Como esperado, meu texto sobre a estratégia
geopolítica de “Foundations of
Geopolitics”, de autoria de Alexander Dugin e lançado em 1997, suscitou
comentários diversos. Resumindo-os: entre muito interesse e elogios, surgiram
também contestações. Não exatamente à exposição das ideias do livro, mas à
possibilidade de que o russo ainda mantivesse aquela perspectiva.
Ora, na própria postagem me adiantei à alegação
de que Dugin teria mudado substancialmente de perspectiva geopolítica ao
acrescentar que ele não havia lançado nenhuma obra desde então que tivesse a
mesma abrangência e escopo, e que negasse as principais estruturas de “Foundations”. Não surpreende, portanto,
que ninguém tenha citado uma obra sequer deste teor e que corrigisse as linhas
gerais sustentadas nos anos 1990. A única
citada foi “Teoria do Mundo Multipolar” [lançado pela IAEG em Lisboa, em 2012],
o que me causou certo espanto.
Explico: o livro em questão não trata de
Geopolítica. É, na verdade, um preâmbulo de uma teoria de Relações Internacionais
adequada à multipolaridade defendida por Dugin. Mais ainda, é publicada como
a primeira parte de um estudo sobre o mundo multipolar, cujos temas
geopolíticos seriam abordados no volume seguinte, como diz o próprio autor na
conclusão.
“Nesta
primeira parte foi importante constituir um primeiro glossário de termos
empregues na TMM, relacionando-o no contexto das RI como ciência específica e
já bem estabelecida. [...] Na segunda
parte a teoria do multipolarismo e os seus principais pontos lidarão com a
geopolítica, cujas referências nos abstivemos, deliberadamente, de efetuar
neste primeiro volume, de modo a preservar a pureza terminológica e
cingir-nos às delimitações das RI como disciplina independente. O emprego da
metodologia geopolítica irá auxiliar a uma compreensão mais ampla e profunda do multipolarismo como fenômeno e como projeto.”
Não que “Teoria do Mundo Multipolar” conteste de
maneira essencial os pontos que abordei no texto. É que simplesmente não trata diretamente do assunto, se limitando a contribuir para a teorização do Mundo Mutipolar, mas
sem apontar a estratégia que nos levaria até ele e que forma tomaria. Para
isto, temos de nos reportar à obra seguinte, “Geopolítica do Mundo Multipolar”,
cuja 1ª edição no Brasil é também de 2012.
Antes de continuar, ressalto que alguns dos que
criticaram o meu texto não tinham como não saber disto. O que levanta algumas
questões. A tentativa de barrar qualquer avaliação crítica ao pensamento de
Dugin com o argumento de que “ele lança um artigo por dia” parece cópia da
tática usada por alguns discípulos de Olavo de Carvalho, que repetiam a
invectiva de que a filosofia do guru só será “compreendida” quando forem
publicadas todas as apostilas e textos que estão dispersos entre os alunos do "filósofo da Virgínia". Mas também nisto Dugin difere de Olavo. Suas posições não
são nenhum “segredo de Estado” ou ensinamento esotérico só destinado aos
iniciados. Há 15 anos, quando comecei os estudos sobre este autor, a maior
parte de sua obra não tinha ainda tradução para línguas ocidentais. Não é a
situação atual. Se há alguma intenção, e espero sinceramente estar enganado
quanto a isto, de criar uma nuvem de mistério e confusão sobre a obra de Dugin, alerto que será esforço fadado ao mais retumbante fracasso.
Vamos explorar então obras mais recentes do
filósofo e geopolítico russo para averiguar se ele mudou a substância de seu pensamento em
relação a “Foundations of Geopolitics” e, em caso afirmativo, o quanto o fez. A exposição foi desenhada da seguinte maneira: na primeira parte, trato de temas esotéricos e tradicionalistas sem os quais não compreende a geopolítica do autor; na segunda, descrevo, em linhas bastante gerais, como Dugin aplica sua versão especial de tradicionalismo à esfera propriamente geopolítica, e a função da Quarta Teoria Política quanto a este empreendimento específico; a terceira parte destaca o papel da Rússia no pensamento geopolítico do filósofo e do movimento eurasiano; a quarta é uma exposição muito breve de algumas das estratégias elaboradas para a conquista do objetivo, bem como a apresentação de um modelo concreto de mundo multipolar proposto pelo autor; por fim, minhas considerações finais sobre as questões levantadas.
Além de "Foundations of Geopolitics", de 1997, e de "Filosofia do Tradicionalismo", de 2002, nenhum dos dois publicado no Brasil, vou citar trechos das seguintes obras de Dugin:
- "Teoria do Mundo Multipolar", Lisboa, 2012
- "Geopolítica do Mundo Multipolar", Curitiba, 2012
- "Eurasian Mission", Londres, 2014
- "The Last War of the World Island. The Geopolitics of Contemporary Russia", Londres, 2015
- "The Rise of the Fourth Political Theory", Londres, 2017
Parece provocação chamar de Apóstolo da Bipolaridade um autor que se diz comprometido com a criação de um mundo multipolar. E, no entanto, este é o significado mais profundo das exposições de Dugin. Ele vê a Geopolítica com os olhos de um esoterista talhado pelos ensinamentos de Guénon e Evola, e por décadas de debates e práticas no Círculo de Yuzhinsky. A Geopolítica seria uma forma de expor verdades tradicionais, permitindo transmitir ao homem moderno alguns princípios de ordem simbólica e ontológica.
Logo após a
invasão à Ucrânia, em fevereiro deste ano, Dugin concedeu entrevista em que
praticamente reafirmou ideias de seu livro “Filosofia do Tradicionalismo”, de
2002: a Tradição é antes de tudo uma estrutura de linguagem, uma gramática, não
somente um discurso. Como tal, ela se torna incompreensível para outros que
percebem, pensam e discursam em outra linguagem, a moderna. Mas como a
linguagem moderna contém resquícios da linguagem da Tradição, é possível
mobilizá-los para iniciar um tipo de comunicação que subverta a própria
mentalidade moderna. Em “Foundations”, ele explica que a Geopolítica faria
parte do conjunto principal destes “resquícios”, e assim, ainda segundo ele, uma ponte
direta entre o mundo atual e o da Tradição, dada sua proximidade com a
Geografia Sagrada.
