quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Tratado sobre a Práxis -- Evágrio Pôntico II

Continuação da tradução do ''Tratado sobre a Práxis'', iniciada na postagem anterior. Nesse trecho, Evágrio Pôntico começa a ensinar sobre o tratamento às diferentes paixões apresentadas nos tópicos anteriores.






Contra os Oito Logismoi [pensamentos apaixonados]



15 A leitura,  a vigília e a oração interrompem o Nous errante (1). A fome, o trabalho e a vida eremítica secam [murcham] o desejo inflamado (2). A salmodia, a paciência e a misericórdia colocam fim ao temperamento excitado (3). -- E tais práticas em períodos e medidas apropriadas. Pois o excessivo e inapropriado são apenas para períodos curtos; e aquelas [práticas] que duram mais que um curto período são mais prejudiciais do que úteis.


16 Sempre que a alma aspirar por diversos alimentos, deixe-a restrita a pão e água, de modo que se torne grata até por esse pequeno bocado. Pois é a saciedade que leva ao desejo de muitos alimentos; a fome, no entanto, vê como benção sua provisão de pão.


17 A privação de água contribui muito para a castidade. Que os trezentos israelitas que acompanhavam Gideão e que conquistaram Midiã te convençam [Juízes 7:5 a 7].


18 Assim como a ocorrência simultânea da vida e da morte de alguém não se encontra entre as coisas possíveis, assim também a coexistência em uma pessoa da caridade (4) e da avareza é impossível. Pois a caridade é não somente destruidora do dinheiro mas até mesmo de nossa própria vida temporal.


19 Aquele que se afasta de todos os prazeres mundanos é uma torre inacessível ao demônio da tristeza. Pois a tristeza é a privação do prazer presente ou expectado (5). É impossível repelir esse inimigo quando se tem apego a algo mundano. Porque ele [o demônio] certamente estabelece a armadilha e opera a tristeza onde quer que veja inclinação [ao apego].





20 A Ira e o ódio fazem o temperamento (6) crescer (7): os atos de misericórdia e a mansidão diminuem até o temperamento já existente (8).


21''Não deixe o sol se pôr sobre sua ira'' [Ef 4:26] para que os demônios não aterrorizem a alma durante a noite, acovardando a mente para a guerra do dia seguinte. Pois as temíveis aparições [demoníacas] surgem naturalmente dos distúrbios do temperamento (9); não há nada que torne mais o Nous um desertor do que o temperamento perturbado.


22 Quando, conseguindo um pretexto, a parte irascível de nossa alma é perturbada fortemente, então os demônios sugestionam que é bom que nos tornemos eremitas (10), de modo que não solucionemos as causas de nossa tristeza e nos livremos da perturbação. Quando a parte erótica [da alma] é fortemente aquecida, então nos tornamos de novo amantes de nosso semelhante (11), nos considerando duros e selvagens (12), para que, uma vez que desejamos corpos, encontremos corpos. Não nos deixemos persuadir, mas façamos o oposto [do sugerido] (13). 


23 Não se entregue ao pensamento da ira, combatendo em sua imaginação aquele que te entristeceu; nem tampouco ao pensamento da luxúria, imaginando prazeres ainda maiores. Pois o primeiro [pensamento] obscurece a alma e o segundo inflama a paixão (14); ambos, no entanto, tornam o Nous imundo e incapaz de ofertar a Deus uma oração pura (15), fazendo com que se caia imediatamente nas mãos do demônio da acídia, a partir do qual todos os demais [demônios] surgem para se aproveitar dessas condições e despedaçar a alma como cães selvagem diante de um cervo.




24 É da natureza do temperamento lutar contra os demônios ou lutar tendo em vista algum prazer (16). Assim, os anjos nos sugerem os prazeres espirituais e suas bençãos, nos exortando a voltar nosso temperamento contra os demônios. Os demônios, por sua vez, nos atraem aos prazeres mundanos, pressionando o temperamento para que, contra a natureza,  lute contra os homens, de modo que o Nous, obscurecido e decaído da gnose, traia as virtudes (17).


25 Cuidado para nunca deixar um irmão ir embora depois de lhe ter provocado a ira, ou você não será capaz em vida de evitar o demônio da tristeza durante a oração: ele se tornará sempre para você um espinho (18).


26 As doações minoram o rancor. Que Jacó te convença, ele que obteve para si as graças de Esaú com presentes. Esaú que havia saído para encontrá-lo com quatrocentos homens [Gen 32:7]. Mas que nós, que somos pobres, atendamos essa necessidade com uma refeição (19).



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(1) Evágrio usa uma divisão tripartite da alma: primeiro cita as práticas necessárias à terapia do Nous. A leitura a que ele se refere é a das Sagradas Escrituras, e em voz alta, tal como recomendado por ele em outras obras. A vigília não implica necessariamente abandono completo do sono, mas no hábito regular de se levantar à noite para a realização de orações, prostrações e meditações. Evágrio não faz referência, em suas obras, à oração incessante por meio da repetição de passagens dos salmos -- embora seja seguro que conhecesse essa prática, que é mencionada por discípulos seus. A oração aqui tem o caráter de petição ou de agradecimento.
(2) Práticas voltadas para a cura da parte erótica, ou concupiscível, da alma. A fome, ou jejum, inclui a abstenção de água, conforme esclarecido mais à frente, quando se menciona especificamente a fornicação. O trabalho diz respeito ao labor manual e a longas caminhadas. A vida eremítica ao hábito de buscar a solidão. O desejo inflamado citado pelo autor tem um conteúdo principalmente sexual, trata-se antes de tudo da luxúria.
(3) Práticas voltadas ao tratamento da parte irascível da alma, ou temperamento. A salmodia inclui também o modo como se recita os salmos.
(4) Evágrio usa nesse ponto a palavra 'ágape', ou seja, amor, e não 'esmola'.
(5) A tristeza pode ser causada também pela frustração do homem que, irado contra o próximo, se vê impossibilitado em sua vingança.
(6) A parte irascível da alma, que é de onde surgem a ira e o ódio.
(7) Em um sentido estrito: o elemento irascível pode 'aumentar', 'inchar', vindo a ser fonte de distúrbios psíquicos de várias ordens.
(8) A adoção de determinados comportamentos externos contribui para a aquisição de uma dada disposição, que não é uma 'sentimentalidade' ou 'afetividade' mas sim uma ordem interior que possibilita a liberdade diante das paixões.
(9) Evágrio não faz menção apenas a um ataque por meio de sonhos, mas a aparições também em estado de vigília.
(10) O homem irado busca a solidão e se afasta dos demais.
(11) Uma mudança em relação ao estado anterior provocada por uma disposição para a luxúria.
(12) Ou seja, os demônios sugerem que a vida na solidão do eremitério é cruel e uma forma de indiferença com o próximo.
(13) Não nos deixarmos levar à solidão por causa da ira nem a sair da solidão por causa da luxúria. É necessário discernimento para perceber os planos demoníacos em cada contexto.
(14) Seja ela a ira ou a luxúria.
(15) O Nous tomado por logismoi [pensamentos passionais] não consegue ascender até ao estado de oração pura.
(16) A ira ou a parte irascível da alma não é ruim em si mesma, mas possui uma função: o combate ao mal, ou antes, a luta ou esforço para alcançar ou se adequar ao Bem. A orientação ao prazer, por sua vez, é função da parte erótica ou concupiscível da alma.
(17) O Nous, saindo da contemplação dos logoi, ou razões essenciais dos entes visíveis e invisíveis, engendra não as virtudes mas os vícios.
(18) Uma das atividades do demônio da tristeza: trazer ao homem a memória de seus pecados.
(19) A caridade é uma terapia contra o nosso próprio rancor e o rancor que é dirigido contra nós. Mas o que conta é a disposição amorosa do coração, não o valor do presente em si.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Tratado sobre a Práxis -- Evágrio Pôntico 1

