''Temos um heroi de volta nos Estados Unidos hoje porque temos um novo candidato para Presidência dos Estados Unidos, Barack Obama...Para todos nós que possuímos sonhos e esperança, [Obama] é um heroi.''
George Lucas
George Lucas possui conhecimentos de mitologia e história antiga, que usou para construir sua Saga, mas é possível também perceber sua sensibilidade liberal e social democrata em toda a narrativa |
Este texto é o terceiro de uma série
de postagens que se iniciou aqui e continuou aqui. Neles, debato as críticas
que conservadores e direitistas em geral fazem ao progressismo [liberal, embora
nem todos possam concordar com o uso desse último termo] que teria tomado conta
da franquia Guerra nas Estrelas agora que ela se encontra sob a batuta dos estúdios
Disney. Como fio condutor, dialogo com este texto de Mateus Diniz, que tem nítido sabor ''olavético''. Na postagem
de ontem, busquei mostrar que o protagonismo feminino tão criticado na trilogia
atual já estava intencionado e executado na saga desde seus
primórdios. Agora, pretendo avançar na discussão de outros aspectos
político-sociais presentes no Episódio VIII.
Um dos pontos que mais tem chamado a
atenção dos críticos ao arcabouço liberal em que ''Os Últimos Jedi'' estaria
mergulhado é o caráter multi-étnico dos personagens do filme. Temos importantes
personagens brancos, mas também orientais e negros. Mateus Diniz chega a citar
a presença de um [possível] relacionamento inter-racial entre Finn e Rose [n'O
Despertar da Força, Finn havia se enamorado por Rey]. Também nota que a relação
entre Phasma, que agora sabemos ser uma mulher branca, e Finn evoca uma crítica
ao racismo. Phasma diz para seu rival que ele ''sempre havia sido escória''. Posicionado em um plano mais elevado que sua antagonista, o novo heroi da Resistência responde
sorrindo, ''escória rebelde''.
Não vou ''problematizar'' a
interpretação da cena entre a líder Stormtrooper e seu antigo subordinado.
Digamos que ela tem de fato um caráter de luta racial. Nesse sentido, Guerra
nas Estrelas estaria fazendo de forma extremamente tímida uma metáfora que já
era bem mais explícita em filmes de ficção científica meio século atrás,
como é o caso d'O Planeta dos Macacos. Não me parece nada realmente ousado. Tampouco me
parece inovadora a busca por ''representatividade'' étnica, para usar uma
palavra bastante em voga em meios progressistas. Na verdade, essa discussão é
mais uma que remonta à primeira trilogia de Guerra nas Estrelas, quando para
responder às críticas de que sua galáxia era demasiadamente branca, George
Lucas criou o personagem de Lando Calrissian, vivido por Billy Dee Williams.
O mercenário/empresário nada mais era do que um Han Solo menos carismático, cujo papel se estica por dois filmes da primeira trilogia, e que muitos fãs querem ver de novo no
próximo episódio.
Muitos fãs se escandalizaram com um stormtrooper negro, mas a diversidade étnico-racial já é tema de Guerra nas Estrelas desde os primórdios |
Lando Calrissian não é uma exceção, e
eu não preciso sequer citar os importantes atores negros que, como dizer, não
aparecem nas telas em sua negritude humana mas que são inesquecíveis: a
voz de Darth Vader, por exemplo, é de James Earl Jones. Assim como temos uma
atriz negra, Lupita Nyong’o, por trás de Maz Kanata na atual trilogia, também
tínhamos Ahmed Best como modelo para Jar Jar Binks e Femi Taylor como a escrava
Oola, a dançarina acorrentada ao trono de Jabba. Outros personagens negros
aparecem na segunda trilogia, como o comandante das tropas voluntárias de
Naboo, o capitão Panaka vivido por Hugh Quarshie. Por fim, Lucas retratou negros na instituição mais significativa e quiçá mais
importante do governo da galáxia, o Conselho Jedi: o Mestre Windu, um dos mais poderosos cavaleiros da Ordem, e
interpretado na ''prequência'' por Samuel Jackson.