Quando Dugin declara que a lei básica, estrutural e inescapável da Geopolítica é a dicotomia Terra vs Mar, devemos ver nisto não só uma descrição do confronto entre poderes continentais e marítimos, entre talassocracias e telurocracias, nem ter em mente apenas a “filosofia da História” de Schmitt e Mackinder. É tudo isto, mas também uma suposta dicotomia de raiz metafísica entre dois poderes e tendências espirituais, que se refletem não só na Geopolítica mas em todas as áreas fundamentais do mundo criado. Terra contra Mar é o confronto também entre energia masculina e feminina, forma e substância, espírito e matéria, sol e lua, deuses olímpicos e ctônicos, holismo e individualismo, agência e passividade, linguagem tradicional e moderna; e, de modo mais geral, entre Tradição e Anti-Tradição.
Este dualismo, manifesto em todos os níveis da existência, se resolve sempre com a predominância de um dos pólos em disputa [A vida é uma guerra, concepção da "varna" Ksatryia, segundo o tradicionalismo]: o domínio do pólo ativo ou masculino, identificado ao Espírito, leva a uma direção ascendente, rumo à transcendência e à Ideia [em um sentido neoplatônico]; o domínio do pólo passivo, identificado com a substância, a uma direção
descendente, rumo à dissolução na matéria [as forças do Caos].
Olhando a Geografia Sagrada por estas lentes, e mobilizando conceitos presentes na obra de René Guénon, Dugin aplica a mesma dualidade ao mito da Hiperbórea, suposto continente perdido da Tradição Primordial, e representada pelo Pólo Norte; e ao mito da Atlântida, representada pelo Oeste. E desse modo, dá novo salto ao transpor estes temas para a análise geopolítica. A “Tradição Primordial” [Hiperbórea] estaria inscrita física, étnica e culturalmente na Heartland [Coração Continental] da Ilha-Mundo [Eurásia]. Já a Atlântida estaria inscrita fisicamente do “outro lado do Oceano”, terra que era vetada aos europeus por fazer referência a um infra-mundo, como veremos mais para frente.
O continente americano, que “emerge”
com as Grandes Navegações, processo que segundo MacKinder e Schmitt estabelece uma
mudança capital na História e permite a formação de uma Talassocracia completa
e global – que Dugin associa à Idade das Trevas e ao tempo final da batalha contra o Anticristo --, seria esfera de ação de forças
caóticas e satânicas; ou ainda, uma tentativa de reviver a “tradição atlante” e fazer guerra à Terra e a tudo o que ela representa. Desnecessário
apontar que a Rússia é, para Dugin, a manifestação atual da Hiperbórea e da Tradição, enquanto os EUA são a Nova Atlântida. E assim, da bipolaridade
metafísica chegamos a uma bipolaridade geopolítica.
Antes de continuar, um pequeno comentário. Toda
esta ordem de ideias, que para muitos pode parecer simplesmente delirante, está
explícita nas obras de Dugin. Ele as proclama do alto dos
telhados. Seria cansativo citar as inúmeras passagens em que o filósofo se
refere a este esquema. Basta reportar uma passagem de “Rise of the Fourth
Political Theory”, publicado em Londres em 2017 como segundo volume ou
continuação da obra capital “A Quarta Teoria Política”. Depois de elencar aspectos da Geografia Sagrada do Metafísico Persa Yahia ibn Habash Suhrawardi,
o russo os usa para explicar sua visão geopolítica. A Europa é considerada o Oeste, o “lugar
da entropia total”, que só pode ser inteiramente conhecido por meio da demonologia. A
possibilidade da Europa ser integrada ao Leste [símbolo da Tradição nos tempos atuais] estaria num ato de amor que só pode
ser realizado pela Rússia, e que seria comparável à etapa iniciática da descida
aos Infernos para a salvação das almas perdidas. [um tema mítico presente no
Cristianismo.] Ora, nesta aplicação geopolítica duginiana, o continente
americano não é comparável sequer ao inferno. Está
“além do Oeste”, fora do Mapa Ontológico do Universo, tal como este é descrito por Suhrawardi.
“Em seu tempo, a civilização antiga construiu duas colunas no Estreito de Gibraltar, em que estava inscrito Nec plus ultra, que significa “nada há além”. “Não há necessidade de prosseguir” estava inscrito nestes pilares. Quem tentasse, se arrependeria. E enquanto estas colunas protegeram a humanidade, os portões do Oeste ontológica permaneceram selados; fechados pelas inscrições, pelas duas colunas, todas as coisas iam mais ou menos bem. No entanto, alguém desprezível rastejou através delas. E quando o fez, quebrou o selo ontológico fundamental. Vocês sabem o que o cifrão [do dólar] significa? As duas colunas de Hércules, que nas representações antigas eram circundadas por uma fita na forma da letra ‘S’, com o subscrito “proibido ir além destas colunas”. Mas no dólar está escrito não Nec Plus Ultra e sim plus ultra. “Mais Além” está escrito ali, é permitido, e hoje o dólar significa um movimento para além destas colunas, para o interior da zona proibida, para o Oeste Distante [‘Far West’], para o Atlântico. Isto significa que Leviatã, o Monstro do Oceano, que foi mantido preso por um longo tempo, está livre das redes antigas. E quando os navios de Colombo e outros aventureiros europeus rumaram na direção do Oceano Atlântico, com este gesto ritual demoliram os grilhões que prendiam Leviatã, e Leviatã iniciou sua rebelião.” [Capítulo 6]
A terminologia é muito óbvia: As Grandes
Navegações violam um interdito, e a Descoberta da América tem o sentido da
libertação de Satanás de sua prisão milenar para o confronto escatológico final
dos últimos dias. Esta linha de raciocínio vai permitir a Dugin remontar a
bipolaridade geopolítica.
