Na entrevista que concedeu ao podcast Pisando em Brasa, Aleksandr Dugin abordou sua visão de ''povo'' de uma maneira tradicionalista. Para explicá-lo, ele mobilizou conceitos presentes nas tradições aristotélica, hegeliana e socialista.
O ''povo'' não poderia ser entendido no âmbito do particular: não é um coletivo nem no sentido francês de nação [soma de indivíduos que escolhem assinar um contrato social] nem no sentido germânico [substrato étnico de um conjunto de indivíduos].
O ''povo'' seria uma ideia no sentido aristotélico do conceito: um universal ''encarnado'' nas substâncias individuais, até certo ponto como uma ''forma substancial'', e que faz desses particulares membros de uma mesma espécie.
Se é em parte ''forma substancial'', o ''povo'' não pode ser visto nem como substrato étnico [Dugin nega que esteja falando de etnia] nem como soma de indivíduos. Ele é o 'universal' específico que se conhece NOS particulares e singulares.
Dugin supera o conceito de nação em suas duas faces mais gerais, portanto.
O russo vai além e mobiliza o conceito de ''Geist'', ou Espírito, com que Hegel se referia à Razão por trás e ''acima'' de dada população [povo]. Se trata de uma Razão Superior àquela possuída pelos indivíduos na temporalidade cronológica, mas que move dada população [povo] para determinado fim histórico.
É fácil ver a conexão que Dugin faz com a angelologia de Corbin ou os Logoi de São Máximo Confessor e da tradição ascético-metafísica cristã.
O ''Geist'' de uma população [povo] é também o Anjo de Corbin, a pessoa por trás de todo indivíduo, e que existe em ATO nos céus e em POTÊNCIA a ser realizada na temporalidade. Mais uma vez, Platão se une a Aristóteles, já que agora a noção de povo é vista não somente por meio do conceito de substância [ousia] aristotélico, mas envolve certa autonomia do Anjo ou Logos, a Ideia por trás substância e que é o motor de sua realização. Mas o Anjo não é a Ideia platônica apenas como ''arquétipo'', como fica claro no terceiro modo com que o pensador russo expõe o tema.
Pra se referir à possível passagem da potência ao ato, o pensador russo mobiliza uma noção próxima a da ''causa final'' aristotélica. Se o Anjo é a causa exemplar de determinada população, e que faz dela um ''povo'' com uma dinâmica histórica, esse ''povo'' por sua vez só pode ser compreendido se vislumbrado como ''comunidade de destino''.
É aquela população que tem uma mesmo fim na história, conhecido pela contraposição a outros que ameaçam sua existência, e que para alcançar esse objetivo se fundamenta em um imaginário formado de elementos de sua história comum.
Quando o ''povo'' toma a decisão por realizar seu fim, seu destino [seu ''telos''], ele instrumentaliza esse imaginário comum e ''ativa seu espírito'' [palavras de Dugin], ou seja, seu GEIST [Espírito hegeliano que move uma população na história], seu ANJO [O verdadeiro ser do indivíduo, que existe em ato nos céus e em potência na temporalidade], seu LOGOS [a essência inscrita na Natureza pensada por Deus, segundo São Máximo Confessor, e que é tema na Noomaquia de Dugin].
Óbvio que a decisão tomada pelo ''povo'' não está [necessariamente] no âmbito liberal da democracia entendida como soma de votos individuais. Nem muito menos numa explosão as forças inconscientes e do substrato étnico. E sim no âmbito dessa Razão ou Espírito que aponta seu escopo histórico, no âmbito desse Eu Superior ou desse Anjo, ou ainda do Logoi que dá realidade a cada ser.
Não num mundo das ideias, mas encarnado em certos particulares que o expressam de maneira acurada na temporalidade, como ''exemplos perceptíveis'' daquela Ideia original, como realizações mais perfeitas desse Logos ou Anjo. Como ''grandes homens'', ''vanguardas'', ''organizações'' que se tornam espelhos que refletem esse Geist.
A perspectiva de Dugin é perfeitamente adequada a uma cosmologia e metafísica cristã-ortodoxa, ou aquilo que tem sido chamado de ''ontologia icônica''. Trata-se, em grande medida, de uma exposição cristã da economia e da soteriologia divina, aplicada ao terreno da antropologia, geopolítica, ciência política e meta-história.
A teologia do ícone está bastante associada ao Logoi que São Máximo Confessor, São Marcos Asceta, Evágrio do Ponto, São Diádoco da Foticéia, Santo Isaac o Sírio, São João Clímaco, Santo Hesíquio do Sinai dentre outros ensinavam estar inscritos na Natureza, não essa decaída e acessível pelos sentidos corpóreos, mas na Original, criada por Deus.
São Máximo Confessor chega a afirmar que Cristo ''encarnou'' na Natureza antes de se fazer carne na Virgem Maria. Os logoi dos seres corpóreos são a operação que Evágrio chamava de Sabedoria Divina, a ''arte do artista em sua obra''. Não é apenas um ''protótipo'', mas a ''vontade divina'' estabelecida para aquele ser, uma ''semente'' de sua realização escatológica. O ícone expressa não a imagem mas também a semelhança. O logos é a inscrição da intenção, do sentido e da vontade divina para dado existente. São ideias-vontades.
Daí a dinâmica e o movimento dessa perspectiva, já que a ideia ou essência de algo está na vontade divina estabelecida para esse algo. Essa vontade divina é um logos [palavra], no sentido usado na Criação, no Livro de Gênesis, seu 'nome', seu princípio e o fim para o qual tende, verdadeiro ''ponto de contato'' entre o ente e Deus.
O logos de um ser existente é conformado pela síntese ou conjunto de diversos outros logoi, que são partilhados com outros existentes. É a unificação e coesão desses logoi em um logos de um ser que mantém sua identidade no interior do todo. A unidade de todos os logoi está no Verbo Divino, assim como o Verbo Divino está inteiramente refletido no logos de cada ser.
Isto quer dizer que os logoi mais particulares são partilhados por logoi mais gerais, todos eles unificados no Logos Divino, em sua dimensão econômica, como revelação da vontade divina para a Criação.
A Noomaquia de Dugin é meditação e aplicação da escatologia, cosmologia e metafísica cristã.
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