quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Da Vida Prática e da Gnose

 Dias atrás, descrevi, em linhas gerais, a psicologia de Tomás de Aquino, mais especificamente aquela ligada à 'parte sensitiva' da alma, que partilhamos com os animais [perfeitos], e ao Intelecto/Vontade, bem como as ligações dessas faculdades com a teologia moral e a uma metafísica fortemente aristotélica.

Aproveito a deixa para falar agora de um psicologia ascética mais vinculada à antropologia cristã-ortodoxa.
Tomás de Aquino manteve a tripartição da alma herdada da tradição platônica e isso também permanece na Filocalia e demais escritos dos Padres do Deserto. Podemos dizer, então, que a alma humana possui uma parte estritamente erótica ou desejante [epitumeia] -- que Tomás vinculava à ''alma vegetativa''; uma parte irascível [tímica] -- que Tomás vinculava à ''alma animal''; e a parte superior, ou o Nous -- e que ele reduzia, como expliquei, à capacidade racional, diferente da Ortodoxia.
Essa alma tripartite pode ser abordada em duas categorias mais gerais: Tomás a dividia em Intelecto e partes irracionais [já que ele reduzia o Intelecto à razão]; os Padres do Deserto a tratavam como Nous [Intelecto no sentido de potência de intuição espiritual, ou de essência da alma] e partes passionais [epitumeia e timo].
No ascetismo ortodoxos, cada uma dessas partes possui suas faculdades, que, depois da queda, passaram a operar segundo os ''prazeres da carne'', de modo desordenado, decaído, e 'objetificando' o mundo em caracteres sensíveis. A operação adâmica, ou natural no sentido original do termo -- como natureza antes da queda, natureza saída das mãos de Deus -- é chamada de virtude. Mas a operação desordenada e doentia é chamada de ''paixão'' [em sentido genérico] ou 'logismoi' [nas obras de Evágrio].
O primeiro estágio do ascetismo ortodoxo, chamado de ''vida prática'', é fazer com que as faculdades psíquicas deixem de operar segundo a carne e voltem a operar segundo o Espírito. Dizendo de outra maneira, é fazer com que as operações das partes passionais da alma [ou seja, o desejo/eros/epitumeia e o temperamento/Ira/timo] saiam do estado apaixonado e retornem à virtude.
[O tratamento mais direto do Nous vem em um estágio mais avançado, o de gnóstico, embora as fronteiras entre eles não sejam tão rígidas quanto uma exposição ''esquemática'' pode dar a entender.]
Existem oito faculdades mais gerais das partes passionais da alma, e portanto oito paixões mais gerais também. No ascetismo ortodoxo, estas oito paixões [logismoi] são foco do ataque de demônios específicos. Ou seja, de inteligências angélicas decaídas e rebeladas que 'operam' energeticamente [''ergon''] no âmbito de uma dessas faculdades.

De modo que, a tipologia das faculdades da alma é também uma tipologia das paixões [e de suas virtudes, que são o estado natural de 'funcionamento' delas], e também uma demonologia.
Antes de apresentar a tipologia das paixões, é bom lembrar que ela nada tem a ver com a tomista, segundo a qual o eros e o temperamento podiam se encontrar ou não moderados pela razão. Dependendo do caso, geravam ou os vícios ou as virtudes correspondentes a essa moderação, sendo o estado equilibrado da alma chamado de Justiça e Prudência. Na Ortodoxia, o caso nada tem a ver com o raciocínio ou a capacidade de abstração, e o ascetismo se dá dentro de um contexto de batalha contra os demônios correspondentes a cada âmbito de operação de uma das faculdades da alma. Outras diferenças vão ficar claras conforme o modelo for apresentado.
A origem primeira das faculdades passionais do homem é ''amor-próprio''. Embora não desenvolva essa ideia, Evágrio a afirma textualmente no Skemmata: "O primeiro de todos os 'logismoi' é o pensamento do 'amor-próprio' [philautia], do qual vem os Oito''.
A Filáucia não tem um sentido negativo, e pode ser entendido aqui no mesmo tom de Aristóteles ou Sêneca [o primeiro dizia que todo amor que o sujeito pode ter pelos outros é extensão do seu amor por si mesmo]; está ligada à consciência do eu, gerada pelo deleite do sujeito com a descoberta de sua própria beleza. Eu o vincularia àquilo que Freud chamou de ''narcisismo primário'' -- e que difere do complexo narcísico, que ele exemplificou por meio do mito de Narciso, também usado pela filosofia clássica para se referir à queda da Filáucia no egoísmo, arrogância e idiotia.
Mas eu não vou muito mais longe nisso.
Evágrio do Ponto costuma classificar as Oito Paixões [Logismoi] mais gerais segundo a ligação de cada uma delas com as operações da parte 'erótica' ou 'irascível' da alma: aquelas são ''paixões do corpo''. O segundo conjunto, as ''paixões da alma''. Nessa abordagem, não é correto dizer, como os tomistas, que todas as paixões tenham raízes no corpo enquanto tal, embora todos os oito logismoi estejam ligados aos prazeres da carne [por oposição aos prazeres espirituais, pois a gnose gera também uma forma de deleite ou gôzo].
As paixões do corpo são a Gula [Gastrimargia] e a Luxúria [Porneia]. As paixões da alma são a Avareza [Philargyria], Tristeza [Lypia], Ira [Orge], Acídia [Akedia], Vanglória [Kenodoxia] e Orgulho [Hiperefania].
As paixões são movidas da seguinte forma: as representações mentais [noema] de objetos sensíveis aparecem no fluxo de consciência. É um processo natural e involuntário, seja qual for sua origem [que podem ser três: a recepção emocionada de uma percepção sensorial; a reminiscência de uma percepção sensorial apaixonada e que está 'estocada' na memória; a sugestão demoníaca, sendo que esta última pode atuar também por meio das duas anteriores.]

