sábado, 26 de abril de 2014

O Noé de Aronofsky entre o gnosticismo e o cristianismo -- parte 2

''… aconteceu de eu cair em um pecado muito perigoso para minha alma. Mas embora não fosse do meu hábito esconder uma serpente nas profundezas de meu coração, agarrei-a pela cauda e descobri imediatamente que ela era um médico.'' São João Clímaco citando um monge, ''Escada da Ascensão Divina''

“As paixões da carne podem ser descritas como pertencendo à mão esquerda, o orgulho como pertencendo à mão direita'' 

São Máximo o Confessor

A Arca contendo a síntese do cosmos material em meio às águas do Caos: Noé e seu mundo se recolhem por Justiça



No post anterior citei alguns temas tratados pelo filme ''Noé'', de Darren Aronofsky. Como eu dizia, o filme se desenrola a partir de uma mistura de mitologia gnóstica e cristã tradicional, realizando uma leitura do Dilúvio permeada por simbologia cabalística. Abaixo continuo falando de mais alguns temas abordados na obra.




A semente do Jardim e a Arca no Caos

Depois de tomar a poção que lhe é oferecida por seu avô Matusalém, Noé chega à conclusão que a Justiça Divina separará o joio do trigo por meio das águas, que purificarão e renovarão o mundo. Matusalém entrega a Noé uma semente original do Jardim do Éden, por ele plantada no acampamento de sua família em frente à alta montanha em que vive o grande xamã. Os anjos caídos desconfiavam de Noé, mas a semente  brota miraculosamente dando origem a quatro rios que se estendem trazendo vida ao ambiente estéril e chamando os animais para a região. É como se da semente surgisse uma reprodução em escala menor do Éden. Este tema será repetido na Arca, mas agora com um sentido centrípeto, já que ela reúne a síntese do mundo material em seu seio. Quando o Dilúvio se abate sobre a terra, Noé conta a história da Queda para seus filhos e acrescenta: ''Lá fora é mais uma vez o Caos, e aqui um microcosmo''. 

O corpo luminoso de Eva colhendo o fruto proibido, vermelho como a carne e pulsante como um coração




O maligno mundo material

Diferente da narrativa bíblica, no filme os filhos de Noé não eram casados. Se o 'Criador' escolhera salvar a descendência de Sete, onde estariam as esposas dos filhos de Noé que supostamente garantiriam a continuidade da linhagem? Essa pergunta, feita por Cam ao pai, permanecia sem resposta, inclusive diante da esterilidade de Ila, que se encontrava em amores com Sem. Andando em meio aos descendentes de Caim, que também foram atraídos pelos rios e árvores nascidas da semente do Éden e já sabiam da iminência do Dilúvio, Noé se vê diante de toda a corrupção humana. Era gente movida apenas por seus desejos, simbolizada na exploração gananciosa de minas de Tzohar e na domesticação e morte de animais. Segundo explicou Noé aos filhos, aqueles homens acreditavam que sua força provinha do consumo da vida dos animais esquecendo que ela tinha sua origem, em realidade, no 'Criador'. Os homens se alimentavam dos desejos que possuíam pelo mundo; nas visões que Noé recebia sobre a Queda, o fruto proibido e colhido pelos pais ancestrais tinha a forma e pulsava como um coração. Os descendentes de Caim chegavam a vender as próprias crianças para conseguirem carne. Neste momento, Noé tem uma revelação ao ver sua face no rosto de um homem que devorava um animal que conseguira em troca dos filhos. Transtornado, retorna ao acampamento parecendo ter encontrado a resposta para o enigma colocado por Cam. Não há esposas pois o mal não está presente apenas nos descendentes de Caim mas em todos os homens. A tarefa da família de Noé deveria ser a de salvar os animais, os únicos livres da Queda, e deixar que a impureza -- ou seja, a humanidade e não somente a linhagem cainita -- se extinguisse da face da terra. A mulher de Noé retruca, chamando a atenção para características positivas dos filhos: Sem era leal, Ham era íntegro etc. Mas Noé a interrompe, dizendo que Sem era servil, Ham era ambicioso e que até ela teria um óbvio defeito: ''E você...você faria de tudo, bom ou mau, pelos seus filhos, não é?'' Noé percebe claramente um aspecto fundamental da natureza feminina, ligada à perpetuação e preservação da vida, e o condena. 



