domingo, 29 de setembro de 2024

O Anticristo

"Quando vocês ouvirem que Cristo chegou ou apareceu na terra, então saibam que se trata do anticristo."

São Zósimo da Palestina




Existem muitos ensinamentos e profecias dos Santos Padres que nos auxiliam a entender o Anticristo e seu reinado no fim dos tempos. Quando o tema é abordado, em geral se fala de forma imediata de política, buscando nos eventos cotidianos os sinais do fim dos tempos. Mas há um tópico que é ainda anterior a este, e que se liga também à angelologia. E remonta ao significado da Rebelião dos Anjos e da guerra que se estabelece a partir desta catástrofe cósmica.


Os Santos Padres dos primeiros séculos levavam muito a sério uma gama de literatura que compilavam tradições antiquíssimas, mas que não foram incluídos no cânone escriturístico. Dentre estas obras, O Livro de Enoque e o Livro dos Jubileus tem peso bastante considerável. Não vou me estender sobre este ponto para o qual já há texto neste blog: leia aqui.


Chamo a atenção para este trecho específico do texto: "E aí voltamos ao primeiro livro de Enoque e suas descrições das rebeliões dos Anjos, comandada por Azazel e por Samiyaza, e que ensinam aos homens segredos em diversos âmbitos, incluindo aí a magia, a metalurgia, as estratégias e armas de guerra, e outros tantos mistérios da Criação -- como ritos e cultos que envolvem aborto, abuso sexual, consumo de sangue, sacrifício humano e canibalismo. Estes mesmos "Guardiões" Angélicos estupram mulheres e geram uma descendência de Gigantes [Os Nefilins] que vão escravizar a maior parte dos seres humanos -- narrativa que deixou marca explícita no textos canônicos, como em Gênesis 6:1 a 4, ou como na ordem de São Paulo em I Coríntios 11:10 para que as mulheres usem véus como proteção contra os anjos [Os 'Guardiões' ardem de luxúria pelas mulheres, há todo um vínculo aí entre a natureza feminina, o erotismo, e a sabedoria divina].''


Pois bem, a existência de filhos de demônios caminhando materialmente sobre a terra é plenamente possível se levarmos em conta estas tradições e os ensinamentos dos Padres.


Santo Inácio Brianchaninov dizia que os espíritos demoníacos possuem o vício da luxúria, ainda que fossem incorpóreos. São Paulino de Nola explicava dessa maneira o uso de véus por parte das mulheres: ''Que compreendam por que Paulo ordenou que suas cabeças fossem cobertas com um grande véu: por causa dos anjos, isto é, dos anjos que estão pronto para seduzi-las e que os santos condenarão.''


Até o século III, todos os Padres interpretaram o trecho escriturístico sobre os Nefilins, Gigantes que seriam frutos das relações entre os Filhos de Deus e as filhas dos homens, como a união sexual entre anjos decaídos e mulheres, seguindo a interpretação presente nos relatos de Enoque.


São Metódio dizia, ''Os demais permaneceram nas posições para as quais Deus os criou e apontou; mas o diabo era insolente, e tendo nos invejado, agiu de modo perverso no dever que lhe foi confiado; como também assim fizeram aqueles que subsequentemente se enamoraram por pecados carnais e entraram ilicitamente em intercurso com as filhas de homens. Para estes também, assim como ocorre com os homens, Deus concedeu o fruto de suas próprias escolhas.''


São Justino Mártir foi ainda mais direto: ''Nos temos antigos, demônios perversos apareceram e defloraram mulheres.''


Depois do século III, muitos Padres encararam os ''Filhos de Deus'' como homens poderosos que haviam atingido uma gnose demoníaca. Mas essa explicação não entra em conflito com a anterior, como se depreende das explicações e profecias sobre o nascimento do anticristo. E também repercute uma literatura antiga, pois este é a explicação adotada no Livro dos Jubileus.



Esta questão está intrinsecamente vinculada ao Anticristo, o ''filho do diabo'', que nada mais é que uma imitação canhestra e grotesca de Deus. Santos afirmaram que ele será filho de mãe judia, e portanto judeu, ainda que nascido na Rússia, em uma região entre Moscou e São Petersburgo. A respeito do pai há, porém, indicações aparentemente conflitantes. Alguns indicaram que o diabo tentaria encarnar num homem em imitação ao Filho de Deus. Outros explicaram de forma mais pormenorizada que o anticristo teria pais humanos, mas no momento de sua concepção o diabo entraria no útero de sua mãe, se misturaria ao sêmen do pai, e transferiria pra criança a plenitude de seu poder.