Abaixo, uma pequena e modesta tradução de um trecho de um das obras mais importantes do monasticismo, escrita por Evágrio Pôntico, eremita e discípulo de São Macário do Egito e de São Gregório Teólogo, e cujos livros possuem grande peso nos ensinamentos patrísticos. Evágrio foi anatematizado pelo V Concílio Ecumênico por conta de sua cosmologia herética. No entanto, a psicologia ascética desenvolvida em seus escritos está na base de toda a Filocalia, sendo perfeitamente ortodoxa. [1]







1 O Cristianismo é o dogma de nosso Salvador Cristo composto das partes prática, natural e teológica. 


2 O Reino dos Céus é a impassibilidade da alma com verdadeira gnose das coisas existentes. 


3 O Reino de Deus é a gnose da Santissima Trindade coextensiva com a constituição do Nous e superior à sua incorruptibilidade.


4 Aquilo que alguém deseja [passionalmente] certamente aspira, e aquilo a que aspira luta por conquistar. O desejo [passional] é a origem de todo prazer: o desejo, então, gera a percepção sensorial, pois aquilo que não tem parte na percepção sensorial está também livre de paixão.


5 Os demônios combatem nus contra os eremitas; eles armam os [monges] mais negligentes da comunidade contra aqueles nos mosteiros e formam grupos [de demônios] contra os que estão trabalhando na virtude. A segunda guerra é muito mais leve do que a primeira já que não é possível encontrar sobre a terra homens mais cruéis que os demônios, ou que aceitem a um só tempo toda sua vilania.




Sobre os Oito logismoi [Nota: pensamentos apaixonados]


6 Os logismoi [2] mais gerais são oito no todo, os quais contém os demais logismoi. Primeiro, o pensamento da gula; e, depois, o pensamento da fornicação [luxúria]; em terceiro, o da avareza; o quarto, o da tristeza; quinto, o da ira; sexto, o da acídia; sétimo, o da vanglória; oitavo, o do orgulho. Se esses logismoi afligem ou não a alma é uma das coisas que não estão em nosso poder; mas se persistem ou não, se colocam ou não as paixões em movimento, é algo que está em nosso poder.


7 O logismoi da gula sugere ao monge que rapidamente caia de seus esforços ascéticos, encarnando o estômago, fígado, baço e hidropisia, e então uma doença duradoura, [e sugestionando] a raridade das coisas necessárias e a ausência de terapeutas. Frequentemente leva também o monge à recordação de determinados irmãos que caíram nessas paixões. Às vezes seu pensamento persuade essas mesmas pessoas que sofreram tais coisas a se reunirem com os castos e a narrarem suas desventuras, como se aquelas coisas tivessem acontecido por conta da ascese deles.


8 O demônio da fornicação [luxúria] força [o monge] a desejar vários corpos: e ataca com ferocidade ainda maior aqueles que são castos, para que parem com a continência como se ela não os levasse a nada; e, poluindo a alma, as dobra em direção a esses atos; e faz a alma dizer certas palavras e também ouvi-las como se o objeto estivesse presente e sendo visto.


9 A avareza sugestiona uma longa velhice e a fraqueza das mãos para o trabalho, fomes que virão e doenças que acontecerão, e a amargura da pobreza, assim como a vergonha de aceitar de outros aquelas coisas que são necessárias.


10 Então a tristeza ocorre às vezes como resultado da privação dos desejos, e às vezes implica na ira. Como consequência da privação dos desejos ocorre da seguinte maneira: certos logismoi levam, por antecipação, a alma a recordar da casa, dos pais e do seu modo anterior de vida. E quando [os logismoi] vêem que a alma não resiste mas que os seguem e que se dissipa em prazeres que ocorrem no intelecto [imaginação], então tomam a alma e a submergem na tristeza e na imaginação de que tais coisas não mais existem e nem podem existir por causa do modo presente de vida. E a alma desafortunada, na medida em que se dissipou naqueles primeiros pensamentos, humilhando-se, diminui a si mesma por causa desses últimos pensamentos.


11 A Ira é uma paixão muito ativa: diz-se que é um movimento fervente do temperamento [3] contra aquele que cometeu uma injustiça ou aquele de quem se pensa que cometeu uma injustiça. Essa coisa mesma, a ira, torna a alma selvagem por todo o dia, e, mais ainda, aprisiona o Nous durante as orações, espelhando o rosto da pessoa que ofendeu [o monge]. Isso acontece quando a ira persiste por longo tempo e se transforma em ódio, levando a distúrbios noturnos, definhamento do corpo, palidez, e ataques de animais peçonhentos. Essas quatro coisas podem ser encontradas ocorrendo depois que o ódio se seguiu de vários pensamentos.


