segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Neopentecostalismo como religiosidade brasileira


“Começaram aqueles programas de televisão deles, falando que a gente fazia acordo com o diabo, que fazia trabalho pra matar gente e eu achava até engraçado. Quando começaram as invasões, eu olhava aquilo nos jornais e me assustava, parecia que a história estava andando ao contrário pra gente, parecia que aquela época de perseguição, que os antigos falavam, estava voltando. Mas quando eu fiquei sabendo que eles usavam banho de erva, descarrego e tudo o mais, aí é que eu me assustei mesmo! O que era aquilo! O candomblé ficou um pouco sem chão mesmo depois que eles [a IURD] chegaram aqui, sabe.”


Candomblecista de Salvador, Bahia

A Igreja Universal do Reino de Deus se tornou referência dentro do universo neopentecostal brasileiro, e influência inegável do movimento conhecido como ''evangélico''. O peso da organização de Edir Macedo não pode ser medido pelo número de pessoas que se dizem fiéis da instituição, que alcançaram um auge por volta do ano 2000, com pouco mais de dois milhões de pessoas no censo declarando pertencimento à IURD, e caiu desde então. [No censo de 2010, eram 1,9 milhão de fiéis.]. 

Esses números aparentemente reduzidos na Igreja Universal em comparação com o poder econômico, político e a quantidade de templos que possui pelo país e na África apontam pra uma característica muito importante do neopentecostalismo e do movimento evangélico em geral: existe uma grande proporção de pessoas que usam os ''serviços religiosos'' de mais de uma igreja ou seita, girando por elas em busca de maior eficiência na solução de seus problemas ou pastores mais carismáticos. Essa ''transição perene'' entre instituições ajuda também a entender como Edir Macedo foi capaz de criar uma linguagem minimamente comum entre evangélicos, que é encontrada em graus variados e com diferentes matizes na maior parte dos pentecostais e até mesmo entre evangélicos de agremiações supostamente mais tradicionais. 

Quando se trata de ler a explosão neopentecostal no país, somos tentados a criar analogias frágeis com processos que se deram noutras sociedades. Daí a necessidade de se reforçar as singularidades dessa onda ''neopenteca'' aqui no Brasil. Não é possível entender a velocidade da ''conversão'' [palavrinha problemática] dos brasileiros às igrejas evangélicas sem perceber que há imensas linhas de continuidade entre esse tipo de religiosidade e as 'tradições religiosas' populares inscritas no catolicismo popular e nas religiões afro-ameríndias-brasileiras [candomblés, umbandas, juremas, encantados, ''espiritismos'' de modo geral]. 

Pra abordar esses elementos, vou usar a IURD como exemplo do movimento evangélico, ou mais especificamente neopentecostal, embora os ensinamentos e práticas da organização sejam mais ''radicais'' do que a maioria esmagadora de suas congêneres. Assim, é um modelo limite, e que se torna útil dado o peso que essa igreja possui no estabelecimento de um discurso e entendimento comum no universo evangélico brasileiro, facilitado pela circulação de fiéis a que me referi acima. 

Deixem-me pontuar o que o neopentecostalismo NÃO é:


1. Não se trata de um movimento iconoclasta em sentido estrito


Embora ataque as representações e objetos sacros de outras religiões, fazendo deles representações demoníacas e invocando todo o conjunto de interpretações bíblicas sobre a proibição de culto a imagens, os neopentecostais fazem uso abundante de mediadores com o sagrado na forma de itens ''abençoados'': óleos, água, papéis, sal grosso, flores, quantidade de terra etc., todos passíveis de serem veículos de algum tipo de poder espiritual. Essa prática, criticada em meios evangélicos mais ''tradicionais'' [assim entre aspas, explico depois], é ironizada em uma infinidade de memes pelas redes sociais, de modo que é bastante conhecida e também difundida. Trata-se não de destruir toda e qualquer representação do sagrado, e sim de superar os mediadores da religião ''inimiga'', identificada com o diabo.




2) Não se trata de uma expressão do protestantismo histórico

É quase que consenso interpretar o impacto sociológico do protestantismo histórico, particularmente o Reformado, como ponta de lança no processo de ascensão do racionalismo, do secularismo [dessacralização do mundo] e da formação do ethos do indivíduo moderno. O neopentecostalismo no Brasil não é racionalista, mas se fundamenta em experiências ''místicas'', ''extáticas''; não desmitologiza o mundo, mas sacraliza o mundano [o que, percebam, não significa elevar o mundano ao campo do sagrado, transformando-o em vivência ritualística e ascética; e sim levar a perspectiva mágica para todas as esferas da atividade mundana]; não forma uma ética de responsabilidade individual, mas de guerra espiritual em que um indivíduo naturalmente bom é assaltado externamente por forças maléficas [uma inversão considerável do que afirma o calvinismo]. 