São Nilo do Monte ensinou: ''Sim, ele nascerá do sêmen, mas sem participação do homem. Do sêmen, mas não de algum homem.''


São Serafim de Sarov profetizou de forma pormenorizada: ''Jesus Cristo, o verdadeiro Deus-Homem, o Filho de Deus Pai, nasceu em Israel por inspiração do Espírito Santo, e o anticristo, o homem-diabo, nascerá no meio dos russos. Ele será filho de uma prostituta da tribo de Dã e filho do diabo por meio da transferência artificial para ela do sêmen do homem, com o qual o espírito das trevas se estabelecerá em seu útero. Mas um dos russos que viverá no tempo do nascimento do anticristo (similar a São Simeão o Recebedor de Deus, que anunciou o nascimento da Criança Jesus ao mundo) vai amaldiçoar o bebê recém-nascido e anunciar ao mundo que se trata do verdadeiro anticristo."


Ora, os romenos acreditam que os strigoi [vampiros] podem conquistar materialidade física e passar a viver entre os homens. Eles seriam capazes de se reproduzir com mulheres. Os filhos dessas relações seriam "strigoi" vivos [Strigoi viu], entes amaldiçoados que se tornariam vampiros quando falecessem. Todo este folclore, que é mais universal do que se imagina, está em consonância com ensinamentos tradicionais.


É possível que, assim como o nascimento de Cristo foi preparado ao longo de séculos e séculos de ascetismo e purificação que culminou na linhagem que deu origem à Toda Santa e Pura Virgem Maria; assim também a chegada do anticristo seja preparada por toda uma linhagem diabólica, que vai culminar em uma virgem que é, ao mesmo tempo, prostituta de Satã. Esta é uma das facetas do Mistério da Iniquidade, que nada mais é que o grande plano concebido pelo Inferno em sua guerra cósmica contra a Igreja.


Este plano só entraria em sua execução final após a remoção do Katechon, citado pelo Glorioso Apóstolo São Paulo como o principal obstáculo ao surgimento do ''filho da perdição". O Katechon foi interpretado na Tradição da Igreja como o Imperador Romano. No Cristianismo Ortodoxo, o último Imperador Romano foi o Czar Nicolau II, assassinado pelos bolcheviques quando da Revolução Russa. Com o fim do Império Russo, o dique final para a chegada do anticristo foi removido.




É verdade que o anticristo é, ao mesmo tempo, uma força coletiva e psíquica, e também um tipo aplicado a diferentes personagens da História. Mas é também uma ''encarnação diabólica'', um homem que receberá o poder e a energia de Satã no fim dos tempos para impor o império do diabo na terra, tal como profetizado por diversos santos.


O anticristo será judeu, e pregará a tolerância religiosa, e uma religião universal. E terá imenso carisma, sendo reconhecido como um grande filantropo. Ele será também um mestre de magia, capaz de verdadeiros prodígios, e os judeus vão aclamá-lo como Messias. Todas estas informações estão profetizadas, e algumas delas podem ser lidas no Synaxarion do Domingo do Juízo Final.


O anticristo vai permanecer escondido, vivendo com discrição até os trinta anos de idade. Quando finalmente se revelar ao mundo, será sedutor, trará palavras de paz, e vai conquistar a simpatia da maior parte das pessoas. Será visto como aliado, inclusive, por muitos cristãos. Só quando estiver já com o poder nas mãos que seu ódio pela Igreja vai se tornar explícito e sumamente violento.


Segundo Santo Efraim o Sírio, "Ele virá em uma imagem que seduzirá a todos. Como um homem humilde, gentil, que diz odiar a falsidade, rejeita os ídolos, prefere a piedade e a bondade, ama os pobres, tem as feições belas, é doce com todos, e respeita especialmente a nação judaica, pois ela estará aguardando sua chegada [...]. Com astúcia, tomará medidas para agradar a todos, não aceitará presentes nem se expressará com ira, não se mostrará taciturno, mas seduzirá o mundo com bons modos, até que seja entronizado."


Santo Inácio Brianchaninov afirmou que "Aqueles que não compreendem o Cristianismo verão nele [no anticristo] um representante e defensor da verdadeira religião, e se unirão a ele. Ele se vangloriará, se anunciando como o prometido Messias, e os filhos da sabedoria do mundo vão saudar esta apresentação. Por causa de seu renome, poder, capacidade geniais e seu mais amplo desenvolvimento dos elementos do mundo, será visto por eles como um deus, e eles se tornarão seus cúmplices."