O demônio do meio dia
12 O demônio da acídia, que também é chamado de ''demônio do meio dia'' [Sl 90:6], é o mais pesado de todos os demônios. Aparece ao monge por volta da hora quarta e circula ao redor de sua alma até a hora oitava. Primeiro, faz o sol parecer lento ou sem movimento, como se o dia tivesse cinquenta horas. Depois pressiona [o monge] a olhar continuamente para as portas e pular para fora de sua cela, se fixar no sol para ver quanto falta para a hora nona, e procurar aqui e ali, talvez por um dos irmãos. Mais ainda, torna presente um ódio pelo lugar e com respeito a esse modo de vida e ao trabalho manual; e [torna presente] o pensamento de que a caridade abandonou os irmãos e que não há ninguém que console [o monge]; e se, durante esses dias, há alguém que tenha entristecido o monge, o demônio acrescenta isso para aumentar o ódio. Leva o monge também ao desejo por outros lugares em que ele poderia facilmente encontrar as coisas necessárias e exercitar uma arte ou o comércio, aquilo que é mais fácil e avançado; e, acrescenta, agradar o Senhor não depende de um lugar; mas, diz, em todo lugar o Divino deve ser adorado [Jo 4:21 a 24]. Junta também a essas coisas a recordação dos familiares e do modo anterior de vida; faz o tempo de vida parecer longo, trazendo diante dos olhos as dores do ascetismo; e, como se diz, coloca em movimento tudo quanto faça o monge abandonar sua cela, abandonar a arena. Nenhum demônio se sucede imediatamente a esse; uma condição de paz e uma alegria indescritível toma a alma depois da luta.


13 O logismoi da vanglória é um tipo muito sutil de pensamento que ocorre àqueles que tem realizações, e que tendem facilmente a tornar públicas suas lutas e a correr atrás das glórias que vem dos homens [1 Tess 2:6]: representando demônios lamentando e mulheres sendo curadas e algum tipo de multidão tocando as vestes do monge. Então profetiza ao monge o sacerdócio e lhe faz imaginar sendo procurando nas portas, e a maneira como, caso ele não vá por vontade própria, será carregado amarrado. E então deixando o monge exaltado nessas vãs esperanças que o levam para longe, para a tentação ou pelo demônio do orgulho ou então pelo demônio da tristeza, que traz a ele pensamentos contrários a essas esperanças vãs; acontece também às vezes de entregar ao demônio da fornicação [luxúria] o santo sacerdote já atado.


14 O demônio do orgulho se torna para a alma a fonte da mais severa queda. Seduz a alma a não confessar que Deus é quem a ajuda, a pensar que ela mesma é a causa das realizações e a se inflar contra os irmãos como se fossem ignorantes porque não sabem essa coisa mesma a seu respeito. A Ira e a tristeza se seguem a esse demônio e, como último dos males, um êxtase das faculdades mentais, loucura e à visão de multidões de demônios no ar.



[Continua]


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[1] Minha tradução foi realizada em cima da tradução realizada pelo monge Teophanes [Constantine], do Monte Athos, Grécia.

[2] O termo significa, no ascetismo ortodoxo, ''pensamentos apaixonados'', ou seja, já permeados pelos movimentos das paixões, ou pelas faculdades da alma movidas a partir do apego ao mundo.

[3] A Psicologia Patrística, seguindo Platão, divide a alma humana em três partes principais: a erótica ou apetitiva [também chamada de concupiscente ou desejante], a irascível ou tímica, e a Intelectiva ou noética. O temperamento é uma operação da parte irascível da alma.


domingo, 7 de setembro de 2014

Patrícia Moreira e a institucionalização do culto a Azazel

Patrícia Moreira foi escolhida como vítima a ser sacrificada em nome do ''ódio aos racistas''


Cresci em um sub-bairro de Senador Camará, região pobre da antiga ''Zona Rural'' do Rio de Janeiro e que com o tempo foi se tornando uma dúzia de ruas cercadas por favelas e mais favelas. Era um local tipicamente habitado por classes populares e repleto, claro, de mulatos e caboclos. Não só cariocas da gema, mas também migrantes do Nordeste, de Minas, de São Paulo, do interior do Estado do Rio. Lembro ainda hoje quando a primeira família negra se mudou para minha rua. Eu era criança, foi lá pra meados da década de 1980, e notei um certo burburinho que havia se formado. Alguns ficaram inconformados com os vizinhos pretos. Era como se de repente o status social do bairro estivesse periclitando, decaindo, ainda que fossem boa gente, trabalhadora, que compartilhavam os mesmos valores e possuíssem mais ou menos o mesmo nível sócio-econômico. Aprendi então que havia racismo no coração de parte do povo brasileiro, no coração de parte dos populares que queriam se diferenciar, d'algum modo, dos demais pobres, dos miseráveis e dos favelados [porque quando a favela chegou a Senador Camará, anos antes, foi outro burburinho....]. 


Travei outro contato com o racismo na Faculdade de Direito da UFRJ, este ainda mais pessoal. Quando prestei vestibular em 1994, o curso da UFRJ era tido como o mais tradicional do Rio e quiçá do país, embora alguns já dissessem que a qualidade da UERJ era maior. Havia status em estudar no prédio em que funcionou o Senado Imperial, no qual se assinou a Lei Áurea, ali do lado da casa em que havia morado o Marechal Deodoro da Fonseca e do Campo de Sant'Anna,  onde foi feito o anúncio da Proclamação da República. A turma era formada por noventa alunos, dos quais menos de cinco por cento podiam ser descritos como não brancos -- e estou incluindo aí um colega de ascendência japonesa. Não havia nenhum preto.  [No colégio em que fiz o antigo ginásio -- hoje segundo segmento do ensino fundamental --, uma escola tradicional de Campo Grande pela qual sempre tive muito amor, em uma turma de mais de cinquenta alunos também só havia um preto, e menos de vinte por cento não brancos, contando aí os descendentes de coreanos]. Eu possuía uma boa relação com a maioria, mas sofri agressões verbais de um aluno que havia sido eleito representante da turma. Nenhuma 'racista' em sentido estrito, deixo claro, mas a motivação por detrás delas ficou óbvia pra mim. O sujeito não foi com minha cara; ou melhor, não foi com a minha cor. [posso ser descrito como cafuzo ou caboclo.]


A existência de racismo no Brasil é inegável. Que se trata de uma chaga é consenso. Que deve ser combatido idem. Mas o racismo não é o maior mal a que está sujeita uma sociedade. Um bem pior é a disseminação do mecanismo do bode expiatório como forma de dirimir conflitos e provocar uma unidade de valores. O mecanismo do bode expiatório foi estudado e explicado pelo filósofo e historiador René Girard, que com ele buscou descrever o nascimento da cultura e da civilização, usando para isso a crítica literária, a psicologia, o estudo de religiões e a antropologia. Segundo Girard, o desejo humano é mimético, está inserido em dado contexto social. Desejamos não qualquer coisa, mas as coisas que vemos o próximo desejar. No fim das contas, isso significa que acabamos por desejar objetos semelhantes, ou, pior ainda, os mesmos objetos -- o que inclusive é potencializado ao máximo em uma sociedade regida por valores igualitaristas. A natureza do desejo humano, assim, se torna em fonte segura de conflito com o outro. Estes conflitos se espraiam pelo todo social, em uma espiral de disputa, conflito, agressões e, por fim, violência, regidas pela culpabilização do outro pela não satisfação de nossos desejos, pelo ressentimento e pela necessidade de vingança. 