Enfim, trata-se de processo involuntário. Mas na medida em que o sujeito aceite a representação mental em sua consciência e a sustente por um ato de vontade [ou omissão], e dialogue com ela [dianoia, discurso interior], a partir daí há pecado e as faculdades da alma já estão em operação de modo equivocado [paixão]. De modo que o combate às paixões depende, antes de tudo, de vigilância da consciência e de uma guerra mental. [Sendo curto e grosso, a partir do momento que se dialoga com o logismoi, já era, o pecado vem.]
As paixões tem vínculos umas com as outras [assim, por exemplo, a tristeza, que está relacionada à parte irascível da alma, pode estar vinculada ao desejo de algo que se perdeu -- uma paixão do eros -- e pode levar à Ira. Ou pode ser causada, quem sabe, por uma vanglória frustrada]. Existem métodos apropriados para combater cada uma dessas paixões e os demônios que as instigam.
Mas, de modo bastante geral, podemos dizer que as paixões do corpo são diminuídas com jejum, trabalho corporal e solitude. As paixões da alma respondem principalmente à salmodia, à longanimidade e à caridade. As paixões em geral são tratadas por leitura das Escrituras, vigílias e oração.
Quando o homem conquista as paixões, permitindo que floresçam as virtudes em cada faculdade das partes passionais da alma, atinge o estado que Evágrio chamava de impassibilidade [apatheia]. Nem todos os Padres do Deserto chamavam esse estado de impassibilidade. Alguns deles, como São Diódoco de Foticeia e São João da Escada, usam o termo apenas para a restauração final da imagem de Deus alcançada na theosis, num patamar muito mais avançado do que a da 'vida prática'. Essa diferença se dá porque a 'apatheia' plena jamais é alcançada antes da Teologia/Visão de Deus, ou seja, da deificação [theosis].
A virtude síntese da apatheia é a caridade, ou amor espiritual. É esse amor espiritual que atualiza o Nous, a parte superior da alma, que possui capacidade de conhecimento direto da realidade.

É o momento de recordar que Tomás de Aquino, seguindo Aristóteles, dizia que a alma sensitiva possuía cinco sentidos exteriores [paladar, olfato, tato, audição e visão] e quatro interiores [senso comum, fantasia, poder estimativo e poder memorativo] [1]. Isso está correto. Mas nas obras dos Padres do Deserto, o Nous tem também ''sentidos espirituais''.
Esses sentidos espirituais são análogos aos sentidos corpóreos. É possível dizer que há uma percepção espiritual auditiva, outra visual, outra olfativa e assim por diante. Não se trata efetivamente de 'percepção sensorial', mas é análoga a ela. [Evágrio, por exemplo, ao descrever o modo como os demônios instigam as paixões, ensina que cada um deles tem um ''odor característico'', ou seja, uma energia ou ergon -- operação -- que pode ser percebido pelo asceta como um ''odor'']. São Serafim de Platina tratou mais detidamente desse assunto em uma de suas obras.
Enfim, assim que o asceta alcança um grau suficiente de impassibilidade, e na medida mesma da impassibilidade que conquista, se inicia uma nova etapa de sua ascensão, que é a da gnose. A contemplação ou Gnose se inicia pela Segunda Contemplação Natural, que é um nível inferior da intuição espiritual. Nesse nível, o gnóstico contempla os logoi [razões ou Ideias, em um sentido platônico] dos objetos corpóreos.
Tratei desse tema quando abordei a diferença entre a Visão Beatífica e a Deificação. Santo Agostinho dizia que os logoi de todas as coisas criadas podiam ser vistos na Mente de Deus [Tomás de Aquino depois vai entender isso como contemplação da essência divina, algo que não penso estar implicado na abordagem agostiniana].

Mas segundo Evágrio, os logoi dos entes corpóreos estão inscrito na Natureza Original, assim como a arte de um artista pode ser vislumbrada em suas obras. Esses logoi são a Sabedoria Divina [Sofia], uma operação do Logos no nível da Natureza [não da natureza decaída, mas aquela saída das mãos de Deus].
Pois bem, a segunda contemplação natural vai iluminando o Nous do gnóstico [a gnose é a alteração na mente gerada pela contemplação unitiva com os logoi, com a arte do grande artista, ou com a sabedoria divina, e portanto causa uma transformação na mente do asceta]. Os sentidos espirituais são aguçados e apurados na medida mesma dessa iluminação. E vão preparando o gnóstico para uma outra transformação, quando então se torna capaz da primeira contemplação natural.
Antes disso, convém dizer o seguinte: existem também demônios que tentam desviar o gnóstico no campo da contemplação natural. A atividade demoníaca [e a tipologia dos demônios] não cessa com a cura das partes passionais da alma, com a superação dos Oito Logismoi, com a consecução da impassibilidade.