A descrição acima se aproxima muito da de um ''avatar'' da Nova Era, tão ao gosto de certa espiritualidade contemporânea alimentada pelo ocultismo e esotericismo ocidental dos últimos séculos. Ela se adequaria, por exemplo, às tentativas da Sociedade Teosófica de criar um ''novo Cristo'' na figura de Krishnamurti. Não é impossível que o Mistério da Iniquidade trabalhe no mesmo sentido, mas com a ação de fato comandada por Satã e seus anjos decaído, que ''ardem de luxúria'' pelas mulheres, e são capazes de gerar linhagens de proles demoníacas.


Há a formação de toda uma mentalidade, toda uma expectativa, todo um clima que nasce da confluência de uma espiritualidade que gira cada vez mais em torno do fenomenalismo, da busca por poderes psíquicos, mas também um vago sentimentalismo universalista travestido de humanismo, uma confiança sem fim nas possibilidades humanas, a ânsia pela globalização e unificações mundiais, o deslumbramento com a tecnologia, o fascínio com o fenômeno UFO etc.



O anticristo não vai seduzir o mundo apenas com belas palavras e ações filantrópicas. Ele será capaz de prodígios imensos, que deixarão todos os povos estupefatos. O anticristo receberá seu poder diretamente de Satã, nada nele estará livre da influência direta do diabo. E ele será capaz de enganar quase todos com este poder prodigioso, e isso inclui os próprios cristãos.

Há profecias que explicam que, antes da ascensão do anticristo ao poder, o mundo estará dividida entre dez Reis. O anticristo é o ''décimo primeiro rei'', que vai tentar impor sua autoridade sobre todos os demais. Sete dos reis vão se submeter voluntariamente ao anticristo. Três deles vão resistir e manter sua independência. Difícil saber até que ponto estes números são ''literais'', mas o conflito político descrito é evidente: O anticristo vai tentar dobrar os três reis romanos ''rebeldes'' pela força das armas. Será uma guerra mundial, escatológica, em que o filhote do capiroto estabelecerá seu domínio no globo.


Uma vez ''rei global'', a hipócrita doçura do anticristo vai chegar ao fim. Seu governo se tornará um totalitarismo sufocante, opressivo e genocida. Ele vai reconstruir o templo dos judeus em Jerusalém, e se fará adorar como deus. E perseguirá os cristãos que não o louvarem como Deus, aqueles que permanecerão fiéis à igreja. A perseguição será brutal, como nunca se viu na História, e ninguém se salvaria caso o tempo de reinado global do anticristo não fosse encurtado por misericórdia divina. O culto público a Cristo e a Eucaristia serão proibidas, e a Igreja terá de retornar às catacumbas.

Este tema ressoa bastante a perseguição aos cristãos no Império Romano antes de São Constantino e São Teodósio. O Imperador Romano era divinizado, e encarado como uma autoridade universal. Os habitantes do Império eram obrigados a adorá-lo, particularmente no Exército. Os cristãos eram mal vistos pelo governo imperial por causa da recusa a essa adoração, entendida como ausência de lealdade à Roma.


Desse modo, as profecias indicam que o anticristo vai reeditar o que foi realizado na Roma pagã nos primeiros séculos da Igreja. Mas com uma diferença, ele vestirá a carapuça de Messias Judeu, recebendo apoio do ''povo eleito''. Daí porque a reconstrução do Templo de Jerusalém sempre foi encarada por muitos santos como o indicativo da chegada do reinado diabólico na terra.

Há outros mistérios nesse período, como a pregação dos dois santos profetas que denunciarão o anticristo, serão assassinados por ele e, ressuscitados por Deus, vão subir até os Céus. Resumindo, o anticristo será derrotado na Segunda Vinda Gloriosa do Senhor, que ocorre no momento em que a Igreja já não puder mais realizar ofertas sobre a terra. Neste exato momento, o anticristo terá reunido todos os povos sob sua tirana para o confronto final.

E então virá o fim, de modo estrondoso, com a destruição de todas as civilizações, com a mudança de lugar de todos os mares, em que ''todas as montanhas se tornarão planas''. Deus invadirá a terra dando fim ao governo de três anos e meio do anticristo. E dando fim ao mundo tal como o conhecemos.


terça-feira, 24 de setembro de 2024

O CRISTIANISMO ENTRE GUÉNON E SCHUON, ou: como a Igreja dividiu os Iniciados Tradicionalistas

 


Uma das divergências mais conhecidas entre René Guénon e o Fritjof Schuon se deu quanto à natureza do protestantismo, mas trazia elementos que abarcavam o Cristianismo como um todo e até mesmo a compreensão de cada um desses autores sobre o significado de esoterismo e Iniciação.