O bode expiatório é morto para aplacar os ''deuses'', os demônios alimentados pelos indivíduos e escondidos no anonimato da coletividade

O processo de crescimento contínuo de vingança e da violência torna a sociedade um inferno e compromete sua própria existência, o grupo fica ameaçado a mergulhar no caos. Neste ponto entra em ação o mecanismo do bode expiatório. Diante da debaclé geral a coletividade se agarra à sobrevivência pela escolha de um vítima sacrificial que será o foco de um consenso de ódio. A vítima é responsabilizada em última instância por todo o caos, ódios, vingança e ciclo de violência que acomete a sociedade, e através deste ato de projeção da culpa e do sacrifício do indivíduo escolhido, a sede contínua por vendeta é aplacada e a coletividade retorna, momentaneamente, a um estado de paz. O processo é zerado e se inicia novamente, até que o perigo da orgia de violência leve a escolha de um outro bode expiatório. Esta dinâmica pode ser antecipada, como explica Girard. A sociedade pode sacrificar vítimas expiatórias antes mesmo que o caos se instaure, como forma de evitar o ciclo de violência. Segundo o pensador francês, é este mecanismo que está por trás dos fundamentos das religiões arcaicas e da sociedade, é ele que abre espaço para a vida em comum. No cerne da vida social, portanto, se encontra a institucionalização da maior das selvagerias, realizada para que os homens não precisem enfrentar seus próprios demônios internos. 


Em entrevista hoje ao Jornal do Brasil [O racismo que fere e precisa ser combatido], a militante Mônica Fraga escreve a seguinte pérola sobre Patrícia Moreira, a jovem que foi flagrada chamando de ''macaco'' o goleiro Aranha, do Santos, em partida de futebol realizada contra o Grêmio em Porto Alegre: ''A questão não é que com esta ou aquela pessoa a repercussão ou as consequências estão sendo duras demais. Ela foi flagrada, outros não, mas ela representa a síntese dos e das racistas neste país.'' O artigo da moça clama pelo combate ao racismo. Mas o faz justificando o uso do mecanismo acima descrito, que é visto assim como meio de alcançar a unidade de valores que ela pensa ser benéfica para dirimir os conflitos raciais brasileiros. Patrícia, uma menina que cometeu um erro no meio de uma turba, de uma torcida de futebol, algo que ocorre todo santo dia em qualquer estádio do país, deve ser transformada, pensam os militantes, em síntese do mal que se deseja extirpar. Pouco importa se é duro demais para ela, se extrapola o que realmente fez. O que importa é o bem que se pretende tirar disto, a pacificação racial do Brasil. Não basta que ela seja esculachada em redes sociais, em rede nacional de televisão, que perca o emprego, que sua casa seja apedrejada, que seja processada. A lei deve cair sobre ela com braço forte, poderoso, impiedoso, sem deixar 'pedra sobre pedra', para descarná-la, destruí-la, uma representação de nosso ódio ''a todos os racistas do país''. Se ela sobreviver, marquemos sua testa com algum sinal hediondo, para que seja para sempre proscrita entre nós. Suas desculpas públicas não podem ser aceitas, ela tem de repeti-las indefinidamente, de joelhos, enquanto lhe alvejamos, quem sabe, com sacos cheios de urina e cocô de gato. 

Em Israel, o sacerdote separava dois bodes: um seria morto pelos pecados dos povo no culto do Judaísmo do Templo, e o outro seria solto do deserto para satisfazer Azazel


Quando destruirmos este indivíduo em particular em todas as suas dimensões, quando a detonarmos social, moral, psicológica e fisicamente, aí, se iludem certos ideólogos, virá a paz. Mas é uma certa paz que esconde um contínuo ódio interno, e que vai tão somente abrir espaço para que todo o ciclo volte a se repetir. O sacrifício de indivíduos no altar construído pela violência da turba repleta de ira e desejo descontrolado não é sinônimo de justiça. É a re-institucionalização do Culto a Azazel. [1]



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[1] The Scapegoat Dilemma

domingo, 31 de agosto de 2014

A vida após a morte segundo a Tradição Ortodoxa, de Jean-Claude Larchet - Parte 4

Ícone da Escada de São João Clímaco -- a doutrina dos ''telônios aéreos'' está associada ao ascetismo necessário à purificação das paixões.


Voltando ao tema da ''Vida após a morte'', segunda descrita no livro sobre o tema de Jean-Claude Larchet, é necessário fornecer algumas especificações a respeito da passagem da alma pelos ''telônios aéreos'', que ocorre no período que vai simbolicamente do terceiro ao nono dia após a morte clínica. Deve-se evitar qualquer tentativa fetichizada de materializar ao extremo esta batalha contra as potestades do ar. Na verdade, o bom combate já se inicia ainda em vida, pois é por meio das paixões desregradas dos homens que o diabo o escraviza, e, assim, é combatendo estas mesmas paixões desvirtuadas e as tentações demoníacas que as acompanham que o homem pode se livrar das correntes e armadilhas preparadas pelos poderes da escuridão quando deixa o corpo. Convém lembrar que o justo, o homem que venceu seus desregramentos, que retificou sua vida, passa pelos 'telônios' sem sofrer dano destes principados, já que estes nada reconhecem nele que seja deles. São Theognostos ensina que ''é inexpressável a alegria da alma quando deixa o corpo em segurança plena da salvação...indo em paz encontrar o anjo radiante que desce por causa dela, e viajando com ele pelo ar sem encontrar obstáculos, totalmente ilesa frente aos maus espíritos. Subindo com alegria, coragem e gratidão, se prostra em adoração diante do Criador, e a ela é atribuído um lugar entre aqueles que lhe são semelhantes e iguais em virtude, até a ressurreição universal''. Esta livre passagem pelos 'telônios' é assegurada pela conquista da apatheia, ou impassibilidade, como se mostra nas experiências de ascetismo de Santo Antônio o Grande que ainda em vida enfrentou as tentações correspondentes às paixões e, em êxtase, veio a passar também pelos poderes das trevas, tal como relatado por Santo Atanásio de Alexandria em sua ''A Vida de Antônio''. As paixões que o homem carrega em vida continuam a operar nele após a morte, mas agora sem a presença do elemento e do ambiente corporal, o que torna a satisfação dos vícios ou mesmo sua mitigação impossível para a alma. Há relatos dos infernos e dos telônios que, inclusive, associam o ardor das paixões, que agora não encontram limites corporais e tampouco podem ser aplacadas, como em continuidade com as próprias 'torturas' e acusações demoníacas que são realizadas sobre a alma. Este texto do Metropolita Hierotheos Vlachos ajuda a dar uma panorama ainda mais amplo desta questão: [https://www.facebook.com/notes/andré-luiz-dos-reis/the-taxing-of-souls-or-on-the-toll-houses/714602845226144].