Existem ''tentações'' e ''vícios'' noéticos, no sentido estrito do termo, ou seja, demônios que atacam diretamente a atividade intuitiva-espiritual do Nous. É o que na tradição athonita se chama de ''Delusão'', uma gnose demoníaca, e que está na origem dos heresiarcas [já que todo gnóstico é um professor]. De modo que, se a guerra na 'vida prática' é contra o vício, e portanto se encontra em um âmbito moral; na vida gnóstica, a guerra é contra a falsidade e em nome da Verdade.
Outro dia falo da Primeira Contemplação Natural, que é a gnose dos Poderes Angélicos [e demoníacos mais elevados, já que demonhos são anjos também], tanto de seus 'corpos' quanto de seus logoi.

Lembrando que a Contemplação Natural não é o fim último do gnóstico. Acima da Primeira Contemplação Natural está a Teologia em sentido estrito, ou seja, a Visão de Deus, também chamada de ''gnose essencial''. _________________________________________________________

[1] A análise das operações da alma em Tomás de Aquino tem nuances importantes que levam a confusões quando comparada com a descrição da psique em obras ortodoxas ou em outros tratados sobre a vida espiritual.
Falemos de algumas.
Tomás encara a alma como ''forma do corpo'', com rigor aristotélico. O Intelecto -- que os Santos costumam chamar de Nous -- seria um poder da alma. E a pessoa se refere ao composto alma e corpo.
Ora, na Ortodoxia a abordagem é um tanto mais platônica. A alma não é exatamente a forma do corpo, mas seu governante interior -- que em certo sentido também é prisioneiro. O corpo é instrumento da alma mais do que sua ''matéria'' somente. Além disso, Santa Macrina afirmava que o Nous não é só o nome de um poder da alma, mas da própria essência da psique.
[Tenho um amigo que costuma dizer que a pessoa é como uma cebola, e é por aí.]
O Nous como essência da psique é a própria pessoa humana, ainda que os vínculos com o corpo sejam fundamentais sob dada perspectiva.
Tomás de Aquino segue a divisão tripartite da alma encontrada em Platão, mas a 'complexifica' seguind os passos de Aristóteles. Nada de errado nisso, a psicologia aristotélica é mesmo mais elaborada. O Doutor Angélico usa a divisão vegetativa/sensitiva/intelectual.
A alma sensitiva tem cinco faculdades exteriores e quatro interiores. Os cinco exteriores são os sentidos corporais: visão, audição, tato, paladar e olfato. Os interiores dizem respeito a:
1) O senso comum -- que organiza as sensações corpóreas em uma percepção unificada. Assim, se vejo uma galinha, sinto seu cheiro, e escuto seu cacarejo, não tenho percepções dissociadas. Cada sentido captou parte da realidade, mas o senso comum as tornou uma percepção unificada;
2) A fantasia -- muitas vezes chamada de 'imaginação', e que se presta a muitos mal entendidos. No tomismo, a fantasia é um 'estoque' das imagens percebidas. Um depósito das sensações perceptuais unificadas pelo senso comum. Ela não é um poder 'combinatório' de imagens, nem muito menos capaz de acessar ou guardar o universal. A fantasia, tal como entendida aqui, é operação da alma sensível, partilhada com os animais perfeitos, não está no âmbito racional nem muito menos noético.
3) O poder estimativo-- modo por meio do qual os animais tem capacidade de 'estimar', instintivamente, algo em termos de utilidade e desejo. Pensem num tico-tico construindo o próprio ninho, um macaco usando uma vara pra capturar formigas, ou num rato sabendo que a sombra do predador é perigosa. No homem, Tomás de Aquino o chama de ''juízo particular'', porque se dá também pela comparação entre imagens particulares.
4) O poder ''memorativo'' -- também chamado comumente de ''memória'' e que também se presta a confusões. No caso, é também um estoque ou depósito de avaliações do poder estimativo ou de juízos particulares [no caso do homem]. Está vinculado ao senso de passado, e no homem é acessado como reminiscência. O poder memorativo não deve ser confundido com a atividade intelectual que Tomás chama de memória, e que é capaz de guardar conceitos objetivos e subjetivos, e portanto lida com abstrações e universais.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

A VONTADE ANSIANDO POR 'SER', ou: implicações da psicologia de Tomás de Aquino quando contrastada a de Santo Agostinho

 Desejo, necessidade, vontade .

Necessidade, desejo, necessidade, vontade

Bebida é agua
Comida é pasto
Você tem sede de que?
Você tem fome de que?
A gente não quer só comida
A gente quer comida, diversão e arte.

[''Comida'', Titãs]



Comparar Santo Agostinho e Tomás de Aquino ressalta um aspecto muito importante da obra do Bem Aventurado Bispo de Hipona. Ele se tratava de um grande psicólogo, no sentido tradicional desse termo. Suas exposições se fundamentavam num mergulho preciso em sua própria psique. Era um grande conhecedor da alma humana.