Segundo Guénon, o Cristianismo nasce como um esoterismo sem qualquer dimensão exotérica, uma via iniciática de realização espiritual sem o objetivo de gerar um arcabouço religioso voltado a irrigar as relações sociais e institucionais de dada sociedade ou civilização.


Todos os ritos cristãos [Batismo, Eucaristia etc.] e todas as doutrinas [Santíssima Trindade, Encarnação do Verbo etc.] seriam originalmente esotéricas, reservadas a Iniciados. Os 'sacramentos' [mistérios] veiculariam forças divinas capazes de elevar o homem a um novo estado de SER [os ''estados universais'' ou angélicos], suplantando os limites da individualidade. Enfim, seriam propriamente iniciáticos também.


Mas o mundo romano estaria decadente, corrompido e indo pro buraco. Notem que Guénon tinha uma visão negativa sobre a Antiguidade Clássica. Para ele, tanto a civilização grega quanto a romana eram emblemas da queda e da degeneração, uma visão que causaria calafrios em qualquer evoliano.

O francês aceitava o argumento iluminista de que o Renascimento, o Humanismo e a Modernidade eram reemergências das tendências dominantes da Antiguidade Clássica, e por isso os criticava igualmente . No pensamento de Guénon, a Idade Média era uma civilização superior a estes dois outros momentos, um oásis no deserto. Em uma abordagem guenoniana, é até possível identificar a era das trevas [Kali Yuga] com o surgimento da civilização greco-romana, cujas consequências mais deletérias foram mitigadas ou obstaculizadas pelo cristianismo.

Era necessária uma retificação daquele mundo mediterrâneo degradado representado então pelo Império Romano. A Providência Divina terira feito com que a Igreja desenvolvesse um exoterismo, assumindo a missão de colocar ordem naquele caos. A Idade Média cristã que sucedeu a civilização mediterrânea seria, para Guénon, fruto da ação de Deus para estancar os problemas que levavam todo o mundo romano ladeira abaixo. A Igreja era o Katechon, a barreira contra o Anticristo, contra o surgimento do Ocidente. Toda essa narrativa de Guénon trai uma dimensão bastante vinculada ao catolicismo-romano europeu de seu tempo, que enfrentava os desafios do avanço da Ordem liberal.

O exoterismo desenvolvido pela Igreja na forma dos dogmas, da massificação do cristianismo, e do Direito Canônico seria uma solução proporcionada pelo próprio Deus [este ponto é importante para o francês]. Pois os ritos e doutrinas também 'desceram' até o âmbito do exoterismo. Os 'sacramentos' se tornaram exotéricos, ritos de agregação religiosa importantes para a consolidação e sobrevivência da individualidade [salvação da alma], mas não mais para a realização espiritual [entrada em estados superiores do SER].

O discurso guenoniano abriu problema importante nas obras tradicionalistas: já que a Igreja teve de se tornar exotérica por 'decreto divino', onde foi parar o esoterismo cristão? Nos mosteiros? Em ordens de cavalaria? Em grupos hermético-cristãos?

Já o protestantismo, que nasceu e cresceu impulsionado pelas forças desagregadoras da Cristandade Latina [Idade Media europeia], não seria nem esotérico nem exotérico, mas uma forma religiosa não tradicional, ou seja, sem qualquer vínculo com elementos sagrados, com forças apurusheia [superiores ao homem]. Era só um agente do caos ligada ao desfazimento da ordem cristã medieva, que era divina segundo Guénon.

Bom, o movimento de Fritjof Schuon se desenvolveu de modo muito poderoso nos EUA, país que tem matriz protestante e evangélica, além de iluminista e maçônica. Parte considerável dos seguidores da tariqa Maryammya cresceu dentro de igrejas e seitas protestantes [uma verdade que se aplica à própria família de Schuon], e não gostaria de abandoná-las e se converter ao catolicismo romano, ao islamismo, hinduísmo etc.

A tariqa Maryammya se vendia como uma organização esotérica capaz de ''complementar'' o exoterismo de qualquer religião tradicional. Desse modo, Schuon não exigia conversão de seus seguidores caso eles já estivessem em uma via tradicional [a não ser em casos excepcionais], apenas submissão a ele, o guru, no âmbito ''esotérico''.