10) Como eu dizia na resenha anterior [Parte III], a alma que passa pelos 'telônios aéreos' se encontra nas portas do Paraíso e diante do trono do Criador. Um novo ciclo 'cronológico' se inicia, que dura do nono ao quadragésimo dia. No nono dia após a morte clínica a Igreja realiza um novo serviço funerário que se associa simbolicamente às hierarquias angélicas. É neste período que a alma inicia sua visita a todas as mansões do Paraíso e, depois, todas as prisões do inferno, para conhecer o que é reservado tanto aos justos quanto aos injustos. Segundo São Simeão o Novo Teólogo, os lugares divinos da glória de Deus são os próprios Poderes do Alto e as legiões dos Anjos. Santo André de Creta, por sua vez, ensinava em suas homilias que mesmo as almas dos santos passam através do ''lugar escuro [do inferno]'', para serem iniciadas no mistério inacreditável da Economia Divina, a saber, a própria descida de Cristo aos Infernos, e para entender a extensão da vitória de Cristo sobre a morte e sobre o Hades. Esta viagem da alma pelas mansões do Paraíso e do Hades é descrita por São Macário de Alexandria em suas ''Revelações'' e também no relato de Santa Theodora e São Gregório da Trácia encontrada na vida de São Basílio o Jovem.


11) No Quadragésimo dia termina a viagem da alma pelas mansões dos Santos e pelos lugares tenebrosos do Hades e, mais uma vez, a alma é levada diante do Trono de Cristo. É neste período que se realiza o Juízo Particular de cada alma, cujo resultado será a atribuição de um lugar no além, em um estado intermediário que durará até o Fim dos Tempos e o Juízo Final. Neste quadragésimo dia após a morte clínica, associado simbolicamente às lamentações pelo Santo Profeta Moisés, a Igreja faz o mais estimado e elaborado ofício funerário em homenagem aos mortos. Sobre o estado intermediário no Paraíso ou no Hades o livro se debruça um pouco mais tarde. Agora é mais importante ressaltar que este juízo particular ocorre já na própria passagem pelos 'telônios aéreos', conforme ensinam vários Padres. Apesar de Cristo ser o único Juiz de fato e de direito, no caso do Juízo Particular, o julgamento do Senhor é intermediado e delegado primeiro à própria consciência humana, que a acusa dos seus pecados no momento da morte e durante a ascensão até os Céus, e visto também que o resultado desta ascensão é consequência direta das próprias ações do sujeito durante sua vida terrena; segundo, pelos próprios demônios que pedem 'compensação' pelas paixões e pecados possuídos pela alma. As almas que são encontradas culpadas, ou que não podem ser defendidas durante a ascensão, já rumam para os lugares do Hades que lhe são destinadas segundo seus [de]méritos. Quanto aquelas que se postam diante do Trono de Deus, ali terão confirmada a sentença já ocorrida nas tribulações pelo ar, sendo-lhes conferido um lugar divino ou estada paradisíaca de acordo com o grau de virtude que possuam. 


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continua

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

A vida após a morte segundo a Tradição Ortodoxa, de Jean-Claude Larchet - Parte 3

Ícone mostrando as almas subindo e descendo pelas ''toll houses'' ou ''telônios aéreos''
No post anterior [Parte 2] falava eu dos três períodos 'cronológicos' em que a Santa Tradição divide o processo da morte da pessoa até sua chegada no locus que lhe está 'reservado' no além. O fim de cada uma destas etapas é marcada por um dia de ofício específico na Igreja, realizados portanto ao terceiro, nono e quadragésimo dia após a morte clínica. Ressalto mais uma vez que esta contagem cronológica possui uma dimensão simbólica e não pode ser vista de maneira unívoca, pois nossa experiência espaço-temporal não pode ser transplantada pura e simplesmente para outras dimensões da existência diferentes da corpórea. Pois bem, no primeiro período a alma permanece na terra por três dias, durante os quais ela se deixa guiar ou pelos anjos que Deus coloca para guardá-la e orientá-la [o anjo da guarda e o anjo psicopompo] ou pelos demônios aos quais se fez afim durante a vida terrena. Nesta fase, a alma pode vaguear pelas regiões que quiser, ou ficando próxima do seu corpo, da sua casa, dos seus parentes ou dos locais dos quais se sente saudosa. No terceiro dia, associado com a Ressurreição de Cristo e com Sua saída do túmulo, a alma inicia sua ascensão até os Céus. Alguns santos, conforme expliquei, rumam para o Paraíso imediatamente após a morte, dada a vida piedosa que levaram e a concentração de todos os seus desejos em Cristo Nosso Deus. A maior parte das pessoas, no entanto, realiza uma ascensão gradual até o Trono de Cristo. Nesta 'subida' a alma tem de passar por aquilo que a Santa Tradição chama comumente de 'telônios aéreos'.




7) Na ascensão da alma pelos ares rumo ao Paraíso ela é acompanhada por anjos, principalmente pelo anjo psicopompo, encarregado de guiá-la até o Trono de Deus. Mas assim como no momento da morte existem batalhões de demônios prontos a arrastar a alma, assim também em seu vôo para Deus ela enfrenta oposição e resistência dos poderes das trevas, que se postam no caminho até o Paraíso e a investigam, inquirem e ameaçam de acordo com as paixões que possua e os pecados que tenha cometido. Os demônios se estabelecem no caminho da alma em ''estações'' progressivas, cada uma delas ligada a uma paixão ou a determinados tipos de pecado. Ao passar por casa uma destas estações, a alma é atacada por estes poderes, que buscam tirá-la das mãos do anjo da guarda e do anjo psicopompo e levá-la para os abismos do Hades. Em cada uma destas 'estações', ou 'telônios', os príncipes da obscuridade investigam se a alma possui aquilo que pertence a eles, demônios, ou seja, más paixões. Uma vez que estas paixões correspondentes aos telônios sejam encontradas, a alma, para prosseguir, deve 'pagar' com elementos de si mesma, ou então com virtudes e bons atos que compensem os maus feitos e os vícios. Nesta batalha, os anjos ajudam a alma reunindo tudo de bom que ela tenha feito como também as orações da Igreja que são feitas ao seu favor. Caso a alma não os possua de modo suficiente a passar por aquela estação específica, é arrastada pelos demônios a ela associados e fica sob seu poder, acorrentada e torturada, até que a Misericórdia de Deus a liberte. É a esta batalha nos ares que se refere a São Paulo quando afirma que nossa luta não é ''contra a carne e o sangue, mas, sim, contra os principados, contra as potestades, contra os príncipes das trevas deste século, contra as hostes espirituais da maldade, nos lugares celestiais''. Para passar ilesa pelos telônios aéreos, a alma deve ter corrigido suas paixões ainda em vida por meio do ascetismo, levado uma vida virtuosa, se arrependido de todos os seus pecados e os confessado ao pai espiritual, já que, por meio do mistério da confissão o Espírito Santo pode apagá-los do livro da vida. Todas as faltas, voluntárias e involuntárias, cometidas por palavras e atos, consciente ou inconscientemente, são trazidas à tona durante o confronto contra os demônios ''coletores'' ou ''publicanos'', que acusam a alma até mesmo do que ela não fez.