Tubalcaim

Na narrativa escriturística, Tubalcaim é mineiro, ferreiro, inventor de armas, instrumentos de sopro e químico. Tais funções estão ligadas àqueles que dominam as artes mágicas, lidam com o segredo das forças telúricas e são artífices da civilização. O antagonismo entre Caim e Abel evidencia toda a desconfiança que as comunidades pastoris possuíam em relação ao modo de existência e à espiritualidade dos povos agrícolas, marcada pela ideia do homicídio e sacrifício primordial. No filme, Tubalcaim se intitula rei dos homens e vê em sua capacidade de decidir pela vida e pela morte a realização de sua igualdade com o 'Criador'. Sua religiosidade não é marcada pela obediência, mas pela busca e preservação da força para realizar aquilo que deseja -- encontrada por ele no consumo do mundo, nas minas de Tzohar e na alimentação carnívora. Ao ser impedido de entrar na Arca por Noé, neste momento protegido pelos ''Guardiões'', monta um exército para derrotá-los e sobreviver ao Dilúvio. Enquanto parte para a batalha pede ao 'Criador' para que lhe dirija a palavra, mas só encontra o silêncio. Tubalcaim consegue adentrar a Arca escondido, em meio ao caos do confronto entre homens e anjos decaídos, e ali se esconde com ajuda de Cam, que àquela altura estava rompido com o pai. Os dois planejam matar Noé, mas Cam demonstra dúvida sobre sua aptidão para o assassinato. Tubalcaim lhe diz que a capacidade de matar distingue o próprio ser humano: ''O homem não é regido pelos Céus, mas por sua própria vontade''. Nesta frase se encontra a chave de toda uma postura iniciática e teúrgica, que motiva o descendente de Caim a tomar de Lamec a pele da serpente edênica e a construir seu caminho para o interior da Arca ainda que contra a decisão de Noé. Mas se tem o segredo da centralidade da vontade e da decisão humana, falta a Tubalcaim a capacidade de ''escutar o Criador''. Cam toma a decisão de salvar o pai e mata Tubalcaim, que olha seu algoz nos olhos e lhe entrega a pele iniciática da serpente edênica dizendo: ''eis que você se tornou um homem''.

Noé e Tubalcaim: o profeta e o iniciado



Noé entre a Justiça e a Misericórdia

Os conceitos de Justiça e Misericórdia são usados tanto no cristianismo tradicional e no sistema cabalístico para se referirem a modos de ação de Deus no mundo, e se associam a temas morais, escatológicos, soteriológicos, cosmológicos e metafísicos, bem como ao simbolismo da direita e da esquerda. Nas Escrituras, Noé é escolhido por Deus por ser um ''homem justo'' e também Aronofsky o retrata buscando Justiça em todo momento. É esse ardor que o leva a matar caçadores de animais, entender a restauração do mundo como a dizimação da linhagem cainita e a concluir que sua própria família não merece ser perpetuada no novo mundo. Quando descobre que Ila -- cuja esterilidade foi sanada por Matusalém por pedido de sua mulher -- está grávida de seu filho Sem, Noé afirma que deixará o bebê viver caso seja homem, mas o matará caso nasça mulher e, portanto, seja capaz de perpetuar a humanidade. Nascem duas meninas e no clímax do filme Noé não consegue realizar sua ameaça. Pensando ter falhado com o 'Criador', se isola em uma caverna depois que as águas baixam, vivendo à parte dos seus. Quando Ila lhe pergunta porque poupou as netas, Noé afirma que ''naquele momento não sentia nada em seu coração senão amor absoluto''. Ila explica então que ele não fracassou, mas que o 'Criador' o havia colocado entre a Justiça a e Misericórdia, e que Noé havia escolhido por esta última. Um dos aspectos destes símbolos é a ligação da Justiça com a água, figurada na história pela comunhão e concentração das possibilidades do mundo na Arca durante o Dilúvio, um processo que ocorre com o próprio Noé. Já a Misericórdia, por um lado associada ao fogo -- que, segundo Matusalém, Enoque dizia que colocaria fim à criação no fim das contas --, também se liga, em um certo sentido, ao espraiamento do espírito divino no mundo. Noé inicia as netas com a pele da serpente edênica, que lhe foi dada por seu filho Cam, abençoando-as para que se multipliquem.

A serpente edênica abandonando sua glória original


A serpente da gnose

A serpente é um dos símbolos do próprio Cristo na tradição cristã. Ela está figurada na vara de Moisés, que jogada na terra se transforma em serpente diante do Faraó e devora as serpentes dos magos do Egito. Cristo também se compara à serpente de bronze enrolada em um poste que curava os israelitas no deserto quando picados por serpentes 'ardentes' enviadas por Deus para puni-los por sua falta de coragem. Ela é também expressão da phronesis, a prudência, sabedoria encarnada, que os Apóstolos devem emular quando enviados pelo mundo. Nas imagens da Queda no filme, Aronofsky faz a serpente edênica abandonar sua pele original e se tornar escurecida, vindo então a tentar o homem. A pele abandonada, em sua radiação gloriosa, é guardada pela linhagem de Sete e usada na iniciação do primogênito. A troca de pele da serpente, associada à queda e à morte, toma então o sentido contrário, de vitória sobre a morte através da própria morte.


[continua]


3 comentários:

  1. http://cinegnose.blogspot.com.br/2014/04/a-serpente-do-paraiso-rouba-cena-no.html

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  2. Vi ontem o filme motivado pelos seus textos. Francamente, sua análise é muito mais interessante do que o próprio filme. Esperava um filme entre Pi e a Fonte da Vida, mas achei que Noé ficou com cara de uma mistura de Avatar e Malhação.

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