Ele se constituía, portanto, como uma autoridade ''supra-religiosa'' e universal, capaz inclusive de reler todas as demais doutrinas segundo seus ''ensinamentos esotéricos''. Mas se o membro não praticasse nenhuma via tradicional, então teria de se converter a uma para ser aceito na Maryammya. Eis aí o dilema porque passavam os cristãos em geral, que não sabiam se existia esoterismo na Igreja, e os protestantes/evangélicos em particular, sequer considerados uma forma tradicional.

A solução de Schuon foi 'revisar' a abordagem guenoniana -- pelo menos quanto a Lutero, e não tanto quanto ao calvinismo. O suíço desvinculou o que cada via espiritual era enquanto 'arquétipo' e os exoterismos a que poderia dar surgimento, alegando, de modo provocativo, que todo exoterismo era 'herético' [desviante] em determinado grau quando comparado ao esoterismo.

Essa perspectiva schuoniana era um ''escândalo'' do ponto de vista guenoniano, para o qual a ortodoxia era importante mesmo no âmbito exotérico. Na verdade, Schuon se aproximava muito da teoria dos três ramos do cristianismo: o luterano/protestante/evangélico, o católico-romano, e o católico-ortodoxo.

O suíço negava também a modernidade de Lutero. O 'Reformador' seria acima de tudo um homem medieval que desenvolveu um exoterismo cristão compatível com a alma mística germânica -- outro ponto muito importante para o perenialismo schuoniano, já que uma das justificativas para a necessidade da pluralidade exotérica estaria na diversidade de tipos e temperamentos entre as populações humanas.

A partir daí, o líder da Maryammya 'reinterpretou' os ensinamentos luteranos de modo 'esotérico' [ou segundo a doutrinas da Tariqa que liderava], visando demonstrar como eram válidos e legítimos segundo o 'arquétipo espiritual' cristão e uma forma adequada de misticismo germânico. Reinterpreta inclusive o conceito de sacramento, visto como símbolo operativo exterior que ativava um princípio interior, justificando a ênfase luterana na fé individual -- e também certas abordagens mágicas do ocultismo oitocentista.

Para complementar, Schuon se afasta da narrativa guenoniana de que os sacramentos teriam se exoterizado no fim da Antiguidade. Para ele, eles continuam mantendo sua eficácia iniciática, de modo que os protestantes poderiam continuar praticando sua religião sem necessidade de se converter ao Islamismo etc.

A pendenga sobre o Cristianismo levou à ruptura definitiva e explícita entre René Guénon e Fritjof Schuon. E demarca também a divergência de ambos quanto a aspectos fundamentais do Tradicionalismo. E acima de tudo aponta a imensa dificuldade de adequar o cristianismo ao discurso tradicionalista.


Ícone de Cristo com uma espada no Mosteiro da Ascensão, em Kosovo


A perspectiva guenoniana leva à ênfase cada vez mais estrita na ortodoxia religiosa, em consonância cada vez maior ao Islã sunita e ao sufismo -- não surpreende que no fim dos anos 1930 Guénon considerasse todo o cristianismo como um cadáver espiritual, repercutindo uma posição mainstream dos sunnis. De modo muito peculiar, Guénon nunca aderiu à ideia de que ''todas as religiões são iguais e levam a Deus''. Esta afirmação moderna seria incompreensível para ele. Quanto mais o tempo passou, mais ele pareceu identificar a religião verdadeira com o próprio Islã -- ainda que mantivesse posições que escandalizariam boa parte dos sunitas.

Já a perspectiva schuoniana leva à relativização gradual de todas religiões em um sentido bastante contemporâneo. Todas elas são consideradas ''heréticas'' diante da verdadeira ortodoxia: o esoterismo da Unidade Transcendental cujos ensinamentos eram proporcionados pelo próprio Schuon. Estão borradas de vez as próprias delimitações entre ortodoxia e heterodoxia religiosa. As religiosidades eram apenas meios que podiam ser manipulados e reelaborados e reinterpretados segundo a Verdade esotérica, desde que o ''iniciado'' tivesse alguma boa vontade.