O Conselho Jedi, instituição mais importante da República, é composto por Mestres de raças, espécies e mundos diferentes |
Diante de todos esses exemplos, a
real questão a ser colocada é: por que os conservadores e direitistas ficaram
tão sensíveis com a escolha de John Boyega como um stormtrooper desertor? É
óbvio que a busca pela diversidade racial não foi
inventada do nada por Abrams e Johnson, ela é um elemento bastante antigo e com o qual todos os fãs cresceram. Os atuais personagens
orientais dão continuidade a essa tendência, não trazem nenhum salto qualitativo,
assim como a presença de três ou quatro mulheres em posição de liderança também
não transforma significativamente uma saga que já mostrava desde o início uma
ou duas com esse mesmo perfil. Seria perspicaz olhar
para o panorama político mais geral a fim de compreender que o cosmopolitismo
liberal sempre foi tema caro a Guerra nas Estrelas. Vamos elevar aqui a crítica
conservadora de Mateus Diniz a uma dimensão na qual ele não ousou chegar por
causa, talvez, dos limites de sua própria ideologia.
Guerra nas Estrelas é o sonho de
qualquer globalista. Ali, a aldeia global não é realizada em um planeta, mas em
toda a galáxia. Todos aqueles trilhões de seres se submetem a um governo único
e às mesmas instituições liberais: um Senado galáctico, uma espécie de
parlamentarismo universal, em que todos os sistemas tem voz. Temos a realização da paz kantiana tão desejada por iluministas e advogados do otimismo antropológico. Guerra nas Estrelas é a
defesa de uma ONU que deu certo e uma apologia à democracia. Essa galáxia é
extremamente cosmopolita: não são apenas as diferentes raças que convivem, mas
seres de diferentes espécies e mundos tem acesso a todas as atividades do
governo e da economia baseados fundamentalmente no mérito individual. Pior ainda, essa
galáxia é capitalista, e seu governo se dedica,
principalmente, à segurança e à regulação das atividades econômicas,
principalmente o comércio.
O Senado da Galáxia: o globalismo liberal abraça toda a galáxia, envolvendo-a em universalismo, meritocracia e cosmopolitismo |
Alguém pode recordar que Lucas se
fundamentou em teorias políticas clássicas, que
remontam a Platão e Aristóteles, pretendendo mostrar como uma democracia pode
se corromper e degenerar. A luta entre liberdade e tirania seria antiga, se manifestaria em toda a História. Correto, desde que não se esqueça que ele possuía também referências muito mais recentes na construção de seu
universo. George Lucas afirmou claramente em mais de uma entrevista que se
inspirou na administração Nixon e na Guerra do Vietnam para compor sua
batalha ideológica sideral. E para quem ainda tem algumas dúvidas, eis que o
maestro da franquia diz com todas as letras que ''Anakin Skywalker é um jovem
promissor que vai para o lado sombrio por causa de um político mais velho e se
torna Darth Vader. George Bush é Darth Vader. Cheney é o Imperador.'' Nada mais
explícito do que o terceiro ato d'A Vingança do
Sith, que coloca uma frase de George Bush na boca de Anakin/Vader enquanto Obi
Wan grita que ''defende a democracia''. Se o criador da franquia realmente pensa que esse embate entre tirania e democracia se perde nas brumas do tempo, ele claramente pensa também que o lado da luz está com os Democratas.
Anakin se torna Darth vader n'A Vingança do Sith, e em seu diálogo com Obi Wan reproduz uma fala de George Bush |
Evidente que é possível
reinterpretar essas mensagens à vontade, e o ''Universo Expandido'' e a
imaginação dos fãs estão aí pra se apropriarem como queiram da obra. Os
próprios conservadores e Republicanos fizeram isso muitas vezes, alegando que o
Império era na verdade o totalitarismo soviético, que a Força era uma metáfora
para os valores judaico-cristãos -- e Reagan não hesitou em dar o nome de
''Guerra nas Estrelas'' ao projeto de escudo de mísseis que os Estados Unidos
começavam a implementar nos anos 1980. Porém, o caráter progressista, liberal,
cosmopolita, globalista e vinculado à sensibilidade do Partido Democrata
americano é óbvio demais na Saga. O que a Disney faz é dar continuidade a essa
abordagem transformando a Primeira Ordem e o General Hux, comandante de seu
exército, em alegorias para os nazistas. Assim como os jovens pilotando caças
X-Wings, não posso imaginar nada mais, como dizer, americano. E Guerra nas Estrelas é isso,
desde o início é uma ode aos valores americanos triunfantes no pós Segunda
Guerra Mundial.
