sábado, 26 de julho de 2025

A Receita de bolo de Dugin, ou: a manipulação imperialista do conceito de Tradição

 "Putin é o líder mais pró-Ocidente e pró-liberal que vocês possam imaginar. O único momento em que isso é diferente está em sua devoção à soberania russa, e ainda assim no estilo clássico do realismo ocidental em Relações Internacionais. Ele é pró-capitalista e pró-globalista, e liberal-democrata".


O "sincericídio do guru"



A obra de Alexander Dugin não passa, toda ela, da aplicação de reducionismos maniqueístas toscos para fins de propaganda geopolítica. Em termos teóricos, ela não resiste a uma análise de três minutos.


A receita de bolo é a seguinte:

i. tratar de forma maniqueísta o par Tradição vs Anti-Tradição descrito na obra de autores da ''escola tradicionalista'';

ii. reduzir toda a complexidade de teorias e fenômenos históricos e sociais a pares dicotômicos, mesmo quando não o são, usando para isso confusões terminológicas explícitas;

iii. encaixar, em verdadeira tour de force, os pares dicotômicos construídos no ponto ii. na dualidade Tradição vs Anti-Tradição [tratada de forma maniqueísta, lembrem-se];

iv. vincular o polo "Tradição" sempre ao Estado Russo e seus interesses geopolíticos, e o polo "Anti-Tradição" aos obstáculos à ação imperial russa.


Um exemplo claro da aplicação da receita é quanto aos debates geopolíticos e identitários que se desenvolveram na Rússia a partir do século XIX, e que dividiram seus intelectuais em europeístas ['ocidentalistas'], eslavófilos, e eurasianos.

Em termos estritamente geopolíticos, esses posicionamentos são incompatíveis. Se eurasianos defendem o espraiamento do Estado Russo para o "exterior próximo" não só do leste europeu e dos Bálcãs, mas também para o Cáucaso e Ásia Central, os eslavófilos tendem a ver com maus olhos este tipo de tendência.

Depois da revolução, muitos eurasianos aderiram, felizes e contentes, ao Stalinismo, percebendo nele a construção do Estado euroasiático capaz de se impor à Europa. Basta apontar isso para provar que esse debate não está intrinsecamente ligado a qualquer dualidade Tradição vs Anti-Tradição.

Com o esfacelamento do bolchevismo, parte considerável da dissidência russa adotou posturas "neo-eurasianas" como forma de defender a reconstrução de seu poder geopolítico como força concorrente à Europa [em vez de simplesmente integrada e subordinada a ela]. Nesse sentido, o comunista Zyuganov era tão neo-eurasianista quanto outros ideólogos na outra ponta o espectro político ideológico.

O neo-eurasianismo de Dugin, desenvolvido em parceria com Limonov, não é exatamente eurasianismo, mas um frankenstein ideológico criado para atrair, ao mesmo tempo, o excepcionalismo étnico de raiz eslavófila e posições anti-capitalistas, tudo cimentado na ideia neo-imperialista de reconstrução do espaço geopolítico russo em seu sentido mais amplo.

Já apontei que esse tipo de reconstrução geopolítica não está necessariamente atrelada a parâmetros tradicionais [ou tradicionalistas]. Mas Dugin vende para a patuleia a ideia de que essa política é a própria epítome da ideia de Tradição.

Se Putin adota uma posição de confronto com a OTAN, então ele se torna, imediatamente, um símbolo solar encarnado que peita corajosamente o anticristo. É uma forma erística de pressionar Putin para posturas geopolíticas mais condizentes com o nacionalismo expansionista russo.

Mas dizer que Putin é "solar" só porque defende o espaço geopolítico russo [seja ele mais ou menos amplo, de acordo com a ideologia de plantão], é o mesmo que tornar Charles de Gaulle, Mao Tsé Tsung, ou Fidel Castro agentes da Tradição só porque confrontam os EUA.

Ou seja, pura papagaiada sem nexo pra enganar incautos. Qualquer população tende a defender sua própria independência. Qualquer potência tende a defender suas posições estratégicas. A Rússia, a França, a Inglaterra, a China, ou qualquer outra.

Isso não tem a ver com o parâmetro Tradição vs Anti-Tradição, a não ser na imaginação desenfreada do "pau pra toda obra", que é a militância dissidente sob orientação do "guru".

Como bem analisou o professor Angêlo Segrillo, Putin é um ocidentalista moderado. Ou, mais especificamente, um gosudarstvennik. Um defensor dos interesses do Estado. É nesse sentido que ele se contrapõe às demais potências.

Qualquer dúvida, só olhar para as instituições e para a sociedade russa. Putin é só um Presidente que governa um país ocidenalizado, segundo o figurino básico do modelo, dos princípios, e dos valores do próprio Ocidente. Temperados com o autoritarismo da cultura política russa, sem dúvida, mas sem beber de ideias do Tradicionalismo.

Já disse antes e repito: o Estado inglês é muito mais tradicional do que o russo. Quem quiser olhar para um governante em moldes tradicionais, vai olhar para o Rei Charles, e não para o plebeu Putin. Evidente que isso não torna a geopolítica inglesa menos execrável. Mas é justamente esse o ponto. O ponto em que vocês, russófilos, foram enganados.

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