sábado, 16 de março de 2024

O Pastor Yago Martins e o Cânone Judaico parte V: Os Concílios

 


Para terminar a série de postagens em que comento a defesa do Antigo Testamento protestante pelo Pastor Yago Martins, apresento algumas fontes deixadas de lado no vídeo do Dois Dedos de Teologia


Se alguém tiver interesse de acompanhar toda a análise, deixo os links para os textos anteriores:


1) O Cânone estava aberto na Palestina do século I

2) O Cânone Rabínico, a Mishná, Flávio Josefo e Fílon de Alexandria

3) Os livros citados por Cristo e pelos Apóstolos

4) O Cânone na Patrística


Já que o Pastor trouxe para a arena argumentos baseados na Patrística, não custa também analisar as resoluções conciliares, os encontros oficiais entre as lideranças da Igreja, ocorridas no mesmo período de tempo das obras citadas em Lutero tirou livros da Bíblia?


Em resposta a um canal católico-romano, Yago Martins disse que os Concílios apenas "batiam o martelo" sobre aspectos da vida religiosa que já tinham tomado corpo nas comunidades cristãs. O argumento é que o cânone não se trata de uma imposição conciliar, que ele foi fechado aos poucos e de modo orgânico nas diferentes igrejas, e só foi oficializado pelas autoridades clericais nos sínodos. É uma forma dos protestantes se livrarem do peso institucional da decisão dos Bispos, que coloca em risco a visão calvinista sobre a organização eclesiástica.


O problema é que se trata de uma visão a-histórica e até ingênua. Afinal, os Concílios nem sempre ''batem o martelo'' sobre o que já está estabelecido. É bastante comum que as decisões fossem contestadas durante décadas, até mesmo séculos. O arianismo, só para dar um exemplo, não foi inteiramente resolvido no mundo cristão em Nicéia [325]. As discussões cristológicas deram pano pra manga por muito tempo, e provocaram divisões entre que se mantém até hoje. 


Muitas decisões conciliares eram tomadas em momentos de intenso conflito, algumas contra as autoridades constituídas. Quando mais a Igreja e o Império se aproximaram, mais os Concílios estiveram imbricados com perigos provenientes do exercício do poder temporal.


A noção de que os principais temas discutidos na Cristandade chegavam apaziguados nos sínodos, bastando ao Bispos referendarem o que já estava dado na vida interna das diferentes comunidades é um mundo cor-de-rosa que nunca existiu. O argumento protestante torna muito difícil explicar, aliás, as dissensões ainda existentes, como aquelas das igrejas orientais, dos monofisitas e nestorianos etc. 


Voltarei a este ponto quando der continuidade à série específica sobre cânone neotestamentário. Não são poucos os autores protestantes que tiram todo o peso possível do ''martelo'' das autoridades eclesiásticas e outras que possam recordá-los, minimamente, de que a Igreja se tratava sim de uma instituição hierarquizada e orgânica. Mas o cânone do Novo Testamento não surgiu desse modo espontâneo com que defendem em suas obras. Houve Igrejas que, distanciadas do catolicidade, adotaram um Novo Testamento de apenas 22 livros, e não 27. 


Além disso, os Bispos e Presbíteros participavam do dia a dia das comunidades. Eles não eram elementos exógenos assistindo ''de fora'' as posições tomarem corpo em suas igrejas. É fato que não há liderança sem seguidores, mas os líderes tem uma capacidade de influência no cotidiano que não pode ser desprezada. É por isso, inclusive, que o Pastor Yago decidiu citar a posição de Padres dos primeiros séculos em seu vídeo de defesa do cânone: pelo peso que as palavras destas figuras tinham entre os cristãos de sua época e de outras.


Enfim, os Concílios são testemunhas evidentes do que as Igrejas cristãs pensavam das Escrituras Sagradas, que livros eram lidos e estudados. 


Outra fonte importante são os manuscritos com as Escrituras, produzidos ainda na Antiguidade: os códices que remontam ao século IV e V. Ainda que não sejam decisivos na questão, já que eu mesmo enfatizei que listas de livros canônicos não são exatamente um cânone, estes documentos comprovam as tendências inclusivas do processo de canonização.


 Abaixo, um quadro com informações sobre estas listas.





Os "Cânones dos Apóstolos" é pseudo-epígrafo. Mas foi referendado por Concílio Ecumênico [na verdade, o Concílio de Trullo], ao lado de outras listas. O que significa que, em pleno século VII, a Igreja convivia normalmente com listas diferenciadas de livros canônicos. Outro ponto notável é que as decisões do Concílio de Trullo não foram inicialmente aceitas pelo Patriarcado de Roma, o que desmonta também a ideia de que o atual formato do Antigo Testamento seguia algum tipo de conspiração católica-romana.


As considerações do Pastor sobre a doutrina presente nos "deuterocanônicos" não são relevantes, já que pressupõem o cristianismo reformado e fazem uso de apelos sentimentais ["vocês iam querer que um livro desses orientasse sua vida?"]. Este tipo de apelo pode ser feito basicamente sobre qualquer livro escriturístico, e é muito usado por ateus contemporâneos quando alegam que o cristianismo é démodé, como se os valores e práticas de nosso tempo fossem o critério seguro de verdade. 


Por fim, se o calvinismo for mesmo uma doutrina abstrata capaz de avaliar o que é certo e errado nas Escrituras e até que livros são ou não revelados, então a ideia de que a Bíblia é a única ou a principal regra de fé cai por terra. Para que o calvinismo esteja correto é necessário antes saber de modo seguro e infalível quais são os livros revelados. Ou então o Sola Scriptura se torna um beco-sem-saída. Não por acaso, a insistência protestante de que há um cânone salvaguardado desde sempre, uma crença que pode ser desmontada até mesmo por uma pesquisa histórica superficial.


Desta série podemos concluir que:


1. Não havia cânone judaico fechado no século I. As pesquisas demonstram, inclusive, a fluidez das formas textuais de diversos livros das Escrituras Judaicas. Antes do século II a.C., a revelação não era entendida como uma forma textual precisa, definitiva e acabada, mas com um sentido apropriado quase de modo xamânico. A estabilização dos textos foi realizada posteriormente, em uma sensibilidade que se estabelecia aos poucos entre o século I a.C. e II d.C. E somente séculos depois, grupos rabínicos concluíram que a revelação estava inscrita de modo literal no texto, dependendo da correta análise de cada letra em seu valor específico, numérico, dando concretude e materialidade à ideia de ''alfabeto divino'' no corpo textual da Tanack.

2. O cânone rabínico [Tanack] só é fechado entre os séculos II e IV da Era cristã. Não faz sentido projetá-lo para antes das Guerras Judaicas. Além disso, o cânone rabínico não pode ser confundido como o ''cânone da comunidade judaica''. 

3. A Igreja usava a Septuaginta, assim como a maioria dos judeus dos primeiros séculos, e a considerava tão inspirada quanto os textos em hebraico. Os próprios autores neotestamentários usavam, prioritariamente, a Septuaginta em suas citações e em sua compreensão das profecias. 

4. Os cristãos não se subordinavam ao cânone rabínico, ainda que levassem em conta, principalmente a partir do século IV, que o número de livros deveria obedecer ao número de letras do alfabeto hebraico ou do alfabeto grego. Eles tentavam acomodar os livros lidos e cantados nas Igrejas a este número, e ao mesmo tempo manter uma noção mais abrangente e inclusiva de inspiração divina.

5. O cânone do Antigo Testamento não estava fechado, o processo de debate ocorreu durante toda a primeira metade do primeiro milênio, se intensificado após o Édito de Milão. No século V, o cânone veterotestamentário era inclusivo e permanecia aberto tanto no Oriente quanto no Ocidente. 


quarta-feira, 6 de março de 2024

O IDENTITARISMO E DUNA 2

 "Você pensa que eu sou o Kwisatz Haderach. Tire isso de sua cabeça. Eu sou alguma coisa inesperada."

Paul Atreides para Jessica






Na postagem anterior, avisei que Duna 2 é espetacular como cinema, mas que ainda assim pode frustrar alguns fãs da obra de Herbert.

A essa altura já se pode dizer o porquê: Villeneuve fez modificações na narrativa para ajustá-la às sensibilidades da esquerda ianque. Óbvio que este ajuste não pôde ser nem de longe completo, ou então ele não contaria a história de Duna.

A primeira grande modificação foi descomplicar a política. Mencionei a ausência de Thufir Hawat, mas todo o círculo em torno da Corte Imperial é minimizado -- o Conde Ferning é cortado da trama, embora sua filha seja mantida, já que o protagonismo feminino se tornou dogma em Hollywood --, e também o papel da Corporação, que domina as navegações a partir da especiaria. Discutir a influência de monopólios econômicos não dá 'ibope', pelo visto.

Villeneuve prefere se concentrar na crítica à religião e aos mitos ''fabricados'' por uma elite aristocrática, que supostamente impediriam uma verdadeira revolução vinda de baixo.

Chani não é mais a concubina de Paul Atreides, mas uma feminista igualitarista anti-religiosa, que se torna a ''estrela guia'' do personagem principal. Diferente do livro, não é Paul que vai liderar os Fremen na revolta contra os Harkonnen, formando uma elite de guerreiros que coloca em xeque a produção da especiaria. Na telinha, é o Duque que se coloca no papel de aprendiz das tradições Fremen [Chani é a professora, claro], se transformando num guerreiro da tribo sem qualquer privilégio e evitando, ao máximo, ceder às pressões religiosas nativas [as tribos estariam divididas em dois grupos, o do norte, que são irreligiosos e feministas como Chani, e o do sul, chamados de ''fundamentalistas''].

Óbvio que não há espaço para a tecnologia de guerra que o próprio Paul traria para os Fremen, baseada em determinados sons cuja emissão potencializa a destruição material. Esse elemento do livro, que tem implicações esotéricas evidentes, foi abandonado pela produção hollywoodiana, para não passar a impressão de que a Nobreza dos Atreides tivesse algo a ensinar aos habitantes de Arrakis.

O próprio componente religioso é visto como um ''colonialismo'' mental -- porque Hollywood, claro, é ''decolonial''. Os Fremen acreditam no Lisan al Gaib tão somente pela propaganda das Bene Gesserit, que enviam missionárias ao sul e originam uma linhagem de sacerdotisas locais. Esse componente está presente no livro, mas aqui é maximizado para enfatizar a profecia como um ''mito fabricado'' por estrangeiros, como uma ''religião que vem de fora'' e também ''do alto'' [em termos sociais, claro].

As próprias crenças Bene Gesserit são 'descomplicadas'. Na obra de Herbert, as sacerdotisas/feiticeiras só tem acesso a memórias da ancestralidade feminina, e há locais da realidade em que sua presciência não consegue adentrar. As Bene Gesserit acreditavam que estes âmbitos estavam ''vetados para mulheres", e que surgiria um dia um homem [o Kwisatz Haderach] que uniria em si as habilidades de uma delas com o potencial de controle mental da especiaria realizado por um navegador da Corporação galática [elemento desprezado no filme] e de um Alto Nobre [portanto, um líder militar aristocrático], e que seria capaz de ''olhar onde elas não conseguiam'': o Kwisatz Haderach era, assim, o poder mais absoluto possível, o ente supremo, capaz de unir tempo e espaço, e até mesmo dominar todo o ''tempero''.

Bom, não pega bem pra Hollywood colocar uma figura masculina neste papel.

Enfim, para trazer à vida o Escolhido e ainda assim manter o controle sobre ele, as Bene Gesserit manipulam as linhagens nobiliárquicas de modo eugênico. Evidente que esse enredo também é simplificado no filme para não afetar demais sensibilidades contemporâneas. Quando é mencionado de forma explícita, o tom de crítica se torna inevitável e se liga às próprias decisões de Paul -- ele descobre que é descendente dos Harkonnen depois de tomar a água da vida, e é a partir desta descoberta que escolhe tomar o poder [no livro, esta descoberta ocorre muito antes na trama].

A mesma disposição faz com que Alia, irmã de Atreides que se torna sábia como uma Reverenda Madre quando Jessica bebe a ''água da vida'', seja retratada como um feto que se comunica através da mãe. Villeneuve supôs que ninguém ia querer assistir uma menina de dois anos de idade empunhando uma faca e matando o Barão Vladimir Harkonnen.

A questão é que a história coloca obstáculos a toda essa tentativa de adaptá-la ao imaginário identitário. Muab Dib, depois de muito choramingar por Chani, aceita seu papel, se declara o Lisan al Gaib, assume que é Duque do planeta, convoca uma guerra santa, manobra com maquiavelismo político, destitui o Imperador e legitima seu acesso ao poder tomando em casamento a filha dele [Princesa Irulan], desafia o próprio primo para um duelo de vida e morte segundo as velhas tradições nobiliárquicas, e funda uma Teocracia.

Na medida em que a história do livro é finalmente contada, o arco da personagem vivida pela ativista Zendaya se torna uma reclamação sem fim. Ela bate pé, prega o secularismo identitário como uma profeta no deserto, se magoa, confronta Jessica e, inconformada até mesmo por ajudar a realizar a profecia [mais uma invenção de Villeneuve, já que no livro Paul não precisa de Chani para transmutar a ''água da vida''], vai embora bufando no lombo de uma minhoca gigante, aparentemente se recusando a participar da Jihad.

Essa representação dos esquerdeiros através de Chani dá um sabor especial a Duna 2, já que eles tem de assistir os Fremen assumindo o poder por meio da proclamação de uma Teocracia Universal, da realização das profecias através de uma Casa Nobiliárquica ''estrangeira'', e de um Messias que se considera um Profeta quase Onisciente, representação de um poder masculino que supera o das sacerdotisas Bene Gesserit.

Por outro lado, os fãs devem ficar preocupados diante de Duna 3. Está tudo montado para que o identitarismo dê a ''volta por cima'', destruindo a obra de Herbert. Hollywood vai cobrar seu tributo a Villeneuve.

Fica a esperança de que eles não destruam a história como fizeram com Guerra nas Estrelas. Mas eu não apostaria um níquel nessa hipótese.

O lance é aproveitar a adaptação como está, antes que a debaclé se concretize na tela. O que vier é lucro.

sábado, 2 de março de 2024

DUNA, DE VILLENEUVE, ou: O Profeta vai da contemplação à ação

 ''Assim falou Santa Alia-da-Faca: A Reverenda Madre deve combinar a malícia sedutora de uma cortesã à intocável majestade de uma deusa virgem, mantendo esses atributos sob tensão pelo tempo que durarem os poderes de sua juventude. Pois quando a beleza e a juventude se forem, ela descobrirá que o ponto médio, antes local de equilíbrio entre tensões, transformou-se numa fonte de astúcia e desenvoltura.''

Princesa Irulan



Em outubro de 2021, eu rasgava elogios a "Duna, Parte 1", do Villeneuve. Vocês podem ler minha postagem original reproduzida no fim desse texto. Dizia eu que o diretor, que é fã da obra de Frank Herbert, tinha captado bem seu espírito, e se mantido fiel à narrativa, sem oferecer uma interpretação ao gosto da indústria ou do público de filmes de super-heróis, ou ainda da esquerda lacradora que censura as películas e as transforma em panfletos identitários.


Os mesmos elogios podem ser feitos, em linhas gerais, a essa continuação, que fecha o enredo do primeiro livro. Mas em um grau mais rarefeito. Como assim?


Bom, atenção para os spoilers. Quem gosta de surpresas na telinha -- atitude que acho estranha, ainda mais em relação a filme baseado em um livro de décadas atrás --, cuidado!


Pra começar, o aspecto contemplativo e lisérgico do primeiro filme se perde bastante. Ainda temos os enquadramentos grandiosos, a trilha sonora espetacular, a fotografia de tirar o fôlego, os ''sonhos'' movidos a especiarias. Mas eles são secundarios diante da necessidade de acelerar o ritmo e completar a história em pouco mais de duas horas e meia.




Vi algumas críticas bem tolerantes com essa decisão do diretor: A primeira parte estabeleceu bases de compreensão do universo, a segunda desenrola as tramas. Até concordo, mas perdemos algo da experiência imersiva nesse processo.


Uma das reclamações dos fãs de Duna, entre os quais me incluo -- considero o livro a mais poderosa história de ficção científica já criada -- é a pouca fidelidade mantida na transposição para o cinema e/ou TV. As justificativas são bem conhecidas: o livro tem uma grande profundidade de temas, envolvendo política, religião, estudos culturais, psicologia, misticismo -- além da apresentação de todo um universo imaginário de imensa complexidade. Não é fácil transferir esta gama imensa de informações para a linguagem hollywoodiana. Adaptações se fazem necessárias, e no caso de Duna elas tem de ser, muitas vezes, radicais.


Ainda que eu leve tudo isso em conta, incluindo aí os problemas da indústria -- que tem de lucrar -- e o direito de Villeneuve apresentar uma obra com assinatura própria, algumas escolhas me incomodaram muito.


Alia, por exemplo, fez muita falta. Villeneuve encurtou a cronologia, de modo que acontecimentos que se passam ao longo de trêsanos, agora são desenvolvidos ao longo de um só. E assim teve de reler o papel da irmã de Paul Atreides. Ela está lá, mas se comunicando telepaticamente por meio da mãe, que permanece grávida por toda a película.


Ou seja, Alia não chega a nascer. Não é mais aquela criancinha de dois anos de idade com a sabedoria de uma Reverenda Madre. A escolha do diretor não atrapalha a história, mas é tão frustrante quanto a ausência de Thufis Hawat, que não sobrevive à destruição da Casa dos Atreides. Uma ausência, diga-se de passagem, que descomplica muito o novelo político.



Desse modo, o papel de Jessica e de Chani ganham relevância muito maior que no livro. Eu não teria qualquer problema com isso, não fosse a ênfase demasiada no ceticismo e na independência da amante de Paul Atreides. O agnosticismo, e até mesmo a irreligiosidade de certos personagens fica escancarada demais, a ponto de dividir os Fremen em dois grandes grupos, os do sul e os do norte, sendo os primeiros retratados como ''fundamentalistas''.


É uma completa bola fora, e que eclipsa a dimensão ''antropológica'' de Duna. Não tenho paciência pra uma tribo de um planeta deserto abraçando os valores e horizontes mentais de Nova Iorque e da Califórnia. A tensão entre uma revolução que deveria vir de baixo e outra que é liderada por uma Aristocracia capaz de preparar e mobilizar as massas por meio de ''mitos fabricados'' deveria ser tratada com mais, digamos, propriedade. A ambiguidade em torno das profecias messiânicas perde o equilíbrio.


No texto de Herbert, ficamos livres para encarar todo aquele misticismo como um embate por poder entre sacerdotisas e Casas Aristocráticas, ou como um destino escrito que se desencadeia a partir das escolhas dos personagens, quer eles acreditem nele ou não. A liberdade permanece na versão de Villeneuve, mas com a adição de um embate entre céticos e religiosos que se desvia um tanto do espírito do texto.


No fim das contas, Paul Atreides perde um tempo danado no papel de ''messias irresoluto'' que não quer ''perder o amor'' da irreligiosa e cética Chani. O tom do Stilgar de Javier Bardem ajuda a aproximar os dilemas [em torno da natureza messiânica de Paul] da trilogia de Matrix.


Por outro lado, aplaudo certas escolhas. Principalmente em relação a Feyd-Rautha, interpretado de forma magistral por Austin Butler, e a Princesa Irulan, de Florence Pugh. Os dois, incluindo a interação entre ambos, estão entre os pontos altos de Duna 2.


Bom, não entendam meu texto como uma crítica demolidora. Ela é mais frustração de fã do livro. No fundo, trata-se de um filmaço, digno [alguns vão dizer que até melhor] do que o primeiro. Os aspectos técnicos que elogiei em 2021, e que renderam alguns Oscars, continuam maravilhosos. A versão é, de fato, a melhor já feita em cima do texto de Herbert. Encarem o cinema sem economizar: vale o IMAX.





Pra terminar com um elogio significativo: a explicação de Paul sobre o despertar de sua visão profética é a melhor já feita no cinema: ele percebe todas as possibilidades de futuro e sabe o que tem que fazer para instanciar aquela que deseja. Villeneuve aponta, no entanto, que Paul não é onipotente. A instanciação de uma possibilidade depende também da decisão de outras pessoas, e ele não tem como determinar isso. Esta é uma chave para entender as tensões entre ele e Chani.


De resto, a Jessica de Rebecca Ferguson é tão magnífica que quase eclipsa as demais personagens femininas, mesmo com a presença artisticamente arrebatadora de Florence Pugh.


Abaixo, texto de 2021, sobre a primeira parte, publicado originalmente no Facebook: clique aqui.




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A versão de Duna de Lynch, lançada em 1984, tem muitos méritos cinematográficos, embora o diretor a deteste por ter sido mutilada por decisão do estúdio. Mas tem também um defeito fundamental: é uma visão demasiadamente particular e que se afasta do espírito da obra do Frank Herbert.

Não é assim com Denis Villeneuve.

Evidente que a assinatura do diretor está lá. Mas ela aparece, principalmente, na grandiosidade épica, nos enquadramentos monumentais, nos planos irretocáveis que fazem do filme desse ano uma experiência pra ser vivida na telona. [E fica aqui também os aplausos de pé para a trilha sonora do Hans Zimmer, tribal, militar, rítmica, e ao mesmo tempo algo trágica.]

A narrativa visa ser fiel ao livro, sem interpretações, atualizações, metáforas com a sociedade atual ou lacrações. O fã de ficção científica e do livro vai se sentir valorizado aqui.

O respeito é tão grande, que a narrativa nem é o mais importante, mas a criação do ambiente, o desdobramento daquele universo para o espectador, a clareza dos conceitos trabalhados, o mergulho nas tramas políticas e no misticismo de Duna.

Claro que é impossível adotar essa abordagem e ao mesmo tempo transpor o primeiro livro para o cinema em um só filme. Então, esteja avisado, Villeneuve parou a história no meio, quase num interlúdio, o que já está despertando algumas críticas ao filme. Dizem que acaba quase num anticlímax, sem grande impacto emocional.

É verdade, mas só preocupante do ponto de vista da indústria, que quer fazer rios de dinheiro. A decisão por dividir o filme e interrompê-lo sem grande fuzuê é corajosa e dialoga com os fãs. O público é convidado a se engajar naquele universo, para só então saber onde ele vai levar, em vez de falsificar o mais importante da estrutura do filme com truques de roteiristas da Nova Hollywood. Duna não pode fazer como Senhor dos Anéis porque Tolkien teve de dividir sua história em três livros para publicá-la.

[A coragem é genuína porque a continuação não está garantida pelo estúdio, vai depender da bilheteria.]

Em um tempo de cinemas de heróis da Marvel, o filme transborda austeridade, é tão contemplativo quanto possível em filmes pras massas, não tem pressa -- o que é diferente de ter ''ritmo lento'', como alguns vem dizendo, só é lento pra quem não consegue fixar o olhar em um mesmo quadro por mais de três segundos.

O elenco tem acertos e outros nem tanto. Retrata os personagens com mais sobriedade e menos ''colorido'' que Lynch. Capta suas motivações e dimensões psicológicas de modo mais preciso.

Se o filme é bom? Ele é indispensável para os fãs de Duna, e um acerto incomensurável de Villeneuve.

Não deixe para assistir no PC, streaming ou TV. Vá ao cinema, e pegue uma sala com excelente imagem e som, VIP se necessário.

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

O ANTIGO TESTAMENTO NA PATRÍSTICA, OU: O Pastor Yago Martins e o Cânone Judaico parte 4

 “Tomei os cinco homens, como me tinha ordenado; partimos para o campo e permanecemos lá. No dia depois aconteceu-me que, eis uma voz me chamou dizendo: “Esdras, abre a boca e bebe o que eu te forneço”. Abri a boca e eis que me era oferecido um cálice cheio: era como se fosse água, mas a sua cor era semelhante ao fogo. Eu tomei-o e bebi e, enquanto bebia, o meu ânimo fazia jorrar inteligência para fora e no meu peito crescia a sabedoria, porque o meu espírito conservava a memória; a minha boca abriu-se e não se fechou mais. O Altíssimo deu inteligência [também] aos cinco homens, e o que lhes era dito, passo a passo, escreviam-no com caracteres que não conheciam, ficando lá durante quarenta dias, escrevendo durante o dia, e comendo pão durante a noite, enquanto durante o dia falava, mas durante a noite não me calava. Foram escritos, nestes quarenta dias, noventa e quatro livros. Acontece que, quando se completaram os quarenta dias, o Altíssimo falou-me dizendo: “Os vinte e quatro livros que escreveste antes torna-os públicos, que os leia quer quem é digno quer quem é indigno; mas os setenta escritos por último conserva-os, para os entregar aos sábios do teu povo, porque neles está a fonte da inteligência, a fonte da sabedoria e o rio do conhecimento!”

4 Esdras



O historiador Eusébio de Cesareia foi largamente usado como fonte para o vídeo do Pastor Yago Martins



Me volto agora para o terceiro bloco de argumentos do Pastor Yago, focado em escritos patrísticos. Segundo o vídeo Lutero tirou livros da Bíblia? [clique para ver], "não é de se espantar que a patrística tivesse rejeitado também estes livros deuterocanônicos e os tratado como textos apócrifos."


A partir de 14 autores, compreendidos entre o ano 170 e 420 da Era Cristã, ele alega que: i. Os Padres seguiam o cânone judaico; ii. rejeitavam os deuterocanônicos; iii. consideravam os deuterocanônicos inferiores.


Algumas observações antes de colocar a mão na massa. 


Vou seguir um critério: só valem aqueles Padres que de fator propuseram listas de obras canônicas. Como vai ficar claro, nem todos os autores citados por Martins sugeriram um cânone. Além disso, ele deixou passar pelo menos dois nomes que, também fazendo parte da Patrística, e vivendo no mesmo período abordado, se posicionaram sobre o tema: Santo Anfilóquio de Icônio e Santo Inocêncio de Roma. 


Esse critério torna menos difícil a posição do Pastor. Na verdade, seria muito simples demonstrar que os "deuterocanônicos'' foram citado a torto e a direito como livros inspirados e proféticos pelos Padres dos primeiros séculos. São Clemente de Roma, a quem são atribuídas duas cartas que quase foram incluídas definitivamente no Novo Testamento, citava Judite ainda no século I. São Policarpo de Esmirna, discípulo de São João Teólogo [São João Evangelista], citou Tobit na primeira metade do século II; e Santo Irineu de Lyon, um dos campeões contra os ''apócrifos'' gnósticos, argumentava com Bel e o Dragão em mãos. Ainda no mesmo século II, Santo Atenágoras de Atenas citava Baruch, e São Clemente de Alexandria se posicionava de modo favorável até mesmo a pseudo-epígrafos do Antigo Testamento. No início do século III, Tertuliano chamava de Escritura tanto Macabeus quanto I Enoque, e Santo Hipólito de Roma tratava o Livro da Sabedoria como obra profética. 


Eu poderia continuar, mas estes nomes já indicam que me ater apenas àqueles autores que nos legaram intencionalmente uma lista livra os protestantes de uma série de problemas com os primeiros séculos da Igreja. 


Além disso, o sentido do termo cânone mudou ao longo dos tempos. Santo Atanásio de Alexandria foi o primeiro a aplicá-lo a um conjunto de escritos, já na primeira metade do século IV. Quando aparece antes, seja em Epístolas Paulinas ou em obras de São Justino Mártir e Santo Irineu de Lyon, cânone significa a ''regra de fé'' herdada dos Apóstolos, ou seja, uma tradição não escrita, e que, segundo estes mesmos Padres, tinha continuidade nos Bispos e nos Presbíteros. Era mais comum se referir às Escrituras como ''os livros da Aliança". 


Orígenes de Alexandria deixou um legado inestimável para a Igreja. Apesar disso, seu nome foi envolvido em uma série de disputas trinitárias e cristológicas que se estenderam dos séculos IV ao VI, e terminou anatematizado pelo V Concílio Ecumênico

O mesmo se aplica ao termo ''apócrifo''. Nem sempre queria dizer ''espúrio". Este sentido está presente às vezes, como nos textos de Santo Irineu de Lyon contra os gnósticos. Mas em outras oportunidades o termo é neutro, como em Orígenes, que o aplicava a obras de acesso restrito -- porque consideradas literatura reservada para sábios. Nem sempre o livro era retirado da leitura pública por ser inferior ou errôneo, e sim por ser visto como profundo demais para o fiel comum. 


Isto nos leva aos critérios de canonicidade empregados nestes tempos. A necessidade de uma lista oficial de livros só se fez sentir na Igreja a partir da segunda metade do século II, por pressão interna mas também como resposta ao Rabinismo e ao gnosticismo. Mas ela só se intensificou no século IV, quando as perseguições chegaram ao fim e os cristãos se aproximaram do poder romano. Muitos Padres tentavam adequar o cânone a 22 ou 24 livros, número de letras do alfabeto hebraico ou grego. No mundo helenístico, isto denotava perfeição [já usada por Homero], e os próprios Rabinos se apegaram a esse critério para consolidar os 24 livros da Tanack. No século IV, se tornou quase que norma a adequação ao número 22 [e em menor medida, ao número 24], uma prática que só foi rompida quando Santo Agostinho preferiu a multiplicação de 22 por dois, a fim de chegar aos 44 livros de sua lista.


Esse ímpeto numerológico traz também uma influência da literatura apocalíptica. O livro de 4 Ezra/Esdras, que é também chamado de 2 Esdras e de Apocalipse de Esdras, impactou fortemente tanto judeus quanto cristãos -- e foi acolhido no Antigo Testamento da Igreja etíope [junto com I Enoque]. A obra, que data do século I, descreve como Esdras recebeu de Deus a missão de recompor a Lei após o Exílio da Babilônia. As Escrituras Sagradas não teriam sido salvas pela tradição oral, mas reveladas de novo ao Profeta em uma visão divina. Esdras ditou a escribas 94 livros, recebendo do Alto a ordem de que os 24 primeiros se tornassem públicos no culto, e que os 70 últimos circulassem de maneira discreta, conhecidos apenas pelos mais preparados. 


A narrativa é notável por sustentar que todos os 94 livros tem a mesma fonte sagrada e que são todos eles inspirados, sugerindo que os canônicos [os públicos] são, de certo modo, inferiores aos 70 que permaneceriam em segredo. Concordemos ou não com ela, esta noção ecoa em algum grau em diferentes autores cristãos, mais notavelmente em São Clemente de Alexandria, Orígenes, Santo Epifânio de Salamina, e Santo Ambrósio de Milão [que costumava citar bastante a obra].


Por fim, alguns dos nomes citados no vídeo do canal Dois dedos de Teologia não são considerados como Padres por cristãos ortodoxos. Martins cita, por exemplo, Apolinário de Laodiceia, heresiarca associado ao apolinarismo. Mas vou tratá-los todos como testemunhas do movimento de canonização. 


Os autores divergem sobre a lista oficial de obras da Igreja. Isto não deveria ser surpresa. Como tenho defendido em diversas postagens, não havia um cânone escriturístico. No século I, as Escrituras Judaicas eram fluidas tanto em forma textual [diferentes versões de um mesmo livro] quanto em número de obras consideradas inspiradas ou sagradas. Os documentos que viriam a ser o Novo Testamento estavam sendo produzidos, difundidos e conhecidos. Os Padres debatiam estas obras, e nem todas eram consensuais. O Novo Testamento, como demonstro em outra série de postagens, só foi definido inteiramente no início do século V. O Antigo passava pela mesma forma de análise. As divergências abaixo são mais um problema para os protestantes e, mais especificamente, para os argumentos do Dois Dedos de Teologia: afinal, ela demonstra que a Igreja nem seguia o cânone rabínico nem havia herdado alguma lista fechada do século I.


Vou analisar estes pontos a partir dos próprios autores elencados pelo Pastor Yago Martins. 


Uma das visões de Esdras em arte do século XVI. A Apocalíptica judaica foi muito influente entre os cristãos, e 4 Ezra foi acolhido no cânone da Igreja Etíope



1. São Melito de Sárdis

Segundo Yago Martins, o Bispo de Sárdis inclui em sua lista canônica "todos os livros do Antigo Testamento, deixando de fora os deuterocanônicos". O relato de Eusébio de Cesareia é bem mais interessante, no entanto. São Melito escreveu para Onésimo por volta do ano 170 com o intuito de sanar a dúvida de seu interlocutor sobre quais seriam as obras das Escrituras bem como sua ordenação correta. Querendo assegurar a exatidão da resposta, viajou para a Palestina a fim de conferir qual seria, de fato, o Antigo Testamento.


É sintomático que o Bispo não pudesse conferir qual era o cânone com a própria comunidade judaica de Sárdis, uma das maiores da Ásia Menor. É sinal inequívoco de que, diferente do que defende o Pastor Yago, não havia nenhuma lista oficial de livros recebida pela ''comunidade judaica'' ou pela Igreja. 


Uma vez na Palestina, São Melito encontrou uma lista diferente daquela da Tanack. Ele cita 27 livros, dos quais estão excluídos Lamentações, Ester e Neemias, e em que consta o Livro da Sabedoria, que os protestantes consideram apócrifo. Alguns tentam conciliar a lista de Melito com o texto massorético alegando que Lamentações está incluída em Jeremias e que Neemias consta de Esdras, mas isto é extrapolar o texto. 


O fato é que São Melito é um testemunho contrário tanto à existência de um cânone judaico fechado no século II quanto a um suposto repúdio dos ''deuterocanônicos''. Para completar, ele se refere às Escrituras como Leis e Profetas, e não como ''Leis, Profetas e Escritos" -- a tripartição que, segundo o Pastor, estaria consolidada já no Judaísmo do século I. Além disso, dá o nome grego dos livros, não o hebraico.




2. São Teófilo de Antioquia

Sendo rigoroso, São Teófilo não deveria estar no vídeo pelo simples fato de que ele não fornece nenhuma lista de livros canônicos. Martins faz uma inferência em cima dos capítulos 23 a 28 do livro III de Apologia a Autólico, uma defesa do cristianismo diante de um amigo pagão, datada dos anos 170. 


Na obra, São Teófilo repete o argumento de Josefo de que os historiadores hebreus são mais antigos e de maior autoridade que os gregos por serem inspirados por Deus. Não há nenhuma pretensão de dizer quais livros formam o Antigo Testamento. O Pastor repete o mesmo estratagema -- já refutado no texto anterior em relação a discursos de Cristo e de Santo Estêvão -- de tentar retirar um cânone de um texto que não tem a intenção de apresentar nenhum.


A verdade é que não há qualquer sinal de que o autor levasse em conta a teoria rabínica da ''cessação profética'' só por afirmar que Zacarias é o último profeta. Aliás, há livros sapienciais ''deuterocanônicos'' que eram comumente atribuídos ao Rei Salomão, o que torna toda esta tentativa de deslegitimá-los por considerações cronológicas um tanto infrutífera. [Alguns se referiam a eles como ''os cinco livros de Salomão", a saber: Eclesiastes, Provérbios, Cântico dos Cânticos, Sabedoria e Eclesiástico]. 


Nem todas as obras hoje canônicas são citadas por São Teófilo; por outro lado, é bastante provavel que ele usasse o Livro da Sabedoria em sua exposição teológica. 


Por fim, na mesma Apologia a Autólito, mais especificamente no livro II, São Teófilo coloca as Sibilas no mesmo patamar que os profetas hebreus. Os oráculos das Sibilas estariam em uma posição superior aos escritos dos filósofos e poetas gregos, dando a entender que elas eram inspiradas por Deus:

"Mas homens de Deus preenchidos pelo Espírito Santo e se tornando Profetas, inspirados e tornados sábios por Deus, ensinaram sobre Deus, e foram transformados em santos e justos. E assim foram considerados dignos desta recompensa, de que seriam instrumentos de Deus, e conteriam a sabedoria que vem Dele, por meio da qual profeririam tudo quanto diz respeito à Criação do Mundo e todas as demais coisas. Pois eles previram também pestilências, e fomes, e guerras. E não existiram um ou dois, mas muitos, em vários períodos e estações entre os hebreus; e também entre os gregos havia a Sibila; e todos eles falaram de coisas consistentes e em harmonia uns com os outros, tanto ao que aconteceu antes deles como do que aconteceu no tempo em que viviam, e também das coisas que se cumpririam em nossos dias: e assim estamos persuadidos também sobre as coisas futuras que se seguirão do mesmo modo como as anteriores se realizaram."


O capítulo 36 é dedicado às profecias da Sibila, defendendo que elas concordavam com a dos santos profetas hebreus. De fato, os oráculos sibilinos tinham grande aceitação entre autores judeus e cristãos deste tempo. Concordando ou não com eles, a verdade é que a visão de inspiração divina e profecia parecia um pouco mais abrangente do que aquela defendida no vídeo. São Teofilo de Antioquia tampouco dá qualquer suporte às alegações de Martins.



3. Orígenes de Alexandria

O vídeo traz uma série de informações francamente equivocadas sobre o cânone atribuído por Eusébio de Cesareia a Orígenes, importante figura da primeira metade do século III. Yago diz que Orígenes "cita todos os livros do Antigo Testamento e não cita nenhuma vez os apócrifos na sua lista de obras inspiradas. Ele diz que segue o cânone "tal como nos transmitiram os hebreus". E acrescenta que "ele não lista os livros dos Macabeus como livro inspirado, e diz que [...] ele era útil, ainda que fora do Antigo Testamento". 


Não há nenhum registro de Orígenes dizendo qualquer dessas coisas. Nesse caso, estamos lidando com a superinterpretação do Pastor Yago Martins e com certo desconhecimento da própria obra deste importante Padre. Na passagem mencionada, a lista de livros inclui a Epístola de JeremiasMacabeus, obras 'deuterocanônicas'. Em nenhum momento se nega a inspiração divina em Macabeus ou se diz que se trata tão somente de ''um livro útil'' e ''fora do Antigo Testamento''. Tudo o que sabemos é que Orígenes inclui estes livros no cânone [judaico?] e lhes dá um nome em hebraico.


A passagem em Eusébio é polêmica. Historiadores alegam que Orígenes estava se referindo ao cânone usado pelos judeus em seu tempo, não à sua própria lista do Antigo Testamento. A dúvida tem fundamento, já que conhecemos obras do próprio Orígenes afirmando coisas bem diferentes. Sequer é necessário citar todas as vezes que ele menciona ''deuterocanônicos'' como Escrituras. Basta apontar a correspondência trocada com Júlio Africano, a que o próprio Yago vai se referir mais à frente. 


Júlio Africano tinha dúvidas sobre Bel e o Dragão por não constar das Escrituras usadas pelos judeus. E recebeu um pito de Orígenes, para quem os cristãos não dependiam dos judeus para o estabelecimento do cânone. Ou seja, exatamente o contrário da posição do Dois Dedos de Teologia: a Igreja tinha autonomia para estabelecer o cânone, a Septuaginta era inspirada, os ''deuterocanônicos'' eram sagrados, e as diferenças entre as ''nossas Escrituras'' [as cristãs], como escrevia Orígenes, e as judaicas provavam que o Antigo Testamento usado pelos cristãos era superior. 


Por fim, o termo ''apócrifo'' em Orígenes tampouco significa uma obra inferior, e sim aquela que é oculta, discreta, que não foi escrita para os olhos públicos. Ele defendeu, mais de uma vez, o uso de pseudo-epígrafos do Antigo Testamento, por exemplo. Não é possível imaginar que esse autor possa favorecer qualquer das alegações feita pelo Pastor Yago.



Santo Irineu de Lyon, que denunciou os apócrifos dos gnósticos, afirmando que a Igreja se baseava na regra de fé da tradição apostólica, que era mantida e salvaguardada pela sucessão de Bispos e Presbíteros

4. Júlio Africano

É citado no vídeo no contexto da troca de cartas com Orígenes. Mas não conhecemos qualquer lista oficial de livros atribuída a ele. Evidentemente, contestar a autenticidade de Bel e o Dragão não significa concordar com a Tanack ou repudiar todo e qualquer deuterocanônico. Além disso, não sabemos se ele aceitou ou não a réplica de Orígenes. De modo que seria uma extrapolação elencá-lo a favor das teses protestantes.



5. Santo Atanásio de Alexandria

Chegamos então ao século IV, período posterior ao fim das perseguições. A Igreja já não está mais criminalizada e se aproxima do poder romano. Os Concílios se tornam mais frequentes, e decidem sobre pontos importantes da fé, da doutrina e da disciplina cristã. Santo Atanásio de Alexandria tem um papel fundamental em todo esse processo. Nos anos 330, se tornou o primeiro Padre a aplicar o termo ''cânone'' para uma lista oficial de livros do Antigo e do Novo Testamento.


O Pastor Yago está correto quando afirma que Santo Atanásio ''não inclui todos os deuterocanônicos''. Mas isso significa dizer que, sim, ele inclui ''deuterocanônicos'' em seu cânone de 22 livros, número de letras do alfabeto hebraico, que como apontei no início do texto, acabaria por ser um fio condutor das listas oficiais que foram propostas neste século. 


Santo Atanásio inclui a Epístola de Jeremias e Baruch em um mesmo livro junto de Jeremias e de Lamentações. E retira do cânone Ester. Não é possível afirmar, portanto, nem que ele seguisse a Tanack nem que deixasse de fora todos os livros que os protestantes chamam de ''apócrifos'''



6. Santo Hilário de Poitiers

Segundo o vídeo, o Bispo de Poitiers  concorda com Santo Atanásio. Mas a verdade é um pouco mais complexa. Nos anos 350, Santo Hilário sugere dois cânones, um seguindo o número de 22 letras hebraicas, o outro segundo um número de 24 letras gregas. No primeiro, quase que concorda inteiramente com Santo Atanásio, unindo a Epístola de Jeremias e Baruch [dois ''deuterocanônicos''] a Lamentações e Jeremias, a fim de formar um único livro. Mas mantém Ester, preferindo unir os livros de Juízes e de Ruth. Já no segundo cânone, Santo Hilário acrescenta os livros de Tobit e de Judite


Ele não segue a Tanack em nenhuma das duas listas, e tampouco é verdade que deixasse de fora os ''deuterocanônicos''. Mais ainda, são conhecidas as citações que ele faz do Livro da Sabedoria, de Susana, e de 2 Macabeus como livros proféticos em "Sobre a Trindade". De modo que podemos inferir que, para Santo Hilário, a canonicidade não estabelecia um limite ao número de textos inspirados pelo Espírito Santo.


Santo Hilário de Poitier, um dos mais importantes Padres das regiões ocidentais da Cristandade: ele propôs dois cânones, um adaptado às 22 letras do alfabeto hebraico, e o segundo adaptado às 24 letras do alfabeto grego



7. Apolinário de Laodiceia

É citado junto a Santo Hilário de Poitiers, mas não conhecemos nenhuma lista oficial de livros canônicos deste famoso heresiarca, de modo que não não é relevante para a discussão atual. 


8. São Cirilo de Jerusalém

O Pastor Yago sustenta que nas Catequeses Mistagógicas, obra mais famosa de São Cirilo, e datada por volta do ano 350, é apresentado um cânone sem nenhum "deuterocanônico". Mas o fato é que, se conformando às 22 letras do alfabeto hebraico, o Bispo de Jerusalém une a Epístola de Jeremias e Baruch [dois deuterocanônicos] a Lamentações e Jeremias em um só livro. A divisão que faz das Sagradas Escrituras segue a Septuaginta, e não o aspecto tripartite da Tanack. Além disso, nas mesmas Catequeses Mistagógicas há citações de Eclesiástico, e de capítulos da versão mais longa de Daniel [a da Septuaginta]. Ou seja, ele não se conformava às Escrituras Judaicas, e não desprezava os ''deuterocanônicos'' como inferiores.



9. São Basílio o Grande

Não se conhece nenhuma lista oficial de livros sugerida por este imenso luminar da Igreja. O Pastor Yago infere que ele desprezaria os ''deuterocanônicos'' porque escreveu que eram 22 os livros do Antigo Testamento. Como temos visto, isto apenas significa que ele conformava o cânone ao número de letras do hebraico -- em um momento em que os Rabinos tinham preferência por conformá-lo ao número 24, seguindo as letras do alfabeto grego.  Não bastasse isso, São Basílio citava Sabedoria de Ben Sirach [Eclesiástico] como Escritura em seu Hexamerão, obra dos anos 370. 



10. Santo Epifânio de Salamina

Escrevendo nos anos 370, Santo Epifânio explica em "Pesos e Medidas" como os 27 livros do Antigo Testamento são organizados em 22 para se conformar às letras do alfabeto hebraico. Em sua lista, temos a união de Jeremias e Lamentações com a Epístola de Jeremias e Baruch para formar um só livro. 


Os livros que ficam fora deste arranjo são chamados de apócrifos, mas em um sentido neutro da palavra. Ele atribui o Livro da Sabedoria a Salomão, por exemplo. Nesta mesma obra, Santo Epifânio diz que a Septuaginta foi inspirada por Deus e que era superior a todas as demais traduções, se apoiando na narrativa dos 72 tradutores, de acordo com a Carta a Aristeia. Ele chega a dar o nome de cada um destes anciãos responsáveis pela LXX. Relata também que, além dos 22 livros públicos [canônicos], foram traduzido 72 apócrifos para o grego, um eco da narrativa de 4 Ezra.


Enfim, Santo Epifânio não se conforma à Tanack, e inclui alguns ''deuterocanônicos'' em sua lista.


A famosa obra sobre os Seis Dias da Criação, um legado inestimável de São Basílio o Grande

11. São Gregório Teólogo

O Pastor Yago Martins está correto ao dizer que o Arcebispo de Alexandria conformou sua lista de livros canônicos às 22 letras do alfabeto hebraico. Faltou avisar que ele deixava