E desse modo, a Igreja dividiu pela espada a unidade dos Tradicionalistas, que é mais aparente do que muitos imaginam.

sábado, 3 de agosto de 2024

OS MAIORES DA HISTÓRIA DO FLAMENGO -- Centroavantes: Gaúcho e Romário, o "Baixinho", o "Gênio da Grande Área"

 Continuação da série dos maiores da história do Flamengo, apresentada por posição e em ordem cronológica. Gaúcho, formado nas divisões do Flamengo mas que caminhou por outros caminhos, retornou ao clube de coração no fim da década de 1980 para se tornar um vencedor. E um Flamengo "falido" em meados dos anos 1990 foi capaz de tirar o maior jogador do mundo e craque da Copa de 1994 daquele que era então o clube mais badalado do mundo: Romário vinha aí, e o Bicho ia pegar.


7) GAÚCHO [1984; 1990/93]


A primeira vez que ouvi falar a sério de Luís Carlos Tóffoli foi na Copa União de 1988. Ele era então centroavante do Palmeiras, que jogava contra o Flamengo no Maracanã. Depois das duas substituições então permitidas, o goleiro alviverde se machucou. E lá se foi Gaúcho pro gol pra tentar segurar o empate contra o Campeão Brasileiro.


Conseguiu, mas não para por aí. O regulamento era estranho. Com a justificativa de que o jogador brasileiro tinha de se acostumar com disputas de pênaltis [a eliminação na Copa da França deixou traumas], todo jogo que terminasse empatado naquela competição acabava sendo decidido por penalidades máximas.



Funcionava assim: o vencedor da partida levava 3 pontos [em vez dos 2 tradicionais até então]. Se empatasse, os times levavam um. Mas iam pra disputa de penais, e quem ganhasse levava mais um. [num total possível de 2.] Pois não é que Gaúcho pegou duas cobranças, de Zinho e Aldair, marcou a dele e saiu como o herói do dia?


Ainda bem que ele baixou na Gávea dois anos depois, já aos 26 anos de idade, ainda com tempo pra se redimir daquela jornada inusitada. Mas, eis a surpresa: não era sua primeira passagem pelo Flamengo. Jogou nas divisões de base do clube entre 1982 e 84, e foi profissionalizado n’O Mais Querido. Sem chances na equipe, partiu para outras.



Quando voltou, revelou uma faceta já vista em outros atletas: assim como Renato Portaluppi [e do portenho Doval antes dele], Luís Carlos, nascido em Canoas, Rio Grande do Sul, “cariocou”. Boêmio, com fama de mulherengo e cervejeiro, se tornou amigo do peito de Renato, que estava em sua segunda passagem no Flamengo. Juntos, ganharam a Copa do Brasil e se tornaram uma das duplas dinâmicas mais famosas do ambiente esportivo pátrio.



Com a bola no pé, Gaúcho era um “cintura dura”. Que não lhe pedissem para driblar adversários, pois não sabia. Tinha passe ruim, e péssima mobilidade. Seu chute de canhota era até forte, mas sua principal qualidade era outra: era mortífero no jogo aéreo. Não apenas se posicionava de modo perfeito, como tinha excelente tempo de bola, capacidade de finalização e, ainda mais letal, um cabeceio poderoso.



Virou ídolo e acumulou artilharia de campeonatos. Mesmo sem Renato ao lado, foi fundamental na conquista do Carioca de 1991 e do Brasileiro de 1992. Nesse último, foi pivô da confusão que afastou Portaluppi do Botafogo e o levaria de volta à Gávea no ano seguinte. Depois da derrota alvinegra contundente no primeiro jogo da final, os dois amigos apareceram sorridentes em um churrasco juntos à beira da piscina. Nada demais, se não jogassem em times diferentes e a torcida do Glorioso não estivesse prestes a amargar aquele que é seu mais doloroso vice diante do Flamengo.



No ano seguinte, a ligação com a torcida arrefeceu. Gaúcho saiu do Mengão, rodou por clubes [alguns com ajuda de Renato, como sua ida para o Atlético Mineiro em 1994 e para o Fluminense em 1995]. Se aposentou cedo dos gramados, com apenas 32 anos, e foi realizar seu sonho de fundar um clube em Mato Grosso, o atual Cuiabá.



Gaúcho está entre nossos vinte e dois principais goleadores, com exatos 99 gols. Faleceu ainda muito jovem, com apenas 52 anos, vítima de um câncer. É estrela nos Céus da Nação Rubro-Negra.



8) ROMÁRIO, “O BAIXINHO”, O “GÊNIO DA GRANDE ÁREA” [1995/96; 1996/97; 1998/99]
“Se o Romário fosse argentino, seria mais endeusado que Maradona”.
Pelé



Os valores para os ingressos do Maracanã tinham sido severamente majorados para o Fla vs Flu daquele dia 12 de fevereiro de 1995. As arquibancadas chegaram ao incomum preço de 10 reais. Filas imensas se formavam nas bilheterias do estádio. Eu estava em uma delas, aguardando com ansiedade a vez de garantir meu lugar no jogo dos sonhos da minha geração.