Se o protestantismo histórico foi força que modelou e preparou a consolidação da sociedade liberal-capitalista, o neopentecostalismo brasileiro corre em direção nitidamente contrária. Esse ponto, penso, joga por terra várias interpretações até bem recentes sobre o ''significado sociológico'' da expansão ''neopenteca'';



3) O neopentecostalismo não é mera expansão do movimento evangélico norte-americano ou estrangeiro


Se não pode ser lido como uma reiteração do protestantismo histórico e de seu impacto ''ocidentalizante'', tampouco o neopentecostalismo pode ser encarado como mera expansão do movimento evangélico norte-americano. Há continuidades com as ondas pentecostais que chegaram do estrangeiro, mas também radicalização e rupturas. 

O neopentecostalismo não é fundamentalista, por exemplo. Ora, o termo ''fundamentalismo'' pode ser lido de maneira genérica, como movimento intencional de influenciar em todos os campos da sociedade e subordiná-los à religião; ou de maneira mais estrita e histórica, como o movimento do início do século XX que pretendia se opor à teologia liberal crescente em meios protestantes com a revalorização da ideia de ''inerrância bíblica''. Nesse sentido, o ''fundamentalismo'' estaria também vinculado ao ''literalismo bíblico'': diferente da teologia liberal, que desmitologizava a religião, retirando dela todo o seu conteúdo histórico e metafísico, a reduzindo cada vez mais a alegorias morais e psicologizantes; o fundamentalismo e literalismo reafirmava esses aspectos ''tradicionais'' em um diálogo com a modernidade -- se queria antimoderno, embora partisse de uma leitura moderna do texto bíblico. 

Ora, o neopentecostalismo possui pelo menos duas distinções muito importantes em relação ao fundamentalismo: em primeiro lugar, não parte de um desejo da defesa da tradição contra uma novidade [como no caso da teologia liberal]; pelo contrário, ele se contrapõe justamente a uma tradição religiosa popular que encara mais do que desvirtuada, como francamente ''demoníaca'' [catolicismo popular e religiões afro-ameríndias-brasileiras]. Há muitos estudos que abordam esse aspecto do movimento evangélico, o de combate ao ''Exu-tradição''. Ou seja, não se trata de um movimento que critica a modernidade a partir de uma releitura da tradição. E sim de um movimento ''destradicionalizante'', pois a tradição herdada vem do diabo. 

Esse movimento ''destradicionalizante'' tem de ser matizado, porque a continuidade da tradição se dá noutro âmbito, como indiquei antes e voltarei a indicar nos próximos pontos. O importante por enquanto é notar a profunda ruptura com o fundamentalismo. 

Do mesmo modo, a fidelidade ''à palavra de Deus'' se dá de outra maneira. Não há uma forte tradição exegética no neopentecostalismo, a relação com o texto escrito passa longe disso. Na verdade, ocorre uma seleção de certas passagens bíblicas que são usadas muito mais como ''recursos'' de uma oralidade mágica. A ''palavra'' de Deus, que é ''poderosa'', é aquela falada, pronunciada por pastores e fiéis, e capaz de operar e atualizar poderes e ''contratos mágicos''. A Bíblia se torna, na verdade, ela própria outro objeto mágico. O vínculo neopentecostal com uma perspectiva mágica da palavra oral tem traços de continuidade com aspectos das religiosidades afro-brasileiras, inclusive, e não com a valorização da exegese da palavra escrita típica do ''literalismo''.


4. O neopentecostalismo rompe com o moralismo do pentecostalismo ''clássico''

4) O crescimento do neopentecostalismo não indica um fortalecimento do moralismo. A rigidez moral é muito mais típica do protestantismo histórico e das primeiras ondas pentecostais. A onda que explode no Brasil a partir do fim dos anos 1970 é marcada antes de tudo pelo arrefecimento do ascetismo e da disciplina moral que eram típicas desses movimentos que lhe antecederam. 

Na verdade, o pentecostalismo clássico, cujas duas primeiras ondas atingiram o país nos anos 1910/20 e depois 1950, possuíam um discurso de negação da cultura ao seu redor, criando uma cisão entre a vivência na igreja e a vivência no mundo. O neopentecostalismo, ou terceira onda pentecostal, que se inicia na segunda metade dos anos 1970, inverte essa questão, abraçando a cultura e a vida no mundo, mas dando-lhe um sentido belicista de combate aos ''encostos''. Dessa forma, o neopentecostal tende a abandonar os traços distintivos com os quais os chamados "crentes" eram diferenciados do restante da população. 

