provocados pela delusão e a ignorância. O estágio da gnose não é abordado diretamente no ''Tratado sobre a Práxis'', mas em outras obras. Basta dizer que o cristão gnóstico adentra a contemplação dos logoi das coisas criadas. Em um grau ainda mais elevado de contemplação, ele vem a conhecer os poderes incorpóreos, ou anjos, e inclusive os logoi angélicos. O mais elevado nível de contemplação é chamado por Evágrio de Teologia, e diz respeito à 'gnose essencial', a gnose do próprio Deus.

[9] Dessa maneira Evágrio responde a questão 37. Mesmo quando excitada pelos demônios ou por memórias apaixonadas, as paixões são movimentadas por um chamado pelo prazer dos sentidos, entendidos aqui em um sentido amplo -- como prazer carnal e mundano. Isso é verdadeiro inclusive com relação às paixões da alma. Esse chamado rumo ao prazer dos sentidos, ou à satisfação da carne por oposição à do espírito, não exclui a ideia de que o amor próprio está na raiz das paixões da alma. Daí porque a humildade e a caridade espiritual, ao reorientarem a pessoa para o amor ao Outro, se tornam o remédio eficaz contra as doenças da parte tímica da psique. No caso das paixões do corpo, o remédio é o jejum e a castidade, que levam o homem da auto-indulgência para o auto-controle.

[10] Cada demônio possui uma energia ou função [ergon] que lhe é específica, considerada um 'mau odor' de ordem espiritual. É uma operação associada a uma paixão, e que a 'incendeia' ou 'excita' quando dela se aproxima. Nesse momento, o demônio 'semeia' ideias, conceitos e representações mentais no Nous que, ao fazerem uso das memórias apaixonadas do homem, vão intoxicá-lo rumo ao pecado. Daí porque o estágio superior e mais interno da guerra imaterial diz respeito ao combate aos logismoi, às idéias que chegam ao Nous. O campo de batalha é inclusive anterior à faculdade da imaginação, está na própria origem da formação das representações mentais [ennoia]. 

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