A aplicação duginiana da bipolaridade metafísica conduz a uma estrita bipolaridade geopolítica. A afirmação pode parecer estranha, já que em “Teoria do Mundo Multipolar” o filósofo afirma a impossibilidade de um sistema internacional bipolar a esta altura da História. Alguns podem se confundir com esta declaração, e imaginar uma mudança brusca de perspectiva em relação a “Foundations”. Mas, na verdade, Dugin está repetindo a explicação do fim dos anos 1990, embora de maneira mais sutil e detalhada. Ele falava da necessidade de uma NOVA bipolaridade, diferente daquela da Guerra Fria, que julga ser impossível após o colapso soviético. O sistema internacional se sustentava então a partir de um confronto de ideologias vencedoras da Segunda Guerra Mundial, o liberalismo e o marxismo. Com a derrota do Marxismo no fim dos anos 1980, o confronto ideológico contemporâneo se esvaneceu. O mundo vive sob hegemonia liberal, que se entranhou de tal maneira a se tornar o senso comum fora do qual nada mais pode ser dito.
Ao falar de “hegemonia liberal”, Dugin pretende, no fundo, se referir à “hegemonia do Mar” ou da Modernidade. Eis o sentido principal da denúncia à Unipolaridade. Caso o sistema
internacional fosse construído em torno de múltiplos
pólos decisórios estatais sem que esta hegemonia liberal fosse rompida, ele continuaria unipolar segundo o livro “Teoria do Mundo Multipolar”. Para Dugin, derrubar a unipolaridade é destruir também a dominação intelectual, cultural e filosófica do Ocidente:
“O
mundo multipolar é uma alternativa radical ao mundo unipolar (que existe de
facto na actual situação) dado que insiste na presença de uns quantos centros
decisores independentes a nível global. [...] Estes centros decisores não devem
aceitar 'sine qua non' o universalismo dos padrões, normas e valores ocidentais
(democracia, liberalismo, livre mercado, parlamentarismo, direitos humanos,
individualismo, cosmopolitismo etc.) e devem ser totalmente independentes da
hegemonia espiritual do Ocidente.”
[Preâmbulo]
Não é qualquer multipolaridade que interessa a Dugin, mas aquela que afirme o poder da Terra contra o Mar.
Ora, aqui surge um problema. Para o filósofo
russo, a Terra é naturalmente “múltipla” em termos ideológicos, culturais e
civilizacionais. Embora mobilize conceitos de Samuel Huntington, Dugin está, na verdade, aplicando mais uma vez, e à sua
maneira, ideias de René Guénon. Em obras como “A Crise do Mundo Moderno”, “Oriente e Ocidente”, e “Introdução Geral ao
Estudo das Doutrinas Hindus”, Guénon aponta que a Tradição Primordial se
expressa em uma multiplicidade de formas tradicionais, e estas, por sua vez,
nutrem diferentes civilizações, que podem se consideradas como tais
justamente por se vincularem aos “princípios metafísicos”. Já o Ocidente, como
pseudo-universalismo anti-tradicional desconectado destes mesmos princípios, se
declara como a única civilização existente, a realização teleológica da
história humana, para a qual todas as demais culturas e povos devem convergir,
e segundo a qual todos os demais povos devem ser avaliados e julgados. Usando a terminologia
duginiana, o Mar é a liquefação do mundo, sua homogeneização, o igualitarismo
absoluto, bem diferente da afirmação das formas ideais possibilitadas pela
Terra.
O Mar, o Ocidente, o Liberalismo, é dissolução na matéria e na uniformidade. A Terra é a conquista de uma forma particular que reflita uma Ideia Transcendente e, portanto, verdadeiramente Universal. Daí a necessidade premente de propor uma estratégia que unifique os poderes telurocráticos ou continentais para uma guerra contra o Mar.
Dugin nega a
antiga bipolaridade porque pensa que a guerra dos continentes [Hiperbórea vs Atlântida] não tem como continuar através de um
conflito ideológico [que, no fundo, é uma linguagem moderna] nem de
embates entre Estados Nacionais [que também fazem parte da Modernidade, e por
isto devem ser deixados para trás]. O único terreno que pode fornecer unidade
aos poderes telurocráticos para se oporem à hegemonia do Mar é o da
Geopolítica. Aquela ciência, recordemos, que está fundada na lei férrea do
confronto entre Terra e Mar, e na qual Dugin projeta suas noções sobre a Geografia Sagrada. Ele afirma em “Geopolítica do Mundo
Multipolar”:
“O Multipolarismo não se
opõe à monopolaridade da posição de uma ideologia única, que poderia pretender
ser um segundo polo, mas ele o faz da posição de muitas ideologias, de uma
plenitude de culturas, visões-de-mundo e religiões que (cada uma por suas
próprias razões), não têm nada em comum com o capitalismo liberal do Ocidente.
Numa situação onde o Mar possui um aspecto ideológico unificado (apesar de
sempre se voltar para ideias implícitas, declarações não explícitas) e a Terra
em si não o tem, representando em si mesma, várias visões-de-mundo e
organizações civilizacionais, o Multipolarismo sugere a criação de uma frente
unida da Terra contra o Mar. [...] Sendo o Multipolarismo a oposição à
monopolaridade, não significa uma reivindicação para que o mundo retorne à
bipolaridade baseada em ideologias, ou firmar a ordem dos estados nacionais, ou
meramente preservar o status quo. [...] No
momento, nenhuma ideologia religiosa, econômica, política, social ou cultural é
capaz de juntar a massa crítica de países para formar o “Poder da Terra” em uma
frente planetária única, necessária para formar uma antítese séria e efetiva ao
globalismo e ao mundo unipolar. Esta é a especificidade do momento histórico
(“O Momento Unipolar”): a ideologia dominante (o liberalismo
global/pós-liberalismo) não possui uma oposição simétrica no seu próprio nível.