Não me parece que Tomás de Aquino tenha entendido isso muito bem, porque quando trata de Santo Agostinho o faz não só com aquela aridez logicista característica -- distante até do que percebo em Aristóteles -- como também desvirtua certas considerações do Mestre latino.

Não é que seja uma redução ou adaptação de Santo Agostinho à análise formalista e à busca por exatidão presente na Summa. Muitas vezes me parece incompreensão da experiência relatada pelo Bispo de Hipona.

A relação entre a vontade e a beatitude é um exemplo muito nítido. Santo Agostinho diz que o coração do homem está eternamente insatisfeito, busca nas coisas do mundo, de modo sempre frustrado, aquela Bem-Aventurança sem fim que só pode ser satisfeita no próprio Deus.

Evidente que existem concepções metafísicas por trás, mas a afirmação é antes de tudo descoberta em um experimento meditativo, em um mergulho n'alma, típica de uma tradição de psicologia ascética que até mesmo Descartes [fingiu] seguir.

Mas no tomismo se torna um ensinamento amarrado por uma metafísica aristotélica rigorosamente amarrada e sistemática, que traz inúmeros problemas pra avaliação do homem e que, se seguida à risca, é 'anti-iniciática'.

Pra Tomás, a vontade é um apetite 'intelectual', uma 'fome', uma 'sede', mais ou menos como outros apetites de outros âmbitos da alma. Existem apetites da alma vegetativa, existem apetites da alma animal. Assim, um homem pode sentir 'fome' dos elementos bioquímicos que existem num alimento, e ansiar por ele. Mas pode sentir fome pelos aspectos 'sensíveis', saborosos, de um prato -- fundamento da arte culinária -- e buscar essa satisfação.

Mas a 'vontade' é fome de 'ser', sua sede é ontológica. Trata-se da ânsia que opera no âmbito intelectual da alma por mergulhar fim último do homem, que no tomismo é a Visão Beatífica.

O 'tesão ontológico' [chamarei assim] é tão poderoso que a vontade adere à Beatitude [com maiúscula] de modo absolutamente necessário. Não há possibilidade da vontade humana ficar diante da Visão Beatífica e não agarrá-la eternamente. [por isso também não existe possibilidade de 'queda' no mundo da ressurreição, já que a vontade não é livre para 'desprezar' a Beatitude Plena.]

Ora, a Visão Beatífica só vai se apresentar ao homem depois do Juízo Final. No nosso mundo, a vontade está diante de 'bens particulares', cada um deles com certo 'ser', certa 'substância', e portanto, na adaptação neoplatônica de Tomás ao aristotelismo, 'bons' em algum ponto da escala ontológica. Só que como um determinado bem pode ser bom sob um aspecto e 'não-bom' sob outro, e como estamos mergulhados numa multiplicidade infinda de bens particulares, a vontade não adere necessariamente a nenhum deles. O homem se torna livre para escolher.

Mas aí é que está: como se dá a decisão por um bem em detrimento de outro? Esse é um dos maiores problemas da análise tomista.

Tomás de Aquino dizia que a vontade era uma potência da alma capaz de movimentar todas as demais, inclusive o intelecto [que aqui é sinônimo de razão 'natural', isto é, nossa capacidade de raciocinar, de abstrair etc.]. E que, por sua vez, só era movida por si mesma em seu ''tesão ontológico'' [o que torna Deus o principal motor da vontade, já que é o Bem que a vontade busca em toda e qualquer coisa] ou pelo próprio Intelecto.

A vontade não adere necessariamente a um bem particular nesse mundo, e precisa então que o intelecto lhe apresente o bem a ser desejado. Em termos ideias, em que o homem tem a virtude da prudência, e portanto está sob império da razão, é o Intelecto que vai avaliar o melhor fim a ser atingido, e depois disso, os meios mais adequados para atingir aquele fim.

Agora, vejam, quando Tomás fala de intelecto, ele está querendo dizer 'capacidade de abstração' ou 'capacidade de raciocinar logicamente'. Trata-se de raciocínio. A pessoa conclui, baseada em seus raciocínios, que determinado fim traz mais Bem do que outro, e que tais meios para alcançá-lo tem também mais 'substância' que os demais, e apresenta o resultado à vontade.

A vontade é livre para aderir ou não à conclusão do intelecto. Um problemão para toda a rigorosa análise tomista, porque não fica claro o critério por qual a vontade seria movida então, já que não se move necessariamente para bem particular nenhum, e já que não está necessariamente vinculada à conclusão apresentada pela razão.

Pra não entrar em um regresso infinito de causas, Tomás vai criar uma ideia curiosa sobre ''resquícios de influência'' da vontade no intelecto e do intelecto na vontade, já que essas duas potências do homem estão em interação constante.

No entanto, o verdadeiro nó de sua psicologia/metafísica, e que ele não consegue romper, é a falta de uma instância livre desse dilema e que realize essa decisão. Tomás acredita na Pessoa humana, no sujeito unificado, no 'Eu' por trás da alma, mas esse sujeito não aparece no formalismo seco de sua psicologia. Ele é substituído por uma análise da relação de operações psíquicas sem qualquer âmbito real que decida pela ação.

É um problema que vai acompanhar toda sua psicologia, mas não é o único.