8) O ensinamento sobre os 'telônios aéreos'  não é  um dogma de fé mas está presente em virtualmente todos os Santos Padres que escreveram sobre a morte e também em textos litúrgicos da Igreja. Eles são, portanto, parte incontestável da Santa Tradição. Sobre eles falaram São Gregório de Nissa, São Paphnuntio, Sao Theodoreto de Cyrrhus, São Cirilo de Alexandria, São Gregório o Grande, São Simeão o Tolo de Cristo, São Máximo Confessor, São Theognostos, São Dorotheos de Gaza, São Hesíquio de Bastos, São Macário do Egito, São Nicetas Stethatos, São Simeão o Novo Teólogo, São João Crisóstomo, Santo Antão, São João Clímaco, Santo Abba Isaías de Scetis, São Gregório da Trácia, São João dos Cárpatos, Orígenes, São Justino Popovic, Santo Inácio Brianchaninov, São Diadochos de Foticeia, Santo Atanásio do Sinai, São João do Chipre, São Bonifácio apóstolo dos anglo-saxões, São Teófano o Recluso, São Macário de Moscou, São João Maximovich, São Serafim de Platina etc. Está também presente em vários ofícios da Igreja, como a oração de Santo Eustratio, lida no Ofício da Meia Noite, e no Cânone de Súplica à Toda Santa e Pura Theotokos no momento da Partida da alma. É muito importante lembrar  que este ensinamento não deve ser tomado de maneira completamente literal e materializada, pois descreve uma dimensão da existência que só pode ser entendida por meio de comparações, analogias e símbolos. As imagens não devem se tornar fetiches. Por outro lado, como ensinou São Teófano o Recluso, estas mesmas imagens se referem a uma realidade, não são meras alegorias morais. São uma realidade espiritual que deve ser meditada e compreendida sem apego a ideias sensuais e cruas. Outro ponto a ser notado, é que as ''toll houses'', ou ''telônios aéreos'', não devem ser confundidos com a doutrina católica-romana do ''purgatório'', que é condenada na Igreja Ortodoxa e que será tratada de maneira mais precisa em outra parte do livro. Não se deve também pensar que após a morte a alma está sob poder total dos demônios, e sim compreender que quem não se fez completamente livre das próprias paixões e pecados durante a vida terrena, tampouco se libertará facilmente deles após a morte, pois, como já dito, a alma tende a manter o mesmo estado em que se encontrava no momento da separação do corpo, e, ainda que queira, não pode alterá-lo por si própria por causa justamente da falta do elemento corporal que possibilitaria sua metanoia. 


9) Houve no fim do século passado algumas críticas aos ensinos sobre ''telônios aéreos'' realizadas por clérigos mal instruídos e que sustentavam doutrinas errôneas sobre o pós-morte [como o 'sono da alma', tratado noutra parte da obra de Larchet]. Mas elas são infundadas e já foram rebatidas não só por hierarcas mas inclusive por santos. Reproduzo cá trecho do livro que trata rapidamente destas críticas e do descrédito das dita cujas: ''Uma primeira acusação por parte [destes] autores[...] é que este ensinamento se baseia em apócrifos que possuem todos origem no Egito. Esta acusação não se sustenta: vimos que os testemunhos hagiográficos e patrísticos possuem uma base muito ampla no tempo e no espaço. Uma segunda acusação é de que este ensinamento possui origem na religião dos antigos egípcios e em crenças gnósticas. Indubitavelmente há uma analogia, mas é também verdade de muitas outras crenças cristãs (numerosos exemplos desta área podem ser encontrados nas obras de Mircea Eliade) sem que se possa colocar em questão seu caráter cristão: os dois conjuntos de crenças estão associados a contextos espirituais e teológicos irreconciliáveis (veja as considerações feitas sobre isto pelo Metropolita Hierotheos Vlachos, em ''Vida após a Morte'', pp. 77-78)[...]''.


A alma que passa pelos telônios está diante dos portões do Paraíso. Mas antes de seu juízo particular, ela tem de conhecer os Infernos e os Céus, por quais passa entre o nono e o quadragésimo dia após a morte clínica. 


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segunda-feira, 18 de agosto de 2014

A vida após a morte segundo a Tradição Ortodoxa, de Jean-Claude Larchet - Parte 2






Antes de continuar descrevendo o processo da morte de acordo com a Igreja, segundo descrito na obra ''Life after Death according to the Orthodox Tradition'', de Jean-Claude Larchet, faço cá um parêntese para expor certas posições do autor sobre as ''Experiências de Quase Morte'', ou seja, aqueles relatos de gente que chegou perto de bater as botas mas conseguiu sobreviver e relatar o que vivenciou naqueles momentos em que estava inconsciente ou com a morte clínica constatada pelos médicos. Há vários e vários relatos deste tipo, alguns deles surpreendentes, como o de cegos que, neste estado de morte clínica, foram capazes de contar depois tudo o que viram ao seu redor e até em outros cômodos. Há livros inteiros que reúnem este tipo de narrativa, classificando-as e retirando delas alguma forma de padrão. Um dos mais famosos é o ''Life after Life'', do Dr. Robert Moody. Muitos destes padrões são corroborados pela tradição ortodoxa. Essas experiências, porém, tem de ser lidas com cuidado por causa da possibilidade de interveniência de ilusões demoníacas. 





