Uma das divergências mais conhecidas entre René Guénon e o Fritjof Schuon se deu quanto à natureza do protestantismo, mas trazia elementos que abarcavam o Cristianismo como um todo e até mesmo a compreensão de cada um desses autores sobre o significado de esoterismo e Iniciação.
Segundo Guénon, o Cristianismo nasce como um esoterismo sem qualquer dimensão exotérica, uma via iniciática de realização espiritual sem o objetivo de gerar um arcabouço religioso voltado a irrigar as relações sociais e institucionais de dada sociedade ou civilização.
Todos os ritos cristãos [Batismo, Eucaristia etc.] e todas as doutrinas [Santíssima Trindade, Encarnação do Verbo etc.] seriam originalmente esotéricas, reservadas a Iniciados. Os 'sacramentos' [mistérios] veiculariam forças divinas capazes de elevar o homem a um novo estado de SER [os ''estados universais'' ou angélicos], suplantando os limites da individualidade. Enfim, seriam propriamente iniciáticos também.
Mas o mundo romano estaria decadente, corrompido e indo pro buraco. Notem que Guénon tinha uma visão negativa sobre a Antiguidade Clássica. Para ele, tanto a civilização grega quanto a romana eram emblemas da queda e da degeneração, uma visão que causaria calafrios em qualquer evoliano.
O francês aceitava o argumento iluminista de que o Renascimento, o Humanismo e a Modernidade eram reemergências das tendências dominantes da Antiguidade Clássica, e por isso os criticava igualmente . No pensamento de Guénon, a Idade Média era uma civilização superior a estes dois outros momentos, um oásis no deserto. Em uma abordagem guenoniana, é até possível identificar a era das trevas [Kali Yuga] com o surgimento da civilização greco-romana, cujas consequências mais deletérias foram mitigadas ou obstaculizadas pelo cristianismo.
Era necessária uma retificação daquele mundo mediterrâneo degradado representado então pelo Império Romano. A Providência Divina terira feito com que a Igreja desenvolvesse um exoterismo, assumindo a missão de colocar ordem naquele caos. A Idade Média cristã que sucedeu a civilização mediterrânea seria, para Guénon, fruto da ação de Deus para estancar os problemas que levavam todo o mundo romano ladeira abaixo. A Igreja era o Katechon, a barreira contra o Anticristo, contra o surgimento do Ocidente. Toda essa narrativa de Guénon trai uma dimensão bastante vinculada ao catolicismo-romano europeu de seu tempo, que enfrentava os desafios do avanço da Ordem liberal.
O exoterismo desenvolvido pela Igreja na forma dos dogmas, da massificação do cristianismo, e do Direito Canônico seria uma solução proporcionada pelo próprio Deus [este ponto é importante para o francês]. Pois os ritos e doutrinas também 'desceram' até o âmbito do exoterismo. Os 'sacramentos' se tornaram exotéricos, ritos de agregação religiosa importantes para a consolidação e sobrevivência da individualidade [salvação da alma], mas não mais para a realização espiritual [entrada em estados superiores do SER].
O discurso guenoniano abriu problema importante nas obras tradicionalistas: já que a Igreja teve de se tornar exotérica por 'decreto divino', onde foi parar o esoterismo cristão? Nos mosteiros? Em ordens de cavalaria? Em grupos hermético-cristãos?
Já o protestantismo, que nasceu e cresceu impulsionado pelas forças desagregadoras da Cristandade Latina [Idade Media europeia], não seria nem esotérico nem exotérico, mas uma forma religiosa não tradicional, ou seja, sem qualquer vínculo com elementos sagrados, com forças apurusheia [superiores ao homem]. Era só um agente do caos ligada ao desfazimento da ordem cristã medieva, que era divina segundo Guénon.
Bom, o movimento de Fritjof Schuon se desenvolveu de modo muito poderoso nos EUA, país que tem matriz protestante e evangélica, além de iluminista e maçônica. Parte considerável dos seguidores da tariqa Maryammya cresceu dentro de igrejas e seitas protestantes [uma verdade que se aplica à própria família de Schuon], e não gostaria de abandoná-las e se converter ao catolicismo romano, ao islamismo, hinduísmo etc.