Por isso, é necessário apelar diretamente para a geopolítica, tomando o
princípio da Terra, o Poder da Terra, ao invés da ideologia oposta. Só é
possível, neste caso, se as dimensões sociológicas, filosóficas e
civilizacionais da geopolítica forem realizadas em sua máxima potência. [...] O princípio
geopolítico da Terra não perde nada na sua estrutura paradigmática. É este
princípio que deve ser tomado como fundação para a construção da Teoria
Multipolar. Esta teoria deve ser endereçada diretamente à geopolítica,
rascunhar seus princípios, ideias, métodos e termos. Isso irá possibilitá-la de
tomar ambos os leques de ideologias, religiões, culturas e tendências sociais não globalistas e contraglobalistas existentes hoje. É absolutamente
desnecessário moldá-las sem algo unificado e sistematizado. Elas podem muito
bem continuar como locais ou regionais, mas estarão integradas em uma frente
comum de luta contra a globalização e o domínio da “Civilização Ocidental” a
nível meta-ideológico, no nível paradigmático da Geopolítica-2 e esse momento
de “pluralidade de ideologias” já está instalado dentro do próprio termo
“Multipolaridade” (não apenas dentro do espaço estratégico, mas também nos
campos ideológicos, culturais, religiosos, sociais e econômicos). O
Multipolarismo não é nada além de uma extensão da Geopolítica-2 (Geopolítica da
Terra) em um novo ambiente caracterizado pelo avanço do globalismo (como
atlantismo) e em nível qualitativamente novo e em proporções qualitativamente
novas. O Multipolarismo não possui outro sentido. A Geopolítica da Terra e seus
vetores gerais projetados sobre as condições modernas são o eixo da Teoria da
Multipolaridade, no qual todos os outros aspectos desta teoria estão
emaranhados.” (Capítulo 1)
Em
“Foundations of Geopolitics”, Dugin
já afirmava que a estratégia contra-hegemônica tinha de se basear em novo
arcabouço teórico, que ele identificava com o Neo-Eurasianismo. Queinze anos depois,
ele diz o mesmo em “Geopolítica do Mundo Multipolar”. E volta a repeti-lo em
outras obras, como “The Rise of the Fourth Political Theory”. Na verdade, o russo é
explícito em apresentar o projeto de uma Quarta Teoria Politica nesta chave.
A QTP se trata não só de esforço de teorização, mas da elaboração de uma
“estratégia guarda-chuva” para a guerra contra a hegemonia do Mar. Cada
civilização vai integrar seus Grandes Espaços/Impérios [vide Carl Schmitt]
segundo princípios culturais, ideológicos e políticos internos, tendo total
autonomia neste campo. Mas só será capaz desta realização em meio a uma aliança ampla
e inter-civilizacional que forneça os parâmetros da construção civilizacional dentro do
paradigma da “Geopolítica da Terra”, que nada mais é do que a face
acadêmica de uma Geografia Sagrada para a qual Dugin oferece uma determinada
interpretação tradicionalista. Assim, a bipolaridade se dá em um segundo
nível de elaboração geopolítica. Ainda que cada civilização elabore sua própria
versão da Quarta Teoria Política, ela sempre será desenhada sob a égide
da Geopolítica da Terra, que ele identifica com a Linguagem da Tradição.
Alguns
podem imaginar que estas considerações meta-ideológicas não são suficientes
para falar de uma bipolaridade geopolítica em sentido estrito, se tratando
apenas de detalhes exóticos de uma classificação toda especial a Dugin. Mas é
aí que a cobra morde o próprio rabo, pois o filósofo não esconde, em momento nenhum
que, se os EUA são o grande bode expiatório desta “frente geopolítica global”, já
que encarnação da Nova Atlântida; a Rússia é, por sua vez, o principal centro
decisório, geoestratégico e militar dos poderes continentais que serão
construído em cima do “paradigma geopolítico da Terra”.
3. A RÚSSIA TEM DE SER VISTA COMO LÍDER ESTRATÉGICO
Dugin tampouco mudou de ideia quanto a identidade e o papel russo na estratégia da multipolaridade. A mesma linha de raciocínio presente em “Foundations” é repetida consistentemente, insistentemente, exaustivamente nas obras da última década. A identidade russa seria indissociável da expansão das fronteiras do Estado Russo de modo imperial. E o uso do termo é o mais banal possível: os russos devem buscar influência e se possível dominação em escala planetária. Lutar pela sobrevivência da identidade russa é lutar pela realização deste projeto. Em mais de uma ocasião, Dugin defende que o Eurasianismo é não apenas uma teoria, mas uma estratégia para a consecução deste escopo imperial nas condições atuais. Ele encara o momento pós-Guerra Fria como de crise, e de desvio do país, que deveria retomar os vetores fundamentais que se depreendem de sua História política. Podemos ler em “The Last War of the World Island. The Geopolitics of Contemporary Russia”, publicado em Londres, em 2015:
“Para completar nosso
resumo da história geopolítica da Rússia, podemos apresentar seus resultados
gerais. Primeiro, a lógica espacial da história do Estado russo é revelado sem
ambiguidades. Esta lógica pode ser sintetizada como a expansão das fronteiras
naturais do Nordeste da Eurásia, Turan, com o objetivo de estender sua zona de
influência para além de suas fronteiras, talvez em escala planetária. Esta é a
conclusão principal que podemos retirar de uma análise de todos os períodos da
história política russa, da emergência da Rus de Kiev até a Federação Russa
hodierna e o espaço pós-soviético [...]. Em todos esses estágios, desde o
século XV, a Rússia continuou sua expansão em espiral através das fronteiras
naturais do continente. Às vezes o território da Rus se contraía por um curto
período de tempo, mas só para se expandir de novo na fase seguinte. Assim bate
o coração geopolítico da Heartland, empurrando seu poder, sua população, suas
tropas e outras formas de influência para os limites externos da Eurásia, rumo
à zona costeira (Rimland). O coração vivificante, pulsante e crescente do
Império continental predetermina o caminho da Rus/Rússia em direção ao
estabelecimento de um poder mundial e um dos dois pólos globais do mundo. Sob
várias ideologias e sistemas políticos, a Rússia se moveu em direção à
dominação mundial, firmemente embarcando no caminho rumo ao controle da Eurásia
a partir de dentro, e a partir da posição de centro do continente interior.