Pois quem acredita de fato que a psicologia humana funciona dessa maneira? O homem prudente em Tomás de Aquino é um computador analisando o tanto de bem e de mal que existe em cada coisa, em cada fim e em cada meio, e apresentando-o à Vontade a fim de conduzi-la 'segundo a natureza'.

Se é prudente, ele faz isso a todo momento em que um dilema moral se lhe apresenta [já contando que no dia a dia ele será movido pela força do hábito construído]. É um robôzinho, uma gigantesca máquina calculadora.

A verdadeira ação humana é essa descrita aí em cima. Sem isso, não temos ação humana, mas ação realizada por homens.

Voltando a Santo Agostinho, não parece que ele estivesse falando nada parecido. Não apenas o conteúdo mas o próprio 'sabor' de seus escritos estão muito apartados desse tipo de análise. O Bispo de Hipona apresenta um drama existencial, Tomás retruca com um silogismo estéril.

Pra terminar, a Summa também explica que quase nunca o homem age segundo esse modelo. A razão é obstruída pela força de uma paixão [luxúria, digamos] e por isso não é capaz de avaliar corretamente os bens. Nesse caso, a vontade não é movida. O homem age baseado nos apetites 'irracionais', isto é, nos apetites das almas vegetativa e sensitiva, principalmente pelo Eros e pelo Temperamento [Ira], ou desejo e irascibilidade. Age como um 'animal irracional', como eu disse lá em cima: ação de um homem, mas não ação propriamente humana.

Daí porque as paixões da psique tem de ser moderadas pela própria razão, cristalizadas em hábitos, para permitir o florescimento da prudência. [estou dizendo em grosso modo].

Uma das consequências é que a ação de um homem mergulhado nas paixões não é exatamente voluntária. Ela é voluntária em um sentido meramente derivado, comparativo, já que a vontade mesma, como apetite racional, não é movida.

[É curioso lembrar também que, para Tomás de Aquino, existem movimentos da alma/corpo que não estão nem poderão jamais estar sob poder da razão -- que ele praticamente sinonimiza ao Intelecto --, o que também torna suas ideias incompatíveis com o ascetismo dos Santos Padres].

É impossível entender o fenômeno e a vitalidade da mística alemã -- tanto católica-romana quanto luterana -- sem entender essas insuficiências e essa prisão anti-tradicional da psicologia exposta pelo tomismo e pela escolástica.

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Descartes e a tradição que se voltou contra si própria, ou: da gestação da Modernidade

 

Esse pequeno texto inicia algumas reflexões sobre o projeto cartesiano, principalmente sua teoria do conhecimento e psicologia,  a partir de um olhar baseado na abordagem patrística, representada nesse trabalho pela obra ''On the Soul and the Resurrection'', de São Gregório de Nissa. A justificativa do estudo está na necessidade, apontada pelo próprio Descartes, de averiguar a tradição herdada por ele para tecer uma avaliação da correção de sua obra e da segurança de seus pontos de partida.

 

 

1. O ataque cartesiano ao aristotelismo

 

            Há dois modos de considerar o projeto cartesiano tal como exposto em suas Meditações Metafísicas. Os defensores da primeira posição consideram que Descartes dialoga com o ressurgimento, ou antes o fortalecimento, das posições céticas, ocasionado pela Renascença e pela dissociação da intelectualidade européia do arcabouço e parâmetros culturais e filosóficos medievais. Descartes desejava assim reconstruir a filosofia a partir de um fundamento sólido, que ele reconhecia na infalibilidade da razão, ou antes, no conhecimento lógico-matemático cujo tipo acabado seria a geometria [1]

                A fim de encontrar esse fundamento, Descartes argumentou pela existência de um Deus bom e verdadeiro, garantidor das ideias [claras e distintas] da razão pura. Desse modo, ele poderia estabelecer um sistema em que ideias auto-evidentes a priori garantissem passagem para outras evidências, em um edifício seguro contra o ataque do ceticismo, livre das supostas contradições das concepções predominantes na Idade Média, e alicerçada em determinado conceito de razão [2].

            A segunda posição é a de que Descarte tinha por escopo uma crítica epistêmica ao aristotelismo/tomismo, particularmente à visão de que não existiriam ideias no intelecto que não houvessem passado antes pelos sentidos. Ou seja, o filósofo francês estaria criticando o fundamento da teoria do conhecimento que via nos sentidos a origem de toda e qualquer cognição possível e na razão uma inteligência abstrativa dependente do corpo [3]

            Esta interpretação da filosofia cartesiana confere outra função aos argumentos do cogito e do Deus enganador, que visariam agora apontar para os problemas inerentes ao conceito de um intelecto abstrativo e dependente dos sentidos, e propor uma alternativa para embasar a metafísica de modo mais preciso. A apresentação dos argumentos céticos seria uma estratégica de Descartes para expor as insuficiências da tradição aristotélica, sua falta de respostas para os ataques que surgiam do ambiente Renascentista que havia tomado partes da Europa naquele período.

            Assumo o acerto da segunda interpretação sobre os argumentos cartesianos [4]. Era intenção de Descartes dialogar com a tradição filosófica, retornando muitas vezes aos debates da Antiguidade, expostos nos diálogos platônicos por exemplo, para avançar um modelo cognitivo novo e conforme aos desenvolvimentos que ocorriam em outros campos intelectuais, incluindo a Física galilaica. Descartes usava argumentos e imagens da própria tradição filosófica com a qual dialogava com o fito de superá-la pela demonstração de suas inconsistências.