A tariqa Maryammya se vendia como uma organização esotérica capaz de ''complementar'' o exoterismo de qualquer religião tradicional. Desse modo, Schuon não exigia conversão de seus seguidores caso eles já estivessem em uma via tradicional [a não ser em casos excepcionais], apenas submissão a ele, o guru, no âmbito ''esotérico''.
Ele se constituía, portanto, como uma autoridade ''supra-religiosa'' e universal, capaz inclusive de reler todas as demais doutrinas segundo seus ''ensinamentos esotéricos''. Mas se o membro não praticasse nenhuma via tradicional, então teria de se converter a uma para ser aceito na Maryammya. Eis aí o dilema porque passavam os cristãos em geral, que não sabiam se existia esoterismo na Igreja, e os protestantes/evangélicos em particular, sequer considerados uma forma tradicional.
A solução de Schuon foi 'revisar' a abordagem guenoniana -- pelo menos quanto a Lutero, e não tanto quanto ao calvinismo. O suíço desvinculou o que cada via espiritual era enquanto 'arquétipo' e os exoterismos a que poderia dar surgimento, alegando, de modo provocativo, que todo exoterismo era 'herético' [desviante] em determinado grau quando comparado ao esoterismo.
Essa perspectiva schuoniana era um ''escândalo'' do ponto de vista guenoniano, para o qual a ortodoxia era importante mesmo no âmbito exotérico. Na verdade, Schuon se aproximava muito da teoria dos três ramos do cristianismo: o luterano/protestante/evangélico, o católico-romano, e o católico-ortodoxo.
O suíço negava também a modernidade de Lutero. O 'Reformador' seria acima de tudo um homem medieval que desenvolveu um exoterismo cristão compatível com a alma mística germânica -- outro ponto muito importante para o perenialismo schuoniano, já que uma das justificativas para a necessidade da pluralidade exotérica estaria na diversidade de tipos e temperamentos entre as populações humanas.
A partir daí, o líder da Maryammya 'reinterpretou' os ensinamentos luteranos de modo 'esotérico' [ou segundo a doutrinas da Tariqa que liderava], visando demonstrar como eram válidos e legítimos segundo o 'arquétipo espiritual' cristão e uma forma adequada de misticismo germânico. Reinterpreta inclusive o conceito de sacramento, visto como símbolo operativo exterior que ativava um princípio interior, justificando a ênfase luterana na fé individual -- e também certas abordagens mágicas do ocultismo oitocentista.
Para complementar, Schuon se afasta da narrativa guenoniana de que os sacramentos teriam se exoterizado no fim da Antiguidade. Para ele, eles continuam mantendo sua eficácia iniciática, de modo que os protestantes poderiam continuar praticando sua religião sem necessidade de se converter ao Islamismo etc.
A pendenga sobre o Cristianismo levou à ruptura definitiva e explícita entre René Guénon e Fritjof Schuon. E demarca também a divergência de ambos quanto a aspectos fundamentais do Tradicionalismo. E acima de tudo aponta a imensa dificuldade de adequar o cristianismo ao discurso tradicionalista.
A perspectiva guenoniana leva à ênfase cada vez mais estrita na ortodoxia religiosa, em consonância cada vez maior ao Islã sunita e ao sufismo -- não surpreende que no fim dos anos 1930 Guénon considerasse todo o cristianismo como um cadáver espiritual, repercutindo uma posição mainstream dos sunnis. De modo muito peculiar, Guénon nunca aderiu à ideia de que ''todas as religiões são iguais e levam a Deus''. Esta afirmação moderna seria incompreensível para ele. Quanto mais o tempo passou, mais ele pareceu identificar a religião verdadeira com o próprio Islã -- ainda que mantivesse posições que escandalizariam boa parte dos sunitas.
Já a perspectiva schuoniana leva à relativização gradual de todas religiões em um sentido bastante contemporâneo. Todas elas são consideradas ''heréticas'' diante da verdadeira ortodoxia: o esoterismo da Unidade Transcendental cujos ensinamentos eram proporcionados pelo próprio Schuon. Estão borradas de vez as próprias delimitações entre ortodoxia e heterodoxia religiosa. As religiosidades eram apenas meios que podiam ser manipulados e reelaborados e reinterpretados segundo a Verdade esotérica, desde que o ''iniciado'' tivesse alguma boa vontade.
E desse modo, a Igreja dividiu pela espada a unidade dos Tradicionalistas, que é mais aparente do que muitos imaginam.
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