Deixe-me voltar no tempo: Um ano antes, um Flamengo quebrado, e que havia vendido a preço de banana uma das gerações mais talentosas de suas divisões de base, penava com salários atrasados e com um time de garotos imaturos incapaz de fazer frente aos principais times brasileiros. Naquela mesma temporada, a seleção brasileira carregou a esperança de um país machucado por um jejum de 24 anos na Copa do Mundo. A redenção do nosso futebol aconteceu principalmente pelos pés de um ponta-de-lança/Atacante que havia sido qualificado por Cruyff de “O Gênio da Grande Área”, e que era um dos rostos mais típicos do mestiço malandreado do Rio de Janeiro.



Eram tempos em que o rádio ainda tinha uma penetração enorme no dia a dia das grandes metrópoles, principalmente no futebol. As transmissão de TV não eram nem de longe tão fartas quanto hoje em dia, muito menos os programas dedicados ao futebol. Eu ouvia rádio durante boa parte do dia [e da noite], para saber das notícias e análises do Flamengo e principais competições.



Em um programa de uma fria madrugada durante a Copa do Mundo, o repórter Elso Venâncio, da Rádio Globo, conseguiu uns segundos com Romário. E fez uma pergunta surpresa, dando a entender que o atleta havia sido procurado por dirigentes do Flamengo. Romário riu e não confirmou nem desmentiu.

Contei para todos do meu círculo o que escutei. Todos riram, é claro. Ninguém acreditou na possibilidade. Romário era simplesmente o maior jogador do mundo, atuando no maior time do planeta, um dos clubes europeus mais endinheirados, e no auge de sua forma física e técnica. Naquele mês, levantaria a Copa do Mundo.



Mas eis que em janeiro de 1995, semanas antes da cena que descrevi no primeiro parágrafo, uma chamada urgente do Jornal Nacional soltava a bomba: Kleber Leite, recém empossado Presidente do Flamengo, e ex-repórter da Rádio Globo, estava na Espanha tentando fechar a contratação do Baixinho.

Não era como se um grande craque, já em fim de carreira, idoso, ou sem espaço na Europa, estivesse voltando para o Brasil. O Flamengo, mesmo ''falido'', estava tirando da Europa aquele que acabava de ser eleito o melhor jogador da temporada de 1994. Era incrível.



Voltando para o meio dos cem mil pagantes daquele Fla vs Flu, lembro quando um grito, no início tímido, começou a se formar no “povão” [ele não vinha das torcidas organizadas]. Era uma resposta à animada torcida tricolor que desafiou a rubro-negra com cânticos meia hora antes da partida. Os versos, simples como o “povão”, ganharam corpo e tomaram o estádio. Eram um canto de guerra, mas também catarse, em tom de ameaça, mas também de festa, que não só os flamenguistas, mas aquela geração inteira de brasileiros, que descobrira recentemente o que era ser campeã do mundo, podia entoar com prazer.

“Ô-lê-lê, Ô-la-lá
Romário vem aí
E o bicho vai pegar”

A contratação de Romário foi a pioneira em uma era do futebol pátrio que, se apoiando em parte na ficção cambial estabelecida por Fernando Henrique Cardoso [e que praticamente equiparava o Real ao dólar, iniciando uma farra de importações e de destruição da indústria nacional], permitia que os nossos clubes, já não mais protegidos pela Lei do Passe – a desregulamentação dos “mercados” atingiu todos os âmbitos --, pudessem oferecer salários próximos aos do Velho Mundo, seduzindo parte considerável dos principais atletas do país. Foi um cenário que durou até a implosão completa do câmbio fixo, em 1999/2000.



Deixando de lado o contexto econômico, Romário foi o jogador tecnicamente mais completo que tive o prazer de acompanhar [peguei só o final da carreira de Zico, já a do Baixinho vi praticamente inteira, desde sua explosão no Vasco da Gama em 1985/86].

Sua habilidade era lendária, a explosão no pique dos primeiros trinta metros impossível de acompanhar. Ele tinha tudo. Drible, passe, cruzamento, posicionamento, jogo aéreo impecável [mesmo com apenas 1,68m de altura] e uma capacidade de finalização absurda.