            Mas qual o grau de acuidade do filósofo na apresentação desse ''material antigo''? 

          A tradição aristotélica-tomista construiu suas próprias repostas para as críticas cartesianas. Mas preferi outro caminho: considerei a exposição de Descartes como a proposição de um experimento psicológico [5], e apontei para a existência de estratos antigos nas elaborações medievais e que são dissonantes em relação a psicologia e a antropologia aristotélica, sem que no entanto fossem levadas em conta na crítica cartesiana. O objetivo é observar o experimento e os argumentos de Descartes a partir de uma ótica patrística, exemplificada pela psicologia e antropologia de São Gregório de Nissa.


2. A Razão independente dos sentidos

 

            O modelo epistemológico aristotélico-tomista estabelece que não há nada no intelecto que não tenha passado antes pelos sentidos. O ato de conhecimento segue, grosso modo, o seguinte ''esquema'':

a) percepção de dados de um objeto pelos sentidos;

b) organização destes dados pela faculdade da imaginação, formando então a imagem sensível do objeto percebido;

c) atuação do intelecto agente sobre esta imagem sensível, da qual abstrai todas as particularidades, mantendo sua quididade -- uma expressão abstrata da natureza comum do objeto -- e formando a imagem inteligível;

d) impressão da species intelegível no intelecto paciente, que toma então sua forma, chegando ao conceito;

e) atribuição do conceito ao objeto particular percebido, formando então o juízo, a cópula entre o predicado e a coisa.


            No ato do juízo, o Intelecto percebe, pela alteridade e por meio da reflexão, a si mesmo como ato de inteligir e visar o objeto[6].


            Este modelo cognitivo possui algumas implicações, dentre as quais:


I) O conhecimento que o Intelecto tem de sua própria existência depende dos sentidos tanto no início do processo [abstrativo] quanto no fim, pois se fundamenta no juízo, que é a atribuição do conceito à coisa particular. Mesmo o conhecimento do imaterial [7] depende, portanto, das faculdades sensitivas;

II) O conhecimento do Intelecto, não dependendo apenas de si mesmo, mas antes de operações outras, revela que não se trata de substância concreta, mas de uma potência de uma substância, que neste caso é o homem racional. O Intelecto, ao conhecer sua existência, descobre mais do que isso, se descobre também corpo.

            Descartes queria demonstrar que o Intelecto conhecia à revelia dos sentidos e formulava, inclusive, inferências a partir de princípios racionais puros. O ponto de partida para esta demonstração, após o estabelecimento dos famosos três graus de dúvida -- dúvida sobre os dados sensoriais, dúvida sobre a imaginação, dúvida sobre a razão por meio da hipótese do deus enganador --, é o argumento do cogito, que fazia parte da tradição pelo menos desde Santo Agostinho. No ato mesmo de duvidar, na realização do ato mental, é impossível negar a existência do ''eu''. A partir deste princípio indubitável ele reconstrói a epistemologia, a física e a ontologia, mas introduzindo pequenas modificações nos posicionamentos tradicionais [8]. A principal delas se origina da pergunta sobre a  natureza deste ''eu'', que é comparado com as propriedades que a tradição aristotélica-tomista divisava no corpo e nas partes vegetativa e sensitiva da alma [9]. Ao não encontrar estas propriedades na natureza investigada, Descartes concluía que ela era ''entendimento puro''. Esse ''eu'' que era pensamento possuía como capacidades fundamentais o ato de conceber e de julgar. Descartes assinalava que o Intelecto, ao conhecer sua própria existência por meio de suas operações, era uma ''substância completa'' e separada em relação ao corpo.

            O modo como Descartes encara esse ''eu'' é um ponto fundamental da reconstrução. Ao identificar os atos de conceber e de julgar como operações fundamentais do Intelecto, ele o associa com a dianoia, o poder lógico-matemático da ''razão pura''.  Descartes adota certas posições da tradição filosófica -- que remontam inclusive a Santo Agostinho --, modificando-os sutilmente de modo a criticar outros elementos dessa mesma tradição. 

                Mas até que ponto o abandono do pressuposto aristotélico da necessidade dos sentidos implica no reconhecimento ou associação das operações do Intelecto com o ato de conceber e de julgar? Eis nosso próximo tópico.


3. O Intelecto segundo São Gregório de Nissa

 

            A obra ''On the soul and the Resurrection'' é construída por São Gregório de Nissa como uma conversa com sua irmã, Santa Macrina, que se encontrava no leito de morte. Como tema, as dúvidas do futuro hierarca quanto à sobrevivência da alma. O autor começa com a apresentação dos argumentos daqueles que negavam essa sobrevivência, e caminha para a explicitação da definição de ''alma'' e de ''eu'' esposada por Santa Macrina. O diálogo segue os seguintes passos:

 

a) Exposição, com vistas à refutação, dos argumentos 'materialistas' contra a sobrevivência da alma, segundo as quais ela seria um elemento do corpo, uma composição de elementos materiais que se dissociaria com o falecimento do indivíduo, ou função orgânica no todo individual e que perderia sua razão de ser com a morte [10];

b)  Distinção entre sensível e inteligível: a capacidade de apreender este último demonstraria que o homem não está limitado à percepção sensorial. O intelecto[11] seria capaz de, partindo dos sentidos, alcançar o conhecimento das essências [12]  -- Os objetos geométricos são exemplos de inteligíveis citados na obra, mas não os esgotam pois eles também se referem a logoi de seres incorpóreos [13];

c) a apreensão do inteligível é vista sob o prisma de uma analogia com o entendimento da ação de Deus na organização do cosmos. Não se trata da formulação de um conceito, mas de uma ennoia [14] -- fruto de uma intuição direta [15] realizada pelo Intelecto, e para além da associação de imagens ou do conhecimento propositivo e lógico. Portanto, o argumento usado para a distinção entre sensível e inteligível é intuicionista;

d) Essa mente, que por suas operações em b) é tida como não corpórea, não possui propriedades de nada que seja material ou que esteja submetido às leis da Physis. Há aqui uma abordagem apofática que pretende se aproximar do Intelecto negando a ele certos atributos [16]. Por fim, a conclusão de que o Intelecto tem as mesmas propriedades atribuídas a Deus, diferenciando-se desse último por seu caráter criado;  

e) Reconhecimento das operações fundamentais do Intelecto nas capacidades de conhecimento direto dos logoi dos entes [17], discernimento [discriminação do bem][18] e domínio sobre os elementos da existência que lhes são subordinados [19].

 

4. O modelo cognitivo, o status da ciência contemporânea e a ontologia

 

            No modelo cognitivo de São Gregório de Nissa, as operações do Intelecto não são reduzidas à dianoia, o poder de raciocínio, mas descritas como intuições diretas ou gnoses de realidades acima das corporais. O Santo Padre estabelece uma identificação entre o Intelecto e o ''eu'', e a distinção de ambas para o corpo, que é visto como um instrumento, seguindo assim uma concepção platônica. No entanto, a negação da necessidade dos sentidos para o conhecimento não é acompanhada da definição do Intelecto como uma capacidade lógico-discursiva e matemática cuja imagem mais perfeita seria a geometria, e sim como um conhecimento direto e contemplativo, supra-racional e unitivo. Além disso, o corpo é visto sob um novo ângulo, e um esforço ascético voltado para um novo direcionamento de suas potências é considerado como fundamental para o ato Intelectual propriamente dito [20].

            A solução tradicional não cai no aristotelismo-tomista mas tampouco ''descarna'' o eu, transformando-o em uma substância completa sinonimizada com a razão lógico-matemática e geométrica -- uma conclusão cartesiana que estará associada não só à entronização da razão instrumental, mas também ao individualismo, ao subjetivismo e ao mecanicismo.

            Se a psicologia, epistemologia e antropologia cartesiana, associada à Física galilaica, pôde funcionar como arcabouço para a nova hierarquia dos saberes gestada na Modernidade, e para a matematização do mundo que a acompanhou, um retorno aos debates presentes na tradição patrística, cujas assunções não foram todas elas consideradas na argumentação cartesiana, pode apontar para uma visão menos ingênua em relação ao raciocínio discursivo e para uma abordagem diferente sobre o papel e as possibilidades do conhecimento científico. 

 

5. Referências Bibliográficas

Copleston, Frederick. A History of Philosophy: Volume IV. Modern Philosophy: From Descartes to Leibniz. London: Burns, Oates & Washbourne, 1958.  

Constantine, Theophanes. Psychological Basis of Mental Prayer in the Heart. Volume I: The Orthodox Doctrine of Person. Disponível em http://timiosprodromos.blogspot.com.br/

Franca, Leonel. Noções de História da Filosofia. Rio de Janeiro: Livraria Agir, 1969.

Gregório de Nissa. On the Soul and the Resurrection. Disponível em http://www.newadvent.org/fathers/2915.htm

Menezes Rocha, Ethel. Observações sobre a Sexta Meditação de Descartes. Disponível em http://www.cle.unicamp.br/cadernos/pdf/Ethel%20Menezes%20Rocha%20161.pdf 

Menezes Rocha, Ethel. Conhecimento do Intelecto. Argumento do cogito, mesma cera e homens verdadeiros. Disponível em http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:http://www.revistas.usp.br/discurso/article/view/62544 



[1] É a posição, dentre outros, de Frederick Copleston  e do Pe. Leonel Franca. Este último, ao louvar o empreendimento de Descartes chega a afirmar que seu problema seria o parco conhecimento da tradição filosófica anterior. É verdade que Descartes não possuía grande erudição sobre a História da Filosofia mas, como veremos, a seguir, seus supostos ''erros'' tem sua origem na tentativa de se desvincular das conclusões filosóficas passadas. "Ao método pertence a primeira inovação cartesiana. Espírito matemático, afeito à exatidão das demonstrações geométricas, Descartes aspira reconstruir a filosofia, aplicando-lhe o método dedutivo a cujo rigor devem, em grande parte, a sua certeza as ciências abstratas da extensão''. Cf. FRANCA. 1969. p. 142, 145, 146.