Luke Skywalker em momento Top Gun, realizando o sonho do jovem camponês de pilotar um caça em defesa da liberdade |
A apresentação da Primeira Ordem com
traços nazistas também serve ao objetivo da nova trilogia em dissociar a
história da família Skywalker. Quando Lucas decidiu n'O Império contra ataca
que Vader era pai de Luke e Leia, deu início a uma leitura que transformou a
sensibilidade à Força cada vez mais numa possibilidade de casta ou
aristocrática. Não me entendam mal: não estou concordando com as
críticas de fãs que pensam que Rey jamais poderia realizar grandes feitos sem
um treinamento rígido com um Mestre. Elas erram o alvo, esquecem que o próprio
Luke não passou mais do que alguns dias convivendo com Yoda antes de enfrentar o
próprio pai; e que, tendo conversado algumas horas
apenas com o Mestre Kenobi, foi capaz de pulverizar a Estrela da Morte sem
necessidade do computador de bordo de seu caça. A ''aristocratização'' da
sensibilidade à Força estava no apelo ao sangue Skywalker, mais tarde reforçado
com o conceito de midi-chlorians. Essa aristocratização nunca se consolidou de modo integral, pois existiam outras linhagens capazes de gerar seres poderosos
como Yoda, Windu, Palpatine e Obi Wan; e porque Anakin, o ''escolhido'', havia
nascido sem pai, gerado do sangue de uma escrava. Mas esse olhar era forte o
bastante para que muitos fãs vissem nos desenvolvimentos da nova trilogia a suprema blasfêmia, para eles, da ''plebeização'' da Força.
A Primeira Ordem como alegoria para o Nazismo: em Guerra nas Estrelas, o mal ancestral é sempre associado com os inimigos da sensibilidade democrata americana |
E eles estão parcialmente corretos, a Disney está
abandonado esse conceito e adotando uma perspectiva mais igualitária, que
defende que a Força, esse poder originário, pode se manifestar em qualquer
ponto do cosmos. Há uma ênfase maior no elemento presente no nascimento de
Anakin de uma escrava, transformando os proscritos, os órfãos, os marginais, os
indivíduos ligados às atividades mais baixas da República -- como sucateiros,
agentes de limpeza e lixeiros -- nos novos protagonistas da galáxia. Essa linha de
raciocínio prossegue no novo panorama político-social da saga. Em vez de
perder tempo com um confronto superficial entre partidários da democracia e da
ditadura, os novos filmes da Disney avançam como nunca antes críticas à elite
econômica que lucra com ambos os lados. O decodificador/ladrão vivido por
Benicio del Toro argumenta com Finn que essa elite vende armas tanto para a
Resistência quanto para a Primeira Ordem, tanto para ''mocinhos'' quanto para os ''bandidos''.
A guerra nada mais era do que uma ''máquina'' feita para engordar aqueles que são cínicos o suficiente para não atrelarem sua moral a um só dos lados. Rose,
falando com a voz dos escravos, espoliados e oprimidos, ensina a Finn que
ninguém fica tão rico naquela galáxia sem lucrar com a opressão, e revela seu
sonho de ''colocar abaixo aquela cidade'' em que os ricos se divertiam, expressão de seu desejo de derribar a ordem social que escora a galáxia.
Esse desenvolvimento da nova trilogia
nos traz a oportunidade de reler a saga para melhor, fazendo pó de todo o
arcabouço superficial erguido sobre as disputas partidárias americanas. Mais do
que democracia ou ditadura, trata-se da necessidade de uma revolução nascida das bases contra os parasitas que se divertem enquanto os dois lados políticos se matam.
Esotericamente, aquele mundo caótico e corrupto vê a Força se manifestar a
partir das castas mais inferiores, ou mesmo dos sem casta, dos
marginais -- uma apreciação vetada à perspectiva conservadora de cores ''olavéticas''. Noto aqui que Mateus Diniz, incomodado por [finalmente]
descobrir que havia diversidade étnica na franquia, não estendeu sua repulsa ao
estereótipo nazi-fascista dos vilões. Mas bateu forte no caráter subversivo representado
pela ascensão de uma Força que vem de baixo, onde supostamente se encontraria o ''lado
sombrio'', debaixo da Ilha, para onde Rey foi diretamente conduzida na primeira
lição que lhe ofertou Luke: esse poder bruto, o Diamante Negro [1] -- possível
futuro nome do próximo episódio -- cuja contemplação atenta foi capaz de levar
temor ao coração do Mestre.
Rey e o poder que vem debaixo da Ilha: há rumores que o próximo episódio será batizado de ''Diamante Negro'', uma menção ao temível poder bruto mencionado por Mestre Luke |
Na próxima postagem vou abordar o
tema Tradição na nova trilogia, mostrando também como o espírito meramente
conservador da maior parte das críticas atuais distorcem certas mensagens do
filme, impedindo que se vislumbre todo o potencial e qualidade dos rumos atuais
da Saga.
[continua]
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[1] Título do futuro episódio é revelado
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