Claro que a moralidade evangélica se adequa ao dualismo cristão: as próprias religiosidades afro fizeram isso no Brasil em graus diversos. Com o neopentecostalismo é a mesma coisa: é uma religiosidade com foco mágico e extático, focada em transes, sonhos proféticos, e numa escatologia de guerra espiritual a ser vivenciada em todos os aspectos da vida [mas de modo não ascético]. Os pontos ''morais'' com que os evangélicos costumam ser associados estão presentes com força nos praticantes de outras religiosidades cristãs ou influenciadas pela sociedade cristã, do catolicismo-romano à umbanda.


5. Neo-pentecostalismo como sistema mágico-religioso


O neopentecostalismo se expressa como um sistema mágico-religioso com mais ênfase nos aspectos mágicos do que nos religiosos. Não pretendo criar aqui uma dicotomia, que considero inexistente, entre magia e religião, mas sim pontuar uma distinção, ainda que analítica, entre o ato operativo, típico da magia, e o devocional, mais associado ao religioso. 

Há muitos estudos que lêem a prática de ''ofertas'' [na maior parte das vezes monetária] presente entre evangélicos a partir dos conceitos de ''dom e contra-dom'' proposto por Mauss. Trata-se de um sistema mágico de trocas que cria obrigações e vínculos entre os participantes. Esse aspecto existe já no catolicismo popular, se não na ideia de dízimo [que se secularizou nesse segmento religioso, perdendo suja dimensão mística de ''sacrifício''], certamente na prática difundida do ''voto'' e do ''pagamento de promessas''. Também se expressa de maneira muito típica nos ebós e despachos das tradições afro-brasileiras, que atualizam e operam vínculos simbólicos entre os elementos ofertados e as forças espirituais a que são dirigidas. 

Ora, uma das diferenças entre essas práticas e a ''oferta'' ''neopenteca'' é que nas religiosidades afro-brasileiras, e ainda mais fortemente no catolicismo romano, se ressalta a liberdade de Deus na concessão ou não da ''graça'' ou dádiva. No caso evangélico, a certeza da concessão da ''benção'' se expressa na antecipação da ''oferta'', atualizada pelo poder mágico da ''palavra'', que enfatiza o ''direito'' do fiel à prosperidade requisitada mais do que o favor da Divindade.

[há outra diferença crucial entre as tradições religiosas populares e o neopentecostalismo, que é a fetichização do dinheiro nesse último -- a oferta e a prosperidade são monetizadas de uma maneira que não tem paralelo no catolicismo-romano e nas religiões afro-brasileiras, e isso é um traço característico muito importante das diferenças entre os evangélicos atuais, nascidos numa sociedade de consumo de massas, e as demais religiosidades do país].




6) O neopentecostalismo não apenas demoniza a tradição popular mas também a reafirma


Voltando ao caráter ''destradicionalizante'' do neopentecostalismo, há de se notar que embora demonize e confronte a tradição religiosa popular, o neopentecostalismo a reafirma no campo metafísico e ritualístico. O discurso pratica uma inversão dessa tradição ao mesmo tempo que a prática a canibaliza e absorve. Os cultos neopentecostais, isso é já notório, se assemelham em muito a giras de exus, em que entidades associadas à umbanda e candomblé são invocadas, possuem os fiéis, são ''arguidas'' por pastores [que buscam identificar as entidades e forças que conformam a cabeça dos fiéis ''possuídos''], obrigadas a se confessarem como demônios e depois exorcizadas e substituídas pela ''possessão'' do Espírito Santo e de seus dons [esta sim legítima]. 

A teologia da prosperidade acaba tendo similaridades com o conceito de axé do candomblé/umbanda, tal como ressaltei no outro ponto, e a própria função do pastor como mediador do fluxo obrigatório de trocas que garante o milagre da prosperidade tem similaridades com o papel de intermediário exercido, por um lado, pelo 'pai-de-santo', e, por outro, pelo próprio exu [que é exorcizado e substituído nos rituais]. 

Elementos ritualísticos como flores, sal, vestimentas brancas, datas festivas etc. são continuamente reinterpretados, assimilados e ressignificados. As consultas com o 'pai de santo' também são repetidas, agora com as consultas e o aconselhamento com o pastor e com o ''ex-pai de encosto''. 

A próprias críticas às entidades do culto afro-brasileiro tem algum paralelo na interpretação de candomblecistas de que os 'orixás' e 'espíritos' presentes nos terreitos umbandistas são, na verdade, eguns ['orixás' não descem, 'exu' é um orixá, contato com os espíritos de mortos são vetados em terreiros em que se cultuam os orixás, e permeados de certos tabus, já que o contato com eguns pode trazer uma série de malefícios se realizados sem respeito às prescrições]. 

Em resumo, a identidade ''neopenteca'' reafirma e depende da identidade dos cultos que confronta. Há um jogo de espelhos, de inversões e de reatualizações da própria tradição popular que complica até mesmo o uso estrito da palavra ''conversão''.


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Fontes: 1)Vágner Gonçalves da Silva
2) Bruno Reinhardt

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