[2] Como veremos a seguir, trata-se do poder de raciocinar, a potência lógica-discursiva e dedutiva da mente humana. Quando se refere às operações racionais, Descartes não trata exatamente das mesmas capacidades atribuídas ao Intelecto em muitos dos autores da tradição filosófica.

[3] Cf. ETHEL, 2008.

[4] Descartes, em carta enviada ao seu editor, Mersenne, confessa que tinha por intenção, com suas Meditações sobre a Filosofia Primeira, destruir a concepção aristotélico-tomista e fundar uma nova Física. Para esconder seu objetivo, fingiu que estava buscando dialogar com os céticos, corrente revigorada na Europa de seu tempo por causa dos estudos helenísticos da Renascença: ''[...] Posso afirmar, cá entre nós, que essas seis meditações contém todo o fundamento da minha Física. Mas, por favor, não diga às pessoas, pois isso tornaria mais difícil a aprovação por parte daqueles que defendem Aristóteles. Tenho esperança de que insensivelmente os leitores se acostumarão com os meus princípios e reconhecerão sua verdade antes de notarem que eles destroem os princípios de Aristóteles.'' Cf. ETHEL, 2006.

[5] Uma questão importante a ser colocada em outro espaço seria a da propriedade e o esgotamento real dos passos desse experimento proposto por Descartes. Até que ponto, por exemplo, ele teria acesso a uma informação sensorial isenta de qualquer pré-concepção que lhe seria transmitida por seu entorno cultural e horizontes históricos é um ponto polêmico. O acesso ao datum sensum foi problematizado por mais de um filósofo contemporâneo, mas tratar desse tema alongaria e desviaria o foco do texto.

[6] Desse modo, o conhecimento de algo se daria quando o objeto se encontra em ato; dito de outro modo, a partir de suas operações ou energeia. Esta abordagem aristotélica não foi contestada por Descartes.

[7] Entendido por Aristóteles e Tomás de Aquino não como um mundo à parte e independente do material, mas como o inteligível instanciado no indivíduo e passível de apreensão pela inteligência abstrativa.

[8] Cf. ETHEL, 2008.

[9] A divisão tríplice da alma feita por Platão n'A República será aceita com algumas modificações por Aristóteles, e depois tratada com mais detalhes ainda por São Tomás de Aquino. Mas esse tema nos levaria muito longe do assunto abordado e é citado apenas para ressaltar a noção patrística e tomista, e agora também cartesiana, do Intelecto como elemento 'distintivo' do homem enquanto tal.

[10] Neste ponto da obra, São Gregório de Nissa cita as formulações do estoicismo e do epicurismo, o que revela sua interação com as principais correntes intelectuais da Antiguidade Tardia.

[11] Deve-se notar que a palavra usada por São Gregório e comumente traduzida por 'Intelecto' é Nous, que pode compreender também o sentido de 'mente', 'consciência' ou 'eu'.

[12] O termo, que se tornou clássico na patrística oriental, é logoi. São Gregório de Nissa se desvencilha de Aristóteles ao se referir às 'razões' dos entes, vindo a considerá-las como reais e independentes das coisas; no entanto, não parece se comprometer com o 'Mundo das Ideias' platônico.

[13] Diferente de Aristóteles e Tomás de Aquino, São Gregório de Nissa afirma a possibilidade do conhecimento de logoi de entes não materiais, ou seja, não sensíveis. Sua perspectiva sobre o Nous, ou Intelecto, se afasta da concepção abstrativa criticada por Descartes.

[14] Uma representação mental ou conceito.

[15] Uma contemplação intuitiva, ou nas palavras associadas a Santa Macrina, uma gnose, conhecimento direto, supra-racional e unitivo com o objeto.

[16] ''Now granted that the inquirer has had his doubts set at rest as to the existence of the thing in question, owing to the activities which it displays to us, and only wants to know what it is, he will have adequately discovered it by being told that it is not that which our senses perceive, neither a colour, nor a form, nor a hardness, nor a weight, nor a quantity, nor a cubic dimension, nor a point, nor anything else perceptible in matter; supposing, that is, that there does exist a something beyond all these.'' Cf. GREGÓRIO DE NISSA.

[17] ''We declare, then, that the speculative, critical, and world-surveying faculty of the soul is its peculiar property by virtue of its very nature , and that thereby the soul preserves within itself the image of the divine grace since our reason surmises that divinity itself, whatever it may be in its inmost nature, is manifested in these very things—universal supervision and the critical discernment between good and evil.'' Cf. GREGÓRIO DE NISSA. Apesar do tradutor usar o termo ''speculative'', o grego traz ''theoretiken'', ou seja, contemplativo. Cf. CONTANTINE, 2006.

[18] O que também implica em uma forma de intuicionismo moral.

[19] Cuja analogia no texto é com o caráter Providente e Vivificante da ação da Sabedoria Divina no Cosmos.

[20] Perspectiva que vai fundamentar toda a prática ascética do cristianismo oriental, voltada para a 'purificação' da imaginação e dos sentidos a fim de alcançar um conhecimento noético, ou contemplativo, da realidade. Tal perspectiva, já exposta claramente na obra de São Gregório de Nissa, e desenvolvida através dos séculos, pode ser um dos elementos explicativos para a resistência dos intelectuais cristãos no Oriente dos desenvolvimentos escolásticos mais fortemente aristotélicos.