3) Após descrever as percepções sobrenaturais que o sujeito vivenciadas pelo sujeito que se encontra diante da morte, a obra passa a abordar o processo em si e as diferentes etapas por quais passa a alma em seu caminho para a vida futura. Estas etapas são abordadas pela Ortodoxia a partir de uma representação cronológica dividida principalmente em três fases: até o terceiro dia após a morte clínica; do terceiro ao nono dia; do nono ao quadragésimo dia. É muito importante notar que esta representação possui uma natureza também simbólica. A temporalidade do mundo espiritual não é aquela vivenciada na realidade corporal, então não há porque esperar que estes períodos de tempo sejam exatamente aquilo que conhecemos no cotidiano. Há uma associação temporal mas que não é certamente unívoca. Outra questão bastante importante a ser ressaltada é a própria palavra ''processo''. Embora exista um momento exato da morte clínica, a separação entre alma e corpo não é algo instantâneo nem irreversível, mas se estende durante um determinado período de tempo. É este lapso de tempo que será abordado agora, os primeiros três dias após a morte clínica, em que a separação do corpo e alma ainda não é incontornável nem total ou completa. 


4) Há uma tradição que afirma que o indivíduo ainda pode retornar à vida antes de completado este período de três dias após a morte clinica. Por isso há o costume piedoso de só enterrar o ente querido após o terceiro dia. Outra consequência desta tradição, segundo o autor, envolve a prática contemporânea da doação dos órgãos. Como a alma ainda se encontra muito ligada ao corpo nessa fase, seria desaconselhável a retirada de seus órgãos, pois isso poderia traumatizá-la e afetá-la de alguma maneira. Este tópico é controverso entre as várias jurisdições da Igreja, mas é comum um certo repúdio quanto a doação de certos órgãos, como o coração e os pulmões. Este repúdio se fundamenta no conhecimento sobre o papel do corpo e sua ligação com a alma inclusive após a separação entre ambos. Diferente das doutrinas que minimizam o papel e função do corpo no homem, encarando-o apenas como uma roupa que em nada afeta a personalidade, a Igreja ensina que a pessoa humana é composta por dois elementos complementares que existem um em função do outro em uma relação que se inicia com a vinda à existência do indivíduo e que não se esgota em nenhum momento, nem mesmo com a morte. Após a dita cuja, a alma retém potencialmente em si a memória e forma do corpo, bem como as faculdades que por ele se expressam. Da mesma maneira, há santos Padres, como Máximo o Confessor e Gregório de Nissa, que ensinam que os elementos que formam o corpo também guardam em si uma afinidade com a alma, de modo que, mesmo quando dissolvidos e espalhados pela criação, são conhecidos por ela, e continuam ainda 'pertencendo' àquela Hipóstase humana particular. É desta maneira que todo corpo humano é também uma relíquia, pois está ligado à personalidade que o possuiu. O culto cristão às relíquias se baseia nesta verdade, pois os elementos corporais não são venerados em si, mas é a pessoa à qual pertencem e a qual continuam ligados que é venerada através deles. [No caso dos santos, como são energizados por Deus, suas relíquias acabam também operando milagres.] O cuidado com o ente falecido é expressão não apenas de uma honra ao corpo, mas uma honra à pessoa humana, à qual este corpo está e sempre estará associada, inclusive após a morte. Em alguns países ortodoxos há o costume piedoso, por exemplo, de após cinco anos após o falecimento do indivíduo, exumar seus restos mortais, lavá-los com vinho e levá-los à Igreja para um serviço em memória, após o qual serão colocados em um ossuário na esperança da futura ressurreição. É por isto também que a cremação é repudiada pela Igreja e vista como uma forma ou intenção de aniquilação, desrespeito e desamor. Todo este cuidado com o corpo da pessoa humana, bem como os ritos funerários e de memória, encontram sua imagem na santas miróforas, que cuidaram do Senhor quando de Seu sepultamento. 


5) A morte clínica em si é, em geral e independente da maior ou menor santidade da pessoa, muito angustiante e dolorosa para alma. A explicação para tal é que a separação entre alma e corpo é anti-natural, como descrito no item anterior. Isto posto, o evento pode ser facilitado ou dificultado pelas virtudes ou vícios que o sujeito carrega. Uma pessoa que levou vida piedosa e dedicada a Deus, retificando suas paixões e conquistando os dons do Espírito, tende a se elevar para o alto de modo muito mais simples, desvencilhando-se da carne sem maiores apegos. Há inclusive casos raros de santos que foram levados imediatamente para o Paraíso logo após a morte, tamanha a iluminação e glória possuíam. Mas, em geral, a pessoa possui um certo grau de virtude e vício que influenciará na sua partida deste mundo. Quando o indivíduo é muito apaixonado e apegado a essa realidade material e ao corpo há muitos obstáculos em sua partida, e alguns santos, como Santa Macrina e São Gregório de Nissa, explicam desta maneira a existência de fantasmas. Quando do falecimento, as faculdades anímicas ligadas ao corpo continuam fazendo parte da alma, mas em estado potencial pela falta dos meios necessários à sua expressão. 



6) A partir da separação da alma e do corpo, a batalha pelo homem que teve lugar em toda a sua existência, se intensifica ou ganha novos contornos. Anjos e demônios se apresentam à hora da morte buscando levar a alma com eles. As imagens proporcionadas pela Igreja apresentam estes seres espirituais como dois exércitos colocados um de frente para o outro e prontos para a batalha pela alma. A pessoa vai se inclinar para cada um deles de acordo com suas tendências durante a vida e no momento da morte. Deve ser ressaltado que a alma mantém no além o estado apresentado no momento de sua morte. Depois disto, ainda que queira, ela não pode alterá-lo pela falta justamente do corpo e de seu ambiente, necessários à expressão da metanoia e de seus frutos. Após a morte, o estado da alma só pode ser alterado por uma intervenção outra, da Igreja e de seus santos, por meio das orações e serviços litúrgicos. Voltando à batalha pela alma, o momento da separação é como um julgamento, no qual os demônios tentarão reconhecer na alma as paixões que lhe são correspondentes e às quais ela mesma se escravizou durante sua vida terrena, a fim de arrastá-la com eles para o Hades. Nas imagens da Igreja, as almas tem de pagar aos demônios com os elementos de si próprias que são a afins às forças da escuridão, e os indivíduos que partem cheios de vícios são despedaçados por estes poderes das trevas. Outras imagens apresentam as almas que partem sendo defendidas pelos anjos, principalmente pelo anjo da guarda e pelo anjo psicopompo, citados na resenha anterior, e que reúnem todas as virtudes e bons atos praticados pelo indivíduo a fim de apresentá-los como compensação e livrá-los da garra das potestades do ar. O fato é que a alma enfrentará o terrível obstáculo dos poderes tenebrosos após a morte, que buscarão impedir sua subida até os céus e mergulhá-la e escravizá-la no inferno. Durante os três primeiros dias, a alma permanece na terra, sob a influência ou dos anjos ou dos demônios, em volta do seu corpo ou visitando os lugares que lhe sejam mais afins. No terceiro dia, que é simbolicamente associado à ressurreição de Cristo e à Sua saída do túmulo, se inicia sua ascensão até os céus para ser julgada diante do Trono do Senhor. Este processo, sintetizado nas imagens das batalhas entre anjos e demônios no momento da morte, é mais detalhado pelos santos nos ensinamentos sobre os 'telônios aéreos', dimensões associadas a uma hierarquia de paixões e nas quais, gradualmente, as almas são acossadas e atacadas pela fúria dos demônios que se reúnem em torno dela como 'leões prontos para devorá-la'. Este será o tema da próxima postagem.