[...] No período soviético, a grande guerra dos continentes atingiu seu apogeu:
a influência da Civilização da Terra como URSS se estendeu para além das
fronteiras do Império Russo e além das fronteiras do continente eurasiático, e
chegou à África, América Latina e Ásia. Este vetor continental, e
depois global, uma expansão levada em nome da telurocracia da Heartland e da
Civilização da Terra, é precisamente o “sentido espacial” (Raumsinn) da história Russa.
Todos os estágios intermediários e todas as flutuações históricas e oscilações
ao longo desta via não são nada além de rotações de eventos históricos reais ao
redor de um eixo geopolítico central; os recuos, manobras diversionistas, e
atrasos não mudam o vetor principal da história russa. [...] A duração da atual
e profunda crise geopolítica, que se prolonga muito mais que as anteriores, e
que ainda não foi superada, indica que a construção geopolítica do Heartland
está hoje em um estado de confusão, refletido não só na sua estratégia e
política externa, mas também na qualidade da elite e nas condições gerais da
sociedade. Consequentemente, esforços sérios e talvez extraordinários tem de
ser feitos para que saiamos desta situação, incluindo uma mobilização social e
ideológica. Mas isto requer uma personalidade voluntariosa e enérgica no
comando do governo, um novo tipo de elite dirigente e uma nova forma de
ideologia. Somente neste caso o vetor geopolítico da história russa se
estenderá até o futuro. Se garantirmos isto no presente, podemos apostar que a
Rússia tomará a liderança na construção de um mundo multipolar e embarcará na
criação de um sistema versátil de alianças globais. Estas terão por fim minar a
hegemonia americana, e a Rússia vai emergir renovada como um poder planetário
na organização de um modelo concreto de multipolaridade sobre novas fundações,
propondo um amplo pluralismo de civilizações, valores, estruturas econômicas e
daí por diante. Neste caso, a influência da Rússia vai crescer rapidamente, e o
vetor básico de seu desenvolvimento rumo a um poder mundial será renovado. Este
cenário pode ser precisamente colocado na base de uma doutrina geopolítica russa
não contraditória, que pode dotá-la de um plano para permanecer fiel às suas
ambições históricas e civilizacionais no futuro e ao seu “sentido espacial”. [Capítulo
5]
Assim
como em “Foundations”, Dugin reafirma o papel central da Rússia na
aliança contra-hegemônica. Em “Geopolítica do Mundo Multipolar”, o filósofo
declara que a própria possibilidade atual da multipolaridade se dá pelo
despertar do “Coração Continental” no governo de Putin. Ainda que levante a possibilidade
de que outros países ou blocos iniciem a revolução global contra os EUA, o
filósofo ressalta que a missão primordial destas iniciativas é “despertar” a
Rússia para sua missão histórica de liderar a “Frente Ampla” contra a Talassocracia.
Sem esta liderança russa, cedo ou tarde os demais países e blocos vão cair
diante da unipolaridade da Nova Atlântida. Em meio a estas considerações, faz uma afirmação
capital, que ele considera axiomática, e que servirá de ponte para nosso próximo ponto.
“Para todos aqueles que
pretendem seriamente enfrentar a hegemonia americana, a globalização e a
dominação planetária do Ocidente (o atlantismo), a seguinte afirmação deve se
tornar um axioma: no presente, o destino da ordem mundial é somente decidido na
Rússia, pela Rússia e via Rússia. A assunção do papel de líder natural pela
Rússia na construção do mundo multipolar é uma condição necessária (mas não
significa que seja suficiente) de existência do Multipolarismo. Quaisquer que
sejam os processos que se passem em todos os outros países e sociedades, eles
permanecem com perturbações técnicas locais, com as quais a globalização lidará
mais cedo ou mais tarde. A única chance de realizar os interesses de todos os
países, sociedades e de todos os movimentos políticos e religiosos, que não
podem ver seu futuro de outra maneira a não ser em um mundo multipolar, está na
Rússia e na sua política. Pelo que, é absolutamente irrelevante como umas e
outras forças consideram a Rússia, sua cultura, suas tradições e seu modelo
social, sua política, etc. Isso não é de importância alguma. A parte central da
Rússia é estipulada pela estrutura da geografia política.” [Capítulo
3]
De
modo cada vez mais intenso na última década, o geopolítico russo propõe a
formação de uma ampla “Rede Revolucionária Global”, formada por uma miríade de
formas de organização [think-tanks, movimentos políticos etc.], comprometida
com a multipolaridade. Esta rede de alianças tem um Manifesto, e funciona em uma
lógica dicotômica: tudo aquilo que mina o poder norte-americano é bom em algum nível,
e tudo aquilo que o fortalece é ruim. Embora mirem na “Oligarquia Global”, os
EUA são descritos como o “País do Mal Absoluto”. O que os une, portanto, é o
princípio do inimigo comum. Assim, de acordo com a situação, esta rede pode
apoiar tanto supremacistas brancos quanto o racismo afro-americano, tanto insurreição
latino-americanas quanto a Doutrina Monroe, dependendo da avaliação de se
fortalecem ou não os interesses e os posicionamentos táticos “contra-hegemônicos”.
A necessidade desta Rede está exposta em “Geopolítica do Mundo Multipolar” e em
“Eurasian Mission”. Não vou me deter muito no assunto, apenas peço ao leitor
que tenha em mente o axioma que citei no fim do ponto anterior. Mas gostaria de
chamar a atenção para um ponto particular do Manifesto desta Aliança Revolucionária
Global. Em uma das críticas à sociedade americana, entendida
como o mal encarnado, é dito que ela:
“foi baseada principalmente na mistura de culturas, nações e grupos étnicos,
sobre o princípio do "melting pot". A ausência de laços étnicos
orgânicos era sua especialidade. Espalhando a sua influência para todo o resto
do mundo, os EUA também estão promovendo esse princípio cosmopolita, tornando
isso uma norma universal.” [Manifesto]
O
Brasil é um país em que mais de 90% da população não tem qualquer identificação
étnica, que dirá “laços étnicos orgânicos”. É um país diverso, com inúmeras
formas comunitárias, e culturas e identidade regionais, mas as etnias são
minorias bem pequenas em nosso território. Se identificações raciais já
consistem num imenso problema no Brasil, dado o caráter mestiço de nossa
formação, como deveríamos receber essa crítica a uma sociedade sem “laços
étnicos orgânicos”?
