sexta-feira, 22 de abril de 2022

A RAINHA DO MEIO DIA, considerações sobre o Imaginário Brasileiro e a Tradição

 "Sou morena, mas sou bela, ó filhas de Jerusalém, como as tendas de Cedar, como os pavilhões de Salomão."

Cântico dos Cânticos, capítulo 1, versículo 5




O anúncio do Manifesto da Frente Sol da Pátria e do primeiro livro com textos dos ativistas impactou alguns adeptos do Platonismo Distorcido que mencionei aqui. Pior ainda, os cabelos da turma ficaram em pé quando depararam com o título “Rainha do Meio Dia”, expressão que aparece em outros textos e postagens da SdP.

 

Rapidamente, alguns criaram a narrativa de que o epíteto diz respeito a macabras entidades materiais, subterrâneas e caóticas que eles leem sob o signo da Mulher. 

 

É hora então de expor mais alguns equívocos do Platonismo distorcido, cujas críticas são causadas por:


  1. Apego a um dualismo metafísico cuja versão contemporânea está no ocultismo;
  2. O repúdio às forças femininas que se expressam na Possibilidade Universal, na potência, na matéria, na substância e no corpo, gerada por uma disposição gnostikoi que não deve ser confundida com a gnose, e que leva a uma postura anti-tradicional ao rebaixar a mulher no terreno da espiritualidade;
  3. A incapacidade de ler a realidade a partir do próprio imaginário brasileiro.

 

Neste texto, tratarei do terceiro ponto acima.

 

A Rainha do Meio Dia é figura literária de Ariano Suassuna, e tem papel indispensável em sua interpretação da cultura brasileira. Portanto, ao repudiá-la, o Platonismo Distorcido se coloca imediatamente contra o principal nome do Movimento Armorial e um dos pensadores e artistas mais importantes do Brasil Profundo.

 

O afastamento do Platonismo Distorcido em relação a Suassuna não deve surpreender. Como pretendo deixar claro na História da Dissidência Tradicionalista que publicarei em breve neste blog e o no vindouro site da Frente Sol da Pátria, os temas diretamente ligados à Brasilidade foram desenvolvidos com grande esforço por pessoas que se afastaram dos mesmos grupos que agora rejeitam a imagem da Rainha. Nada mais natural que retornem, gradual mas firmemente, a um dualismo ligado ao “nordicismo esotericista” que apontei ser um dos maiores problemas metafísicos e políticos neste meio.

 

Suassuna se remete à Rainha de Sabá, personagem fundamental da espiritualidade cristã, judaica e islâmica. Segundo a História Sagrada, ela teria vindo de seu Reino repleta de presentes para ouvir e conhecer a Sabedoria de Salomão [em algumas interpretações, seu Reino ficaria na Etiópia. Outros apontam o Sudoeste da Arábia. Outros ainda, a identificam com o Egito. E há aqueles que fazem dela uma princesa chinesa.]  No Cristianismo, a Rainha de Sabá é também chamada de “Rainha do Sul”, e mencionada nos Evangelhos da seguinte forma:

 

βασίλισσα νότου ἐγερθήσεται ἐν τῇ κρίσει μετὰ τῶν ἀνδρῶν τῆς γενεᾶς ταύτης καὶ κατακρινεῖ αὐτούς· ὅτι ἦλθεν ἐκ τῶν περάτων τῆς γῆς ἀκοῦσαι τὴν σοφίαν Σολομῶνος, καὶ ἰδοὺ πλεῖον Σολομῶνος ὧδε.

 

“A rainha do meio-dia se levantará no dia do juízo para condenar os homens desta geração, porque ela veio dos confins da terra ouvir a sabedoria de Salomão! Ora, aqui está quem é mais que Salomão."

[Evangelho de Nosso Senhor, Deus e Salvador Jesus Cristo segundo o Glorioso Apóstolo e Evangelista São Lucas, capítulo 11, versículo 31]

 

No texto, a palavra νότου significa, na verdade, “do Sul”.

 

O aviso do Senhor de que a Rainha do Sul se levantaria como Juíza no dia temível não passou  despercebido por Padres da Igreja. Santos viram na Rainha de Sabá um tipo da própria Igreja. [O “tipo” é o personagem ou situação das Sagradas Escrituras que apontam para verdades só desveladas no Novo Testamento, ou ainda para ensinamentos na ordem metafísica]. Assim como a Igreja reúne povos de todas as extremidades da Terra para ouvirem e participarem de Cristo, a Rainha de Sabá fez uma longa viagem para conhecer a Sabedoria de Salomão, ele próprio um tipo de Cristo. Ora, isto a conecta simbolicamente também aos Reis Magos, que levaram presentes e dons para Deus recém-nascido.

 

Como disse Santo Isidoro de Sevilha, sendo a Rainha de Sabá analogia da Igreja, é também tipo da Theotokos [‘Mãe de Deus’] e Eternamente Virgem Maria. Estamos diante de vínculos simbólicos fundamentais na Santa Tradição.

 

Ariano Suassuna sabia que, segundo as tradições, a Rainha de Sabá não apenas ouviu palavras de conhecimento da boca do Santo e Justo Rei Salomão, mas foi sua amante. Ou seja, a transmissão de conhecimento se deu por meio do Eros Sagrado – e não à toa o ato sexual é, nas Sagradas Escrituras, analogia da gnose. A implicação é que o conhecimento adentra o próprio ser do discípulo, toma forma em seu sangue e modela sua existência por inteiro, inclusive a corporal. O que, obviamente, é incompatível com o Platonismo Distorcido e seu repúdio à matéria e à substância.

 

Não à toa, as tradições indicam também que o “Cântico dos Cânticos”, atribuído a Salomão, faz referência à Rainha do Sul:

 

Μέλαινά εἰμι καὶ καλή, θυγατέρες Ἰσραήλ, ὡς σκηνώματα Κηδάρ, ὡς δέρρις Σαλωμών.

"Sou morena, mas sou bela, ó filhas de Jerusalém, como as tendas de Cedar, como os pavilhões de Salomão."

Cântico dos Cânticos, capítulo 1, versículo 5.

 

Onde “morena” significa “queimada pelo Sol”.

 

Suassuna se interessava não só pelo caráter erótico e dionisíaco do tema, mas também pelo elemento “moreno”, que ele chamava de “Castanho”. A Rainha do Meio Dia seria assim a mãe de todas as populações do Sul, ou mais especificamente, das que existem ao redor do Equador. Mais uma vez, o símbolo da Maternidade e o Tipo da Mãe de Deus se fazem presentes no imaginário mobilizado pelo artista e filósofo.

 

Theotokos de São Teodoro, Ícone Padroeiro da Família Romanov

Esse tipo liga diretamente a figura da Rainha do Sul às “Virgens Negras”, conjunto de representações da Mãe de Deus como uma mulher “acastanhada”, como diria Suassuna. A Virgem Negra é representação da Matéria Primordial, matriz e geradora de todos os seres viventes, a mãe do Universo. Mas em Suassuna toma a forma também de uma “matéria segunda”, de onde saem os “povos castanhos do mundo”. Não vou esticar demasiadamente a explicação, mas ele via no Brasil a realização mais radical e acastanhada de todos os filhos da Rainha do Meio Dia, e portanto a expressão mais nítida daquele equilíbrio de antagonismos e União Erótica dos Contrários que é tão importante na Grande Obra.

 

Se mergulharmos ainda mais no imaginário, é fácil perceber que o Brasil é também regido pelo signo de uma Virgem Negra, Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do País e  Generalíssima do Exército.

 

Estas considerações não são exatamente “teológicas”, mas associações simbólicas no Imaginário do povo brasileiro. Para entender a profundidade e o caráter imprescindível da Rainha do Meio Dia, é necessário saber mergulhar neste conjunto de imagens entrelaçadas na Utopia Brasil. Evidentemente, o Platonismo Distorcido não é capaz de fazer isto, dentre outras coisas, porque nega a Brasilidade. 

 

Em textos futuros vou deixar claro que há outros impedimentos para que o Platonismo Distorcido compreenda a Rainha do Meio Dia, mencionados nos dois primeiros pontos que listei acima, e que se apresentam na absolutização do motivo tradicional da luta contra o Caos, entendido a partir de uma dualismo metafísico que associa as forças caóticas com a Mulher, o Feminino, e a Matéria.


Este dualismo e “misoginia espiritual” são incompatíveis com o Cristianismo e o Hermetismo, e também com toda Tradição plena e verdadeira. Em termos metafísicos, o caos dos Mitos de Origem cristãos, egípcios e outros não é independente da Divindade, simbolizada em seu caráter solar, vivificador e criador. E não pode ser identificado com um “Mal Absoluto” ou “Anti-Sol Metafísico”.

 

Estas abordagens surgem não da Tradição, muito menos de uma Gnose. São, na verdade, adaptações contemporâneas de temas dualistas, feitas a partir de literatura ocultista novecentista.

 

Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do Brasil e Generalíssima do Exército

Mais ainda, estas perspectivas são incompatíveis com o Eros Sagrado e o Casamento Místico que é tema fundamental da via espiritual, principalmente a cristã e hermética. [Mas não só.] Como veremos, a História Sagrada no Cristianismo não chega ao fim em nenhum “paraíso de ideias descarnadas”, típico do Platonismo Distorcido. Mas na elevação da Mulher, da Matéria, da Substância e do Corpo a um patamar maior que o dos próprios Anjos.

 

Evidentemente, esta é uma mensagem incompreensível para o Platonismo Distorcido.

 

Aguardem.

terça-feira, 12 de abril de 2022

TRADIÇÃO E CULTURA POPULAR NA FRENTE SOL DA PÁTRIA, ou: alguns mistérios da dissidência tradicionalista

 ''Sigamos estas deusas e vejamos
Se fantásticas são, se verdadeiras.
Isto dito, veloces mais que gamos,
Se lançam a correr pelas ribeiras.
Fugindo as ninfas vão por entre os ramos,
Mas, mais industriosas que ligeiras,
Pouco e pouco, sorrindo e gritos dando,
Se deixam ir dos galgos alcançando."

Luís de Camões, Os Lusíadas, Canto IX, Estrofe 70




A Sol da Pátria, cujo lançamento oficial se aproxima, é uma frente ao mesmo tempo política, tradicionalista e cultural. Estes três aspectos estão mesclados de forma indissociável no movimento, que leva em alta conta a defesa das culturas populares e do folclore do Brasil.


Ora, é justamente esta defesa que levantou algumas críticas, parte delas de desavisados sobre a relação do folclore e da cultura popular com a Tradição. Certos muxoxos não são novos, como vou esclarecer na breve História da Dissidência Tradicionalista que vou tornar pública nos próximos dias. Fazem parte, na verdade, de uma perspectiva calcada em um conservadorismo elitista de natureza burguesa e em um dualismo oriundo de um Platonismo distorcido.

Tratemos então de uma das chaves da nossa Frente. Serei sucinto, prometendo voltar a estes pontos no futuro.



1. O BRASIL COMO IDÉIA, MAS QUE IDÉIA É O BRASIL?

Há um tipo de militante, com traços pequeno burgueses e cosmopolitas, comum em todos os lados do espectro político, e que tem muita dificuldade de se comprometer com o Brasil real, aquele vivenciado no dia a dia. Este tipo de militante costuma se refugiar em jargões, como o de que o "Brasil é uma Ideia". Assim, declaram seu amor a um projeto, a uma miragem, e não ao país que tem diante de si, com o qual raramente se identificam.

Como costumo dizer, amar a humanidade é moleza. [afinal, ela é alta ou baixa? gorda ou magra? introvertida ou extrovertida?] Difícil é amar o próximo. Mas qual deles foi o Mandamento do Senhor?

Não há problema em criticar a sociedade em que se vive, nem em ver no Brasil uma ideia, desde que não se caia em diferentes formas de "vira-latismo". A "Suécia Tropical" é uma ideia de Brasil, por exemplo; o Brasil como imitação dos EUA é outra ideia também. E em nome destas duas ideias é possível fazer tabula rasa do país, criticando suas raízes, sua história e sua cultura, como fazem os pós-modernos ou os liberais da linha de Faoro e Sérgio Buarque de Holanda. É possível até, a partir destas ideias, dificultar a atualização da Utopia que chamamos Brasil.

Pois o Brasil como Utopia, ou o Brasil-Utopia, é a Ideia que nos importa, e ela não é uma abstração teórica descrita em livros que servem de instrumento de um Platonismo distorcido [voltaremos a este tema mais adiante]. Ela é realidade viva e operante, que preenche o imaginário do povo brasileiro e de seus heróis civilizadores.






2. O UNIVERSAL E O PARTICULAR

A Utopia-Brasil é uma rede e uma ''linguagem'' formada por símbolos, tipos e imagens míticas que mesclam, de forma indissociável, temas universais em dada conformação particular, unindo em uma via de mão dupla o que está no alto e o que está embaixo.

Não se trata, assim, de uma "Ideia descarnada", existindo em um mundo totalmente à parte, e indistinguível das cores e sabores proporcionados pelo cotidiano. O Brasil não é "Roma" nem precisa ser. Somos uma NOVA Roma, MESTIÇA, TROPICAL e LATINA.

Como diz o professor Uriel Araujo, "Minha Pátria não está onde estejam meus ideais: está é na paisagem sonora, afetiva e olfativa onde cresci e me fiz homem, no som da minha língua e no sabor da comida, no mosaico de rostos e sotaques da nossa gente, no calendário de nossas festas, nas melodias tristes ou alegres que cresci ouvindo, nesta terra, nestes ares, no nosso sofrimento - em tudo aquilo, cruel ou doce, que me formou. Minha pátria é esta paisagem, esta terra onde me enterrarão."

O Imaginário é o âmbito em que se estabelece esta comunhão, este primeiro casamento entre o Universal e o Particular; ou, dizendo de uma maneira ao mesmo tempo hermética e cristã, em que se dá, em primeiro lugar, esta encarnação de um Universal, a que damos o nome de Brasil.



3. A TRADIÇÃO E O FOLCLORE

Se a Utopia encontra sua primeira encarnação no Imaginário, é a Cultura Popular e o Folclore que constituem o ponto de reflexão mais seguro e estável da Tradição. As raízes populares tomam o aspecto então de "substância" em que as verdades mais elevadas se estabelecem em potência, o verdadeiro depositário e fiel guardião da Ordem quando tudo o mais soçobra. Segundo René Guénon, esta é uma aplicação direta de um princípio tradicional, por meio do qual o ponto mais elevado, que neste caso se refere a uma "elite espiritual" [e não social, erudita, econômica, étnica etc.] encontra seu espelho justamente nos homens mais comuns e até mesmo "vulgares", e não em um dos pontos intermediários da escala [como a classe média]: ''é a esse mesmo povo (e certamente a aproximação não se dá por acaso) a quem se confia sempre a conservação das verdades de ordem esotérica que de outro modo correriam o risco de se perder, verdades que o povo é incapaz de compreender, certamente, mas que nem por isso deixa de transmitir fielmente, inclusive se para tanto sejam recobertas, elas também, de uma máscara mais ou menos grosseira. E é essa, em suma, a verdadeira razão de existir do ''folclore'', e concretamente de todos os pretensos contos populares''.

Esta "elite" se mistura e busca refúgio no povo, do qual não se distingue exteriormente, porque ali se encontra na presença do divino resguardado na cultura popular.

Diz o professor Luiz Campos se referindo a Vicente Ferreira da Silva: "O aspecto mais interessante e profundo de sua obra, na minha opinião, é o conceito de que a consciência dos povos é formada por uma espécie de possessão coletiva pelo divino. Os deuses de um povo estruturam toda a sua cosmovisão, incluindo a interpretação que o mesmo povo faz de si mesmo. Tal auto-interpretação tem sua manifestação mais perceptível na cultura popular e no folclore. Portanto, sendo o povo condicionado pelo seu divino particular, é um erro terrível considerar a cultura como mera manifestação material ou social. Ela é a irrupção imediata do sagrado."

Dizendo de outro modo, a Tradição se desdobra em diversas camadas, afetando a vida inteira das populações. As reminiscências de conteúdos tradicionais, no sentido estrito do termo, se dão no conjunto de costumes e artes, mitos, brincadeiras, formas de sociabilidade partilhados e transmitidos pela comunidade. No fundo, esses elementos são as imagens e referenciais simbólicos que os grupos culturais usam para representar e interpretar o mundo pra si e para comunicá-los aos demais. O imaginário serve assim de rede receptora e transmissora dos elementos tradicionais, ainda que de forma ''não consciente'', ou, dizendo mais propriamente, de maneira lunar.


Ora, sem pretender entrar na querela sobre a sobrevivência de outros meios de transmissão no Brasil, o 'fato' é que os povos e populações raízes cuja interação está no fundamento de nossas identidades foram salvaguardados de algumas das piores influências do mundo ocidental.





4. OS ALQUIMISTAS ESTÃO CHEGANDO

A possibilidade de que gnósticos e iniciados 'extraiam' da matéria prima da base popular as verdades tradicionais que serão mobilizadas em uma 'retificação' tradicional tem de levar em conta dois princípios básicos. Caso contrário, corre-se o risco de cair no Platonismo distorcido já mencionado:

I. O nascimento de uma civilização tradicional a partir da cultura popular não deve deixar para trás nenhum aspecto do imaginário do povo, nem mesmo aqueles encarados como "restos indesejados". Não há nada legitimamente popular a ser deixado para trás, nenhuma "matéria má" no povo, nenhum elemento que não seja passível de amor. Os alquimistas sabem que as cinzas são indispensáveis à Obra. Trata-se de uma via de amor e conhecimento.

II. A purificação não termina em um estado de contemplação de "Ideias descarnadas", como pensa o Platonismo distorcido. O grande mistério não está no albedo puro. A fase em vermelho exige a instanciação de todas as potências em uma nova forma luminosa. Trata-se de espiritualizar a matéria e corporificar o espírito. Em linguagem cristã, é a Encarnação e a deificação do mundo, o Grande Mistério do Amor. E assim, a ''elite espiritual'' que foi ao povo para mobilizá-lo como base toma ela mesma a forma e o corpo do próprio povo. Como diz René Guénon, ''a elite, ao descer de certo modo até o povo, encontra antes de tudo a vantagem da ''incorporação'', enquanto esta é necessária para a constituição de um ser realmente completo em nosso estado de existência. E o povo é para ela um ''suporte'', e uma ''base'', do mesmo modo que o corpo o é para o espírito manifestado na individualidade humana. A identificação aparente da elite com o povo corresponde propriamente, no esoterismo islâmico, ao princípio dos Malâmatiyah, que estipularam a regra de tomar uma aparência tanto mais ordinária e comum, inclusive grosseira, quanto mais perfeito e de uma espiritualidade mais elevada for seu interior, e de não deixar aparecer nunca nada dessa espiritualidade em suas relações com os demais homens. Se poderia dizer que, por essa extrema diferença entre o interior e o exterior, colocam entre esses dois lados de seu ser o máximo de ''intervalo'', se é permissível se expressar assim, o que lhes permite compreender em si mesmos, a maior soma de possibilidades de toda ordem, o que, ao fim de sua realização, deve desembocar logicamente na verdadeira ''totalização'' do ser."



5. DO IMAGINÁRIO DOS POVOS DO SUL


O Platonismo distorcido se desdobra em três erros graves. Primeiro, confunde a capacidade de contemplação ou intuição dos Universais com o ponto superior do processo iniciático e de realização. Mas conforme expus acima, a fase ulterior de Realização se dá na corporificação do espírito. A capacidade de intuição não está acima da conformação de um estado total de possibilidades, que só se dá na Encarnação e Deificação. Como Guénon diz de maneira muito apropriada: "[A realização descendente] se refere também à ideia de totalidade, em virtude mesma do que explicamos um momento atrás: no fundo, é uma aplicação do axioma segundo o qual ''o todo é mais do que as partes'', qualquer que seja ademais essa parte, e ainda que seja a mais eminente de todas. "

O segundo erro está em confundir o símbolo do Norte na Geografia Sagrada, lar meta-histórico dos homens capazes de contemplação dos Universais, com uma suposta superioridade perene do Norte Geopolítico e Global na história. O Norte é signo do Pólo, do locus equidistante em relação a todas as épocas e espaços. É o raio divino, ou o estado edênico, que não se reduz a nenhum local, povo, etnia, e época, pois está acima das contingências do mundo decaído, sendo para sempre no Tempo Mítico. Quando o Platonismo distorcido confunde o estado edênico com o Norte Global cai em um "nordicismo esotericista". Ouve o galo cantar, mas não sabe onde.

O erro-síntese do Platonismo distorcido que descambou para "nordicismo esotericista" é o dualismo metafísico. Ao não entender o grande mistério da matéria, da corporificação do espírito, da realização descendente e da Encarnação, cai em uma ''demonização'' do feminino e da substância. O motivo tradicional do Chaoskampf ['luta contra o Caos'] é absolutizado, quando na verdade não esgota sequer os mitos de Origem, levando à associação do feminino com uma tipo metafísico de ''mal''. O que é incompatível com o Rosacrucianismo, o Hermetismo, o Cristianismo, a Erosofia, e a Tradição de modo geral.

Ora, o Imaginário dos Povos do Sul é regido pelo Eros Sagrado e pelo Amor.



6. DO APOLÍNEO E DO DIONISÍACO





O mesmo dualismo tende a considerar Apolo e Dionísio como deuses imobilizados, cada um deles responsável por uma área da realidade, e sem imbricação possível. Pelo contrário, impõem a estes deuses, e às realidades que denominam, uma oposição férrea, típico da análise dualista. Mas todo dualismo que não deixe um espaço para conciliação e complementaridade é falso no Mundo da Tradição.

O professor Alexandre Sugamosto demonstrou que "Giorgio Colli (1992), por exemplo, defende que o “espírito apolíneo” representa, de fato, a ligação com a palavra viva da sabedoria. Contudo, ele argumenta que Nietzsche achatou as possibilidades de Apolo quando não percebeu que a sabedoria também tem um aspecto “feroz” e “distante”. Em certa medida, o conhecimento leva em seu imo uma faceta destruidora, na medida em que irrompe diante de determinadas ilusões espirituais ou intelectuais. Ademais, Nietzsche trata Apolo e Dioniso como deuses antitéticos. Segundo Colli, no entanto, as origens orientais de Apolo revelariam uma ligação com manifestações “xâmanicas” e “extáticas” e daí sua capacidade de curar, ver o futuro e fazer profecias (COLLI, 1992, p. 15). Como as loucuras proféticas e a loucura dos mistérios são regidas, respectivamente, por Apolo e Dioniso, não haveria oposição entre os dois deuses, mas poderes complementares de caráter mântico.

"Sendo assim, Apolo e Dioniso possuem uma afinidade fundamental, justamente no terreno da “mania”; juntos, eles esgotam a esfera da loucura, e não faltam bases para formular a hipótese-atribuindo a palavra e o conhecimento a Apolo, e a imediatez da vida a Dioniso- de que a loucura poética é a obra do primeiro, e erótica, do segundo (COLLI, 1992, p. 17)''



7. DE VOLTA À UTOPIA BRASIL




E assim, a Ilha Mítica e Encantada se torna de novo presente aos olhos do navegador, e mergulhamos mais uma vez no êxtase da Terra Sem Males. Como ensinava Ariano Suassuna, o cerne da Cultura brasileira é o mistério da Coincidentia Oppositorum, a União dos Contrários. O casamento do Sol e da Lua, e também o Apolo dionisíaco e o Dionísio apolíneo:

"é o choque violento, mas, ao mesmo tempo, a unidade terrificante do ser e da ruína; do universo exterior e real e de seu reflexo na consciência humana: do real, do imaginado e do imaginário; da liberdade e da fatalidade; da intuição e da reflexão; da vida e do amor como fatores e servos da Morte e das ligações da morte com o Amor – inclusive do amor sexual – como fatores de eternidade e de rejuvenescimento; da realidade implacável e severa, por um lado, e do real magnificado da Arte, por outro; da claridade enigmática e da escuridade sombria, lodosa e fascinante da Beleza – que é, ao mesmo tempo, abismo satúrnico e brilho solar – e assim por diante."

Mistério da harmonia dos contrários, de um povo mestiço de corpo e alma, e antropófago por natureza. Da embriaguez do pensamento, que revela e estabelece a verdade da Onça Castanha: o Reino Vegetal de Vênus e o Eldorado regido pelo Sol.



PÃO, TERRA, TRADIÇÃO!


André Luiz V.B.T. dos Reis
12 de abril de 2022

domingo, 10 de abril de 2022

DOS ERROS DE DUGIN E PUTIN, ou: André Luiz mudou de opinião?

''Dugin cai assim no mesmo racismo culturalista que pensa combater ao denunciar o substrato das três teorias políticas contemporâneas.''




1. Da responsabilidade do conflito e da necessária Multipolaridade


Perguntaram se ''mudei de opinião'' quanto ao conflito ucraniano. Não mudei coisa nenhuma, alguns dos meus críticos é que não tem muita capacidade de leitura, ou se abraçam a uma postura desonesta.

Afirmei inúmeras vezes que o principal responsável pelo conflito, cuja feição militar começou em 2014 no Donbass [e não em fevereiro deste ano], é a OTAN e o hegemonismo ianque, que visa cercar a Eurásia e se expandir, se possível, para dentro do próprio território russo. Evidente que, mais dia menos dia, a Rússia reagiria de alguma maneira para garantir sua segurança nacional e sua integridade territorial. Já havia feito isto na Geórgia, em 2008; e a Ucrânia era alvo de guerras híbridas antes mesmo disto e do EuroMaidan.

Muito simples. Não há qualquer neutralidade neste âmbito mais geral.

Daí NÃO SE TIRA, porém, que toda e qualquer reação russa, ou toda e qualquer medida de Putin em meio a esta reação, seja legítima ou deva ser apoiada. Afirmar que a ''identidade ucraniana é artificial e ridícula'', como fez Dugin há poucas semanas, não deve ser aplaudido. Desenhar as fronteiras da Ucrânia segundo os interesses russos, inviabilizando o país, tampouco deve ser apoiado.

Afinal, eu continuo defendendo a identidade e a liberdade de TODOS os povos do planeta. Se alguém se tornou claudicante neste objetivo não fui eu.

[Não é apropriado comparar a Ucrânia a Kosovo, são processos muito diferentes. Kosovo foi separado da Sérvia por meio de bombardeios da OTAN. Já uma Ucrânia própria, com identidade particular, era reconhecida desde o Czarismo. A União Soviética, inclusive, incentivou o nacionalismo ucraniano e sua diferenciação dos grão-russos. Quando da instituição da ONU, a URSS era um país com TRÊS assentos na Assembleia Geral da ONU: Rússia, Ucrânia e Bielo-Rússia. O argumento soviético é de que se tratavam de três nacionalidades distintas. E se é verdade que os EUA prometeram não expandir a OTAN quando do fim da Guerra Fria, é verdade também que a Rússia prometeu respeitar a soberania do novo Estado ucraniano, pré-condição inclusive para receber as armas nucleares estacionadas no país.]

Se é verdade que a multipolaridade é melhor que a unipolaridade, e que a derrota da OTAN é imprescindível para alcançá-la, daí não se conclui que qualquer arranjo multipolar é bom, ideal ou deva ser defendido. A multipolaridade que interessa a Rússia de Putin pode muito bem ser uma multipolaridade que não contemple os interesses brasileiros, que tem características e especificidades próprias.

Todas estas questões são banais, principalmente se compreendidas a partir das críticas pesadas que sempre foram feitas a Putin em meio à dissidência tradicionalista.

Mas por que, então, alguns não entendem o simples?



2. Duginismo e Russofilia: só existiriam ''dois campos", o russo e o anti-russo

Não entendem por causa da adesão irrestrita e russófila às posições de Alexandr Dugin. Há uma confusão na cabeça de duginistas sobre o papel do geopolítico e sociólogo. É fato que se trata de um dos maiores pensadores contemporâneos, e um autor tradicionalista de dimensão singular e que deve ser lido, compreendido e absorvido em todas as suas positividades teóricas.

Mas Dugin é também, como ele próprio confessa, um agente do Estado russo, um patriota e defensor da grande Rússia Imperial. Bastou eclodir a agressão militar para que ele concedesse entrevistas à imprensa estrangeira se apresentando como artífice da atual geoestratégia das Forças Armadas e das Agências de Inteligência russas -- de maneira francamente exagerada, diga-se de passagem, já que super-dimensionar a própria importância faz parte do jogo político.

Até aí, nada demais. Não existe problema em ser também um militante. Grandes teóricos e analistas são grandes artífices políticos e militam por alguma utopia.

A questão é que a Utopia de Dugin é prioritariamente russa.

Simpatizo com Dugin quando ele diz, de forma maniqueísta e erística, que a Rússia é a "civilização da luz", e que o conflito atual é entre a Rússia e a anti-Rússia. É um reducionismo dualista planejado para angariar apoio para o próprio país. "Quem não está comigo, está contra mim; quem comigo não ajunta, espalha", assim disse o Senhor. Mas assim também disse George Bush, distorcendo o sentido das palavras de Cristo para seus próprios propósitos políticos.

É compreensível que um russo defenda sua Pátria e os interesses do governo que apóia a partir desta retórica dualista que não deixa espaço para nenhuma alternativa. Agora, um brasileiro e latino-americano dizendo que os EUA são a ''cidade no alto do monte'' ou que a Rússia é a civilização a luz, é bastante complicado.





3. Resquícios racistas em Dugin: o Sul Geopolítico é sempre ''passivo''

Para Dugin, esta questão é menor. Como demonstrei em texto anterior, ele advoga que o Sul Global [ou Geopolítico] é estruturalmente submisso em relação ao Norte. Não se trata aqui do Sul Simbólico, mas do Sul Geopolítico mesmo. Ou seja, a América Latina, a África e a maior parte da Ásia jamais conseguiriam libertar-se do domínio Ocidental sem aceitarem a liderança e o domínio do Norte Geopolítico. Para o Sul, se trataria apenas de se conformar ao Ocidente anti-tradicional, ou ao Norte tradicional. Nunca se tornar realmente independente.

Esta abordagem faz parte de um olhar nórdico sobre a Tradição e a Civilização, e, mais do que isto, um resquício do racismo culturalista que o próprio Dugin critica na Quarta Teoria Política. Pois se os povos do Sul Global são por natureza sempre dependentes do Norte, se são sempre passivos e jamais podem propor ou executar uma geopolítica própria que altere de modo soberano as Relações Internacionais, então há uma inferioridade cabal destes povos em relação aos do Norte Global.

[Lembremos que para Dugin a Geopolítica é a disciplina moderna que mais reflete a Tradição, e portanto a inferioridade do Sul Global -- não apenas do Sul simbólico, diga-se de passagem -- é uma aplicação de sua interpretação do significado da Tradição].

Dugin cai assim no mesmo racismo culturalista que pensa combater ao denunciar o substrato das três teorias políticas contemporâneas.

Isto nos leva a uma conclusão inescapável: há não só um racismo progressista e iluminista que permeia todo o paradigma moderno; mas há também um racismo esotericista e pretensamente tradicionalista. Quando Dugin olha para o Sul Global e todos estes ''mulatos lendo Heidegger" [conforme ele disse alhures, demonstrando surpresa] e afirma que todos eles sempre serão passivos e sem iniciativa geopolítica própria, está se colocando a pergunta dos fariseus quando ouviram falar de Cristo: "Pode vir alguma coisa boa de Nazaré?"

Já demonstrei alhures que o raciocínio de Dugin se revela falso quando o aplicamos à configuração atual das Relações Internacionais: a China não é integrante do Norte Geopolítico, e a Rússia se tornou dependente de Xi Jinping. Tão dependente que teve não só de firmar uma aliança rígida com o líder comunista como também esperar até o fim das Olimpíadas de Inverno, em Pequim, pra iniciar a invasão à Ucrânia. A China é o grande sujeito político oculto em todo este conflito, mais ativo e determinante do que a Rússia jamais poderia ser no atual momento histórico.


4. O dualismo de Dugin como reatualização parcial da Teoria dos Dois Campos

Ora, o dualismo retórico empregado por Dugin para angariar apoio para seu país tem precedentes históricos. Em resposta à postura confrontacionista norte-americana e ao ''Longo Telegrama", de G. Kennan, em meados dos anos 1940 e nos primórdios da Guerra Fria, Andrei Zhdanov elaborou a "Teoria dos Dois Campos".

Resumindo, ela defendia que todos os aspectos da vida humana, dos ideológicos aos científicos, dos filosóficos aos artísticos, dos políticos aos econômicos, podiam ser reduzidos a dois campos inconciliáveis: o socialismo marxista e o liberal capitalista.

Esta forma de pensar tinha influência direta nas posições geopolíticas: Só existiam duas possibilidades para todos os demais agentes estatais. Ou se vinculam ao comunismo em uma luta global contra o imperialismo, o que significava se vincular a Moscou; ou se subordinam ao próprio imperialismo em uma luta contra a liberdade dos trabalhadores do mundo inteiro.

A Teoria dos Dois Campos foi a desculpa perfeita para que Stalin demolisse qualquer pretensão de independência do leste europeu e reconstruísse estes países segundo os princípios do socialismo real soviético. Evidente que foi usado também pelos ianques para fazerem o mesmo na Oeste, construírem a OTAN [com grande apoio britânico], e se projetarem geopoliticamente para fora da América do Norte -- elemento chave do mundo pós II Guerra Mundial.

Não é que Stalin estivesse ''equivocado'' em mobilizar esta teoria. A Rússia queria empregar o tipo de imperialismo com que os europeus estavam acostumados, ocupando militarmente e colocando governos títeres nos países de seu entorno geoestratégico. Nada muito diferente do que os próprios EUA faziam no Caribe ou o que os europeus faziam no Norte da África. Assim com hoje, as preocupações de segurança russas eram perfeitamente compreensíveis e legítimas. O país tinha sofrido diversas invasões vindas do Oeste da Europa, e as mais recentes tinham sido devastadoras [a napoleônica e as duas guerras mundiais].

Só que existem povos, mentalidades, perspectivas e agentes além destes grandes polos. E estes povos e agentes não são ''matéria prima'' passiva do Norte Geopolítico, como se imaginam alguns duginistas. Há um Sul Global ativo também.

Ao longo dos anos 1950 e 1960, estes agentes criaram aos poucos o Movimento dos Países Não-Alinhados, forma que encontraram de se contrapor à redução do planeta ao embate entre dois grandes polos de poder, sistema que só interessava de fato aos EUA e URSS. No início, as super-potências aceitaram os ''não-alinhados'' por questões pragmáticas. Mas com o congelamento geopolitico da Europa a partir da construção do Muro de Berlim, e na medida em que ficou nítido que o ''não-alinhamento'' era à vera, Washington e Moscou realizaram diversas intervenções no Sul Global [que se chamava de "Terceiro Mundo" naquelas décadas] a fim de reforçar a bipolarização que lhes interessava.

Evidente que a Rússia não tem hoje poder para estabelecer um sistema bipolar em confronto com os EUA. Quem poderia exercer esta papel é a China, e Putin vai tentar de tudo para não ser engolido por Xi Jinping e estabelecer, pelo menos, um tripolaridade global.

Mas isto pouco importa para nós do Sul, da América Latina e, principalmente, do Brasil. A unipolaridade é péssima, a bipolaridade é uma porcaria, mas a tripolaridade ou a multipolaridade não são necessariamente boas. A multipolaridade faz parte da nossa Utopia, mas a multipolaridade, por si só, não é nossa Utopia.





4. Possibilidades de Multipolaridade

Em 1941/42, o presidente dos EUA F. D. Roosevelt já tinha uma proposta de rearranjo do sistema internacional quando a guerra chegasse ao fim. Ele não tinha ainda na cabeça a formação de uma nova "Liga das Nações". A proposta era de quatro ''policiais do mundo'', quatro ''xerifes'' responsáveis, cada um deles, por uma área do planeta. A América pertenceria aos EUA, a África à Inglaterra [que mais tarde fez questão de colocar a França na jogada], partes do leste da Europa e do Cáucaso à Rússia, o Oriente seria policiado pela China [já que o Japão havia se tornado um inimigo].

Nos anos seguintes, Roosevelt concluiu pela necessidade da ONU, com adesão do maior número possível de Estados-Nacionais, e foi convencido de que esta divisão regional das potências não era viável. Ainda assim, sua proposta foi parcialmente instituída por meio do Conselho de Segurança da ONU. Percebam que era uma proposta multipolar. E uma multipolaridade que em nada interessava ao Brasil e à América Latina.

Se o mundo é multipolar desde a agressão russa à Ucrânia, como diz Dugin, então é hora de o Brasil se dedicar à construção de um sistema de relações internacionais que o favoreça. Para isto, ele deve sim apostar em alianças contra-hegemônicas contra seu inimigo geopolítico, os Estados Unidos, que exercem o domínio do continente americano. Mas aquilo que é bom para a Rússia ou para a China, pode ser ruim para os EUA sem ser bom para o Brasil. Temos de criar uma voz autônoma, não nos imaginarmos como um tipo novo de Cuba, sem qualquer alternativa senão se reduzir a pau de toda obra de algum polo de poder.

Não se trata de ficar ansioso para lutar nas próximas guerras russas no leste europeu ou na Ásia, seja na Ucrânia ou na Síria. E sim se preparar para defender, se necessário for, o Brasil e a América Latina, o Sul Geopolítico e todos os povos subordinados pelo capitalismo imperialista.


5. Conclusão

Quais os vínculos entre a leitura de mundo de Putin e Dugin? O pensador defendeu que Putin está aplicando à Quarta Teoria Política em sua confrontação com a OTAN. Mas está mesmo? Em que medida Stalin faria diferente, ou qualquer patriota russo, ainda que partidário de uma ideologia contemporânea, faria de fato diferente? Construir um espaço de segurança nacional para a Rússia não é necessariamente sinônimo de Quarta Teoria Política ou de guinada rumo à Tradição.

Xi Jinping vai reivindicar Taiwan daqui a poucos anos em nome do Partido Comunista Chinês. A Geopolítica reflete embates tradicionais, mas cair no erro de confundir certos campos de atuação não passa de ilusão. Putin não é um Czar, assim como Stalin também não era, ainda que estivessem corretos na defesa da segurança de seu país -- embora tenham errado em algumas das decisões que tomaram visando este fim. Mais uma vez, não se deve confundir os meios com os fins.

Quanto ao Brasil, o primeiro passo para que tenhamos iniciativa geopolítica real está em usar referências próprias para pensar o país, e também para se posicionar no sistema internacional. Defender todo e qualquer posicionamento emanado da caneta de Dugin não passa de uma russofilia patética, tão patético quanto seguir lições da NSA ou da CIA. Os russos podem ser aliados, amigos, mas não ditar nossa leitura de mundo ou nosso posicionamento nos conflitos mundiais.

Não basta ser "brasilófilo" [declaração que soa engraçada quando vinda de um brasileiro, diga-se de passagem]. É necessário, antes de tudo, ser um patriota brasileiro, assumir nosso caráter latino-americano, e jogar na lata do lixo a crença absurda de que o Sul Global e Geopolítico é sempre "passivo em relação ao Norte".

Dugin está errado se defende este resquício de racismo culturalista nordicista, fruto de uma interpretação equivocada da Tradição. E seus posicionamentos no mundo concreto da política e da geopolítica não tem de ser necessariamente os nossos, já que ele é também um defensor da Rússia Imperial, e não um patriota brasileiro [ainda que possa ser ''brasilófilo" de modo algo retórico].

A multipolaridade começou ou não em fevereiro de 2022, como disse Dugin? Ou ele estava errado sobre isto também?

Seja como for, os brasileiros não podemos ficar a reboque dos equívocos alheios. É até melhor que cometamos nossos próprios erros do que simplesmente repetirmos os alheios por ''passividade'' teórica, política e geopolítica.

Afinal, somos patriotas brasileiros, tradicionalistas dissidentes do Sul e dos povos da Rainha do Meio-Dia, devotos da Onça Castanha.


PÃO, TERRA, TRADIÇÃO!


André Luiz V.B.T. dos Reis
10 de abril de 2022