O Romário que vestiu o Manto Sagrado já estava em declínio físico, que se acentuou ainda mais depois de uma cirurgia em maio de 1995, depois de pisar em um buraco no gramado do Maracanã na partida de ida das semifinais da Copa do Brasil, contra o Grêmio. Já não era mais o Ponta-de-Lança/Atacante, mas um centroavante absolutamente mortal. E, como centroavante, foi o melhor que vi jogar também.

A identificação com a Magnética foi brutal. Mesmo sem cumprir todas as expectativas de títulos que carregava, nunca vi a torcida do Flamengo comprar a briga de um jogador como comprou as de Romário.



Primeiro, o Baixinho brigou com toda a imprensa. Virou o inimigo número um da grande mídia, que achava que podia construir e destruir ídolos. Repito que eu escutava muito as rádios, e sou testemunha da campanha da imprensa contra Romário. Ainda que os jornalistas conseguissem prejudicar a imagem e a carreira do Baixinho com o público mais geral, era ela quem tinha o filme queimado com a torcida que acompanhava o dia a dia e frequentava os estádios.

Quando a grande mídia criou uma [falsa] polarização entre Romário e Sávio, após a perda do Carioca de 1995, a torcida do Flamengo comprou a briga do camisa 11. Sávio foi vaiado no Maracanã, para desespero de Gílson Ricardo, um dos repórteres da Globo daqueles tempos. Depois Kleber Leite decidiu vender o Baixinho para o Valencia e “trocá-lo” por Bebeto. Pois o baiano foi apupado sem misericórdia em sua estréia no clube, inviabilizando sua permanência a médio prazo. O público inteiro clamou por Romário naquele dia.


A Magnética exigiu o retorno de Romário à seleção, dobrando Zagallo, que, por birra, o deixou de fora da Olimpíada de 1996 [que perdemos]. E tínhamos certeza absoluta que, naqueles dias em que só se falava de Ronaldo Fenômeno, o verdadeiro monstro da Pátria era o baixinho folgado. Não à toa, em 1997, o maior goleador da dupla Rô-Rô foi o centroavante d'O Mais Querido.



O amor não foi abalado nem mesmo quando Romário brigou com Zico por causa do corte do craque na preparação para a Copa da França em 1998.

O Baixinho retribuiu efusivamente essas manifestações de carinho. Sentiu na pele a frustração e angústia da torcida com a falta de título no ano do Centenário. Quando o radialista Washington Rodrigues, até então um grande crítico de Romário, se tornou técnico do time em 1995, criou um vínculo de amizade forte com o “espeto assassino” [como ele chamava o camisa 11], e o ensinou o que era ser rubro-negro.



A partir de então, Romário, que nunca foi de meias palavras ou concessões, escancarou sua identificação com a torcida rubro-negra, uma paixão que nunca teve fim. No jogo das estrela que Zico faz todo ano, e que em 2010 marcou a reconciliação entre os dois ídolos, Romário foi o jogador mais festejado pela Magnética. Depois de um de seus gols, chegou perto do setor em que ficavam as organizadas do clube, apontando alternadamente para o seu coração e depois para as arquibancadas. Pequenos gestos que dizem muito.

Infelizmente, o Baixinho teve de sair do clube por causa do plano de Edmundo Santos Coelho de se livrar da herança de Kleber Leite e fundar uma nova era a partir dos contratos com a ISL. Era um jogador que eu gostaria de ter visto encerrar sua carreira no Flamengo.



Mas se não nos legou nenhuma profusão de taças, Romário deixou para os flamenguistas momentos inesquecíveis, e que seria bobagem citar um a um. Ele foi a cara do clube, um legítimo representante da torcida, e um símbolo vivo da grandiosidade a que o Flamengo estava destinado.

Foi artilheiro dos Cariocas de 1996, 97, 98, 99, do Rio São Paulo de 97, da Copa do Brasil de 1998 e 1999, da Mercosul de 1999. É simplesmente o 5º maior artilheiro da nossa história, com o mesmo número de gols de Pirillo [204], mas média ligeiramente inferior [0.86 a 0.85].



Foi campeão da Taça Guanabara em 1995/96 e 1999; Campeão Carioca em 1996 [invicto] e 1999; Campeão da Conmebol em 1996 e da Mercosul em 1999.

É responsável pelo orgulho flamenguista [e brasileiro!] de uma geração inteira de torcedores. Nesse sentido, foi o Leônidas da Silva de uma era em que o clube não se preparou estruturalmente para mudar de patamar profissional.