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sábado, 16 de agosto de 2014

A vida após a morte segundo a Tradição Ortodoxa, de Jean-Claude Larchet -- Parte 1


Meses atrás comecei a ler um excelente livro sobre a morte segundo a Santa Tradição. Mais especificamente, o tema é aquilo que ocorre com a pessoa no processo de separação entre alma e corpo e nos dias que a ela se seguem. O nome da obra é 'Life after Death according to the Orthodox Tradition''. O autor é Jean-Claude Larchet, doutor em filosofia e teologia pela Universidade de Estraburgo e que se converteu do catolicismo-romano para a Santa Igreja aos 22 anos de idade. As fontes usadas são aquelas que embasam qualquer estudo da Santa Tradição, os escritos dos Santos Padres e Anciãos e os textos litúrgicos. Vou fazer pequenas 'resenhas', bem informais, sobre os principais tópicos da obra a fim de dividir tais preciosidades com quem quer se interesse.



1) O primeiro ponto abordado é o significado da morte segundo a Igreja. O homem foi criado em um estado entre a mortalidade e a imortalidade, entre a corrupção e a incorrupção; isto é, Adão possuía em si a possibilidade de, ao obedecer o mandamento que lhe havia sido dado por Deus, prosseguir na imortalidade que lhe fora atribuída por Graça Divina até conquistá-la efetivamente. No entanto, ao se apartar da vontade divina, o homem passou pela experiência da morte espiritual [o obscurecimento do Nous, a faculdade mais elevada da alma e que lhe permitia discernir a essência das coisas criadas e se unir ao Espírito Divino, e a desordem de seus poderes psicossomáticos, ou seja, de suas paixões] e, como consequência desta, da morte física. Uma vez sob o domínio da morte, o diabo pôde se aproveitar deste novo estado para incitar ainda mais o desvio das paixões humanas. A Encarnação de Cristo, bem como Sua Paixão, Morte e Gloriosa Ressurreição, propiciou ao homem a possibilidade de quebrar os grilhões da morte, tanto espiritual quanto física. Embora esta última continue ocorrendo, seu sentido muda radicalmente por causa da esperança da futura Ressurreição geral. 

Um parêntese: o autor indica como os Santos Padres ensinaram que a morte física também tem um aspecto positivo. Mais do que uma simples ''punição divina'' ao pecado, como é encarada comumente no Ocidente, trata-se de um bem retirado de um mal, pois permite que o homem decaído coloque fim aos seus pecados seja pelo simples limite temporal colocado à sobrevivência sobre a terra, seja por oferecer uma oportunidade de discernimento da impermanência de um mundo sem Deus e a consequente oportunidade de metanoia [arrependimento] na contemplação do próprio e no dos demais entes. É neste sentido que a morte [física] abre espaço para a vitória sobre a própria morte [espiritual], o que mais tarde será realizado plenamente pelo Cristo.




2) Depois destes esclarecimentos sobre o significado acima descrito, a obra passa a descrever as percepções do sujeito durante o processo de separação entre alma e corpo segundo o que se pode depreender das fontes ortodoxas. Os santos, em geral, viam como uma benção a existência de uma período de preparação para a morte, no qual o homem toma consciência gradual de seu estado e do fim da vida terrena que se aproxima. Esta é uma alternativa muito melhor do que falecer de repente, sem preparação, caso que pode ser traumático para o indivíduo. O período de preparação não apenas pode facilitar o desapego dos laços mundanos como também incentivar o arrependimento, crucial neste momento fundamental da existência em que estamos prestes a ficar diante do temível tribunal de Cristo. 

O processo de separação do corpo e alma propicia uma série de percepções 'sobrenaturais' ao sujeito que por ele passa. Cito as mais importantes:

a) É muito comum que a pessoa se sinta ''fora do corpo'', ou dissociada dele, sobrevoando o local onde está morrendo. Neste estado, é capaz de discernir tudo o que está ao seu redor, incluindo aí os demais indivíduos e seus estados de ânimo. Isto ocorre ainda que o corpo se encontre inconsciente e incapaz de expressão pelas vias naturais. Trata-se de uma percepção por meios extra-corporais, portanto.

b) É praticamente universal a percepção do mundo espiritual por meio de sons, e, principalmente, do contato com anjos e demônios. Pelo menos dois anjos se farão presentes na morte do homem, o seu anjo da guarda e o seu anjo ''psicopompo'', que o acompanhará pelo mundo espiritual até o destino apontado pelo 'juízo particular' pelo qual vai passar. Os demônios, por sua vez, podem aparecer às centenas ou milhares, acusando e ameaçando o morto com faces monstruosas e iradas. Mas há também casos em que os demônios se apresentam belos, como seres de luz, provocando  pensamentos, sentimentos e ilusões de boa-aventurança, de modo a tirar o foco do indivíduo daqueles últimos momentos em que pode se arrepender de seus erros e se voltar para Deus. A maneira mais eficaz de discernir as ilusões demoníacas nesse estado é  lembrar que os anjos sempre evocam esta necessidade de metanoia, não necessariamente visões paradisíacas. 

c) Outro fenômeno universal é a apresentação diante da consciência de todos os atos experienciados pela pessoa ao longo de sua vida. Eles podem se apresentar de modo rápido, em ordem cronológica, ou se situarem diante do sujeito todos ao mesmo tempo, simultaneamente. Seja como for, o indivíduo tem percepção nítida de todos eles, testemunhando-os com agudeza. Este período é mais uma oportunidade para a metanoia e para a gratidão a Deus.

d) O indivíduo também pode ter a visão de outras pessoas que estão morrendo no mesmo momento que ela. Também ocorre, mais raramente e no causo de algumas pessoas santas, que sejam recebidas por Santos, Apóstolos, pela Toda Santa e Pura Theotokos ou até mesmo por Cristo Nosso Deus.


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