Voltando
à linha principal, cabe ressaltar que Dugin não abandonou o ideal
de um Império Eurasiático unificado de Vladivostok a Lisboa. A unificação da
Eurásia, que estaria “geopoliticamente predeterminada”, continua no horizonte
do russo na forma de uma integração estratégica. No entanto,
não é este o ponto predominante em suas obras mais recentes. Nelas, o filósofo fornece
um modelo concreto do que seria um mundo multipolar futuro segundo a aplicação
dos seus princípios quarto-teóricos e neo-eurasianos. Vou me
focar neste modelo, não sem antes ressaltar que os eixos anteriormente descritos, e centrados na Rússia,
com políticas específicas para cada região do mundo, são novamente apresentados em obras mais recentes, ainda que com especificidades que podem apresentar algumas divergências.
Dugin absorveu a obra “Conflito de Civilizações”, de Huntington, publicada em 1996, e a associou ao modelo de Grandes Espaços/Impérios de Carl Schmitt. O quadro abaixo, fornecido em obra do próprio filósofo, ajuda a compreender esta questão.
Obviamente,
Dugin não “naturaliza” de modo simplista a ideia de Civilização, dizendo
explicitamente que elas são “construções” [vide “Teoria do Mundo Multipolar”].
Trata-se, obviamente, dos mesmos conceitos gerais de Schmitt, apresentados sob
nova ótica. Existiria uma multiplicidade de civilizações existentes e
potenciais. Cada uma delas deveria se integrar de forma autônoma, baseada em
seus próprios princípios internos, e salvaguardando os interesses dos povos,
etnias e culturais em seu interior. Os Estados-Nacionais seriam dissolvidos, ou
seja, perderiam a soberania, se tornando, no máximo, regiões autônomas no interior
destes “Impérios/Civilizações/Grandes Espaços”. Nesse sentido, e é vital que se
diga, Dugin é anti-nacionalista por definição, associando todo e qualquer
nacionalismo ao fascismo. Em “The Rise of the Fourth Political Theory” há um quadro
explicativo em que se afirma que a “nação é uma aberração que deve ser
dissolvida”.
As
promessas de liberdade e autonomia de Dugin são dadas a comunidades orgânicas e
étnicas basilares. E também a populações com cultura identificável. E a povos que
compartilham de uma mesma civilização/grande espaço. Cada uma destas realidades
gozaria de larga autonomia política em seu próprio âmbito. Cada “Império/Civilização/Grande
Espaço” é, em certo sentido, um polo regional livre para se gerir de acordo com
os próprios princípios econômicos, valores e organização social e política. No
entanto, isso não significa que todos estes Grandes
Espaços/Civilizações/Impérios tenham soberania geoestratégica e geopolítica, e
se constituam em Polos Mundiais de Poder. Apenas alguns destes Grandes Espaços
se elevam a este nível de poder e dominância. Todos os demais gozam apenas de
uma soberania relativa. Assim, podemos ler em “Geopolítica do Mundo Multipolar”:
“As instâncias que
denotamos como “polos” possuirão soberania estratégica valiosa no mundo
multipolar. Há grandes formações estratégicas, cujo número será certamente
limitado – mais que dois, mas muito menos que “Grandes Espaços” potenciais.
Isso significa que cada polo deve possuir controle prioritário sobre as forças
militares unidas e esta instância deve estar sob o comando do governo
estratégico de um polo. Somente as questões mais penetrantes estarão dentro do
conhecimento dessa instância estratégica maior – tal como guerra e paz, o uso
ou não uso de força, imposição de sanções, etc. As decisões estratégicas de
caráter macroeconômico, energético e de transporte, afetando todo espaço sob a
jurisdição do polo, estarão também dentro da competência desta instância. [...]
Centros responsáveis pela integração de “Grandes Espaços” estarão no próximo
nível. Sua estrutura será similar a um governo de Estados confederados, onde
todas as decisões são feitas no princípio da Subsidiariedade – isto é,
quanto mais localizado um problema, mais poderes para sua solução são
concentrados em instâncias inferiores da autoadministração.” [Capítulo
3]
Portanto,
se é verdade que cada Civilização/Grande Espaço é pensado como um “Império Regional”
usufruindo quase todos os atributos da soberania, eles não são o cume do centro
decisório concernentes às questões mais importantes. A imagem abaixa, retirada
do mesmo livro, ajuda na compreensão do que Dugin tem em mente.
O filósofo russo chama este modelo de “Mundo quadripolar”. Ele é baseado em quatro polos geopolíticos e geoestratégicos mundiais, todos eles localizados no Norte Global, e separados por uma divisão de meridianos. É uma figuração que lembra as propostas de Haushoffer, e também os projetos iniciais de Roosevelt, e que debati nesta postagem: Os erros de Dugin e de Putin
É
fácil notar que, para Dugin, todos as civilizações do Sul estão sob domínio
geopolítico das civilizações do Norte. O que entre nós significa a “América
para os americanos” em seu sentido imperialista clássico. Vejamos a explicação
da proposta:
“É inteiramente possível
aplicar a todas as considerações teóricas mencionadas acima com respeito à organização
estratégica do mundo multipolar em relação à existente situação e oferecer –
como uma das possíveis versões – um modelo para a futura ordem do mundo
multipolar correspondendo com todas as condições específicas. Nós chamamos esse
modelo de “quadripolaridade” [...] O potencial mundo multipolar em sua versão
dos quatro polos (a quadripolaridade) representa quatro zonas globais dividindo
o globo no meridiano. O mapa de K. Haushofer considerando a realização das
pan-ideias se parece aproximadamente com isto. Dois continentes americanos
estão na primeira região. Este é o primeiro polo. Seu centro é no hemisfério
norte e coincide com os EUA. Esse modelo reproduz a doutrina de Monroe ou então
o status dos EUA de um grande poder regional, um pico alcançado nos finais do
século XIX, tendo liberado a si mesmo do controle europeu e, pelo contrário,
tendo estabelecido controle (econômico e político) sobre a maioria dos países
latino-americanos. [...]A quadripolaridade difere principalmente do cenário da
unipolaridade atlantista na estrutura dos seus eixos estratégicos. Eles estão
ao longo do meridiano, do Norte ao Sul; os polos de integração estão no
hemisfério norte e sua influência se expande profundamente na área do Sul e ao
hemisfério sul, enquanto que o modelo atlantista é construído no princípio de
assediar a Eurásia (Heartland) a partir do Ocidente (dominação da Europa de
identidade atlantista) e do Leste (os países aliados aos EUA da região do
Pacífico – em primeiro lugar, o Japão).” [Capítulo 3]
Esta
ideia é repetida por Dugin em outras obras. Em "Eurasian Mission", ele afirma:
“Se considerarmos a
aliança dos EUA com a Europa Ocidental como o vetor atlantista de
desenvolvimento europeu, a ideia de uma integração europeia sob a égide de
países continentais (Alemanha e França) pode ser chamada de Eurasianismo
europeu. Isto se torna cada vez mais óbvio se levarmos em consideração a ideia
de uma Europa se alongando do Oceano Atlântico até os Urais (concepção de Charles
de Gaulle) ou mesmo até Vladivostok. Em outras palavras, a integração do Velho
Mundo deveria incluir o vasto território da Federação Russa. Assim, o
Eurasianismo neste contexto pode ser definido como um projeto para integração econômica,
geopolítica e estratégica da região norte do continente eurasiático, que é o
berço da história europeia e a matrix dos povos europeus. [...] O vetor
horizontal da integração é seguido por um vetor vertical. Os planos eurasianos
para o futuro presumem a divisão do planeta em quatro cinturões geográficos
verticais, ou zonas meridianas, do Norte ao Sul. Ambos os continentes americanos
vão formar um espaço comum orientado e controlado pelos EUA segundo a
arquitetura da Doutrina Monroe. Esta é a zona meridiana Atlântica. Em adição,
três outras zonas estão planejadas. Elas são as seguintes: Euro-África, com a
União Europeia em seu centro; a zona Rússia-Ásia Central; a zona do Pacífico. É
no interior destas zonas que se darão a divisão do trabalho e a criação de
áreas de desenvolvimento e corredores de crescimento. Cada um destes cinturões
(zonas meridianas) contrabalança a outra, e todas elas justam contrabalançam a
zona meridiana. No futuro, estes cinturões serão o fundamento sobre o qual vai
ser construído um modelo multipolar de mundo: vão existir mais de dois pólos,
mas seu número será muito menor do que o número de Estados-Nações. O modelo
eurasiano propõe que sejam quatro.” [Parte 1, Capítulo 3]
Em
linhas gerais, a ideia de união estratégica dos três “pólos eurasiáticos” para
contrabalançar os EUA está exposta acima, bem como o modelo mais “palatável”
[para os possíveis aliados da Rússia na Eurásia] de zonas meridianas. Dugin reitera
o modelo em “The Rise of Fourth Political Theory”:
“Schmitt previu um mundo formado
por “Impérios”, “Grandes Espaços” e “Reichs”. Aplicando sua visão à atualidade,
podemos distinguir no futuro um “Império” Atlântico (com seu centro nos EUA),
um “Império” Asiático (China e Japão), um “Império” europeu (correspondendo à ideia
de Schmitt), e, finalmente, um “Império” eurasiático. Schmitt se via como um
observador do Império europeu e olhava o mundo a partir da perspectiva de um
Reich europeu. Os eurasianistas elaboram os fundamentos de uma visão de mundo
similar, mas o fazem olhando o mundo a partir da Rússia. [...] Se três “Grandes
Espaços” estão aptos para uma expansão, de modo a se tornarem “Impérios”, “Reichs”,
então a expansão americana, que clama atualmente um escopo universal e global,
terá de se contrair. Para que os EUA retornem à versão original da “Doutrina
Monroe”, para que se torne de novo um “Grande Espaço” e um “Império”, é sua
influência deve ser apreciavelmente diminuída. Esta análise demonstra que a teoria
dos “Grandes Espaços”, de Carl Schmitt, como expressão gráfica de todas as
construções da Quarta Teoria Política, é a plataforma mais segura para um mundo
multipolar, o anti-globalismo, o anti-americanismo e a luta de libertação
nacional da dominação global americana.” (Capítulo 4)
No mínimo do mínimo, a proposta demonstra que a multipolaridade que interessa ao eurasianismo duginiano e à Quarta Teoria Política não é a multipolaridade que importa ao Brasil.
Além disso, as
considerações de Dugin não deveriam causar maiores surpresas. Sua Geopolítica é
o invólucro exterior, a embalagem, de uma versão específica do Tradicionalismo;
ou melhor dizendo, de uma interpretação pessoal de Dugin sobre o esoterismo,
segundo suas experiências no Círculo de Yuzhinsky.
Nesta versão, que chamei em outros textos de “Nordicismo esotericista”, o Norte
Geopolítico é expressão geográfica, histórica e civilizacional direta do Norte Simbólico, e portanto superior e
dominante sobre o Sul. O eixo de confrontação Leste e Oeste é considerado para
Dugin secundário, um sintoma da Idade das Trevas. Uma vez que esta aberração
possa ser corrigida, e o mundo volte ao curso "normal", predomina novamente o eixo
Norte-Sul, que tem também um tipo de relacionamento hierárquico, conforme o filósofo explica em “Foundations of Geopolitics”:
“O par Norte-Sul na Geografia
Sagrada não se resume ao contraste abstrato entre Bem e Mal. Antes, é uma
confrontação entre a Ideia Espiritual e seu estado grosseiro, a corporificação
material. No caso normal, com a primazia do Norte reconhecida pelo Sul, existem
relações harmoniosas entre estas partes do mundo. O norte “espiritualiza” o Sul,
os enviados do Norte transmitem a Tradição aos sulistas para que estabeleça as
fundações das civilizações sagradas. Se o Sul se recusa a reconhecer a primazia
do Norte, começa então uma confrontação sagrada, uma “guerra dos continentes”,
e, do ponto de vista tradicional, o Sul é o responsável por este conflito por
conta de seu crime contra as normas sagradas. [...] O homem austral [do sul], o
tipo gondvanico, é o exato oposto do tipo “nórdico”. O homem do sul vive rodeado
pelos efeitos, manifestações secundárias; ele permanece no cosmos, que ele reverencia
mas não compreende. Ele adora o exterior, mas não o interior. Ele preserva
cuidadosamente traços de espiritualidade, a corporificação dela no ambiente
material, mas não é capaz de se mover do símbolo para o simbolizado. O homem
austral [do sul] vive em paixões e impulso, e coloca o material acima do
espiritual (que ele simplesmente não conhece), e honra a vida como a autoridade
suprema. O homem austral [do sul] se caracteriza pelo culto à Grande Mãe, a
matéria que gera uma variedade de formas. A Civilização do Sul é a Civilização
da Lua, recebendo sua luz do Sol (o Norte), preservando-a e transmitindo-a por
algum tempo, mas periodicamente perdendo contato com ela (lua nova). Quando os
povos do sul estão em harmonia com os povos do norte, isto é, reconhecem sua
autoridade e superioridade tipológica (e não racial), a harmonia civilizacional
reina. Quando clama a primazia de sua atitude arquetípica sobre a realidade, o
tipo cultural distorcido surge, que pode ser definido coletivamente como
idolatria, fetichismo ou paganismo (em um sentido negativo e pejorativo do
termo).” [Capítulo 6]
A esta altura, é
desnecessário apontar que esta tipologia simbólica é aplicada por Dugin à
Geopolítica. Na verdade, ela é também a chave para o entendimento de sua
Noomaquia, que mobiliza conceitos de Gilbert Durant para compor uma hierarquia noética que, no fim das contas, é também uma hierarquia civilizacional [e também,
em uma linha de raciocínio bem estranha, uma “hierarquia de humanidades”]. A
Noomaquia de Dugin é, em muitos aspectos, uma reatualização do conceito
evoliano de “racismo espiritual”. Mas desenvolver esta apreciação me tomaria
ainda mais espaço, e é melhor deixá-la para outro momento.
Vou me abster
também de tratar da questão da China. Nos escritos mais recentes, Dugin a percebe como parceira na luta contra o inimigo comum, os
EUA, e enxerga nela uma caminho mais telurocrático [uma possibilidade que estava colocada em "Foundations", diga-se de passagem]. No entanto, permanece tratando o Japão como um possível polo, e até mesmo como o parceiro ideal da Rússia no Pacífico. Como eu disse no texto anterior, a lógica geopolítica
duginiana, ou melhor, a lógica da interpretação tradicionalista que ele faz da
Geografia Sagrada, o leva a considerar o Japão um representante do Norte
Simbólico. Para Dugin, a civilização chinesa pertence ao Sul [embora fundada sob
a “luz do Norte”, e daí seu aspecto “dionisíaco”, como ele diria hoje em dia],
e não ao Norte. Não acrescentarei mais a este respeito para evitar me estender demasiadamente.
5.
QUIA BONO?
Não vou repetir
todos os elogios que fiz a Dugin na postagem anterior. Foram sinceros, embora
eu discorde de muitos dos fundamentos, dos meios e das consequências de seu conjunto
teórico e de sua abordagem tradicionalista e geopolítica. Uma crítica mais ampla será realizada no futuro. Reitero que há apenas três formas de explicar que um brasileiro, um latino-americano e, de modo mais geral, uma pessoa do Sul
Global aceite a totalidade das ideias duginianas e a liderança eurasiana para
se posicionar política e geopoliticamente:
A)
Ignorância à Eles não entendem bem
a questão, só conhecem Dugin de modo fragmentário e pela mediação de terceiros,
e portanto estão iludidos, servindo de pau pra toda obra de movimentos que enxergam
o mundo por via russa, e lutam, sempre e em cada ocasião, pelo engrandecimento
do poder russo em primeiro lugar;
B)
Vira-latismo -> Odiando o mundo e o país em que
nasceu, a pessoa advoga a submissão de sua sociedade aos ditames do Norte
Geopolítico, que ele vê como seu senhor, na atitude feminina que os
eurasianistas esperam da relação entre os sexos;
C)
A ilusão de ser "nórdico” -> Crença tola em um
algum poder cósmico, racial ou espiritual que a faça imaginar pertencer ao
destino civilizacional russo, nórdico ou eurasiático, e não ao brasileiro. Provavelmente,
fruto de um Platonismo distorcido, que faz alguém acreditar que é partícipe de uma
“Pátria ideal”, em vez de formado pelo mesmo barro que molda o Sul Global
e, de modo mais específico, o Brasil.
Seja como for,
todo aquele que adere ao conjunto destas ideias e aplica todos os pronunciamentos
de Dugin, sem distinguir o que é bom ou não segundo uma perspectiva centrada
no nosso país, não passa de um entreguista. O amor pela cultura brasileira tem
de ser orientado pela busca por nossa Independência em todos os âmbitos, nem que
tenhamos de morrer pela liberdade da Pátria. Não uma suposta “pátria ideal”,
fruto de uma distorção de perspectiva e de uma incapacidade pra se assumir inteiramente
como brasileiro. Mas desta Pátria que nos nutre e na qual Deus nos fez nascer. Outro
Reino, só o de Cristo, não a “Eurásia”.
Nem Washington,
nem Moscou. Brasil em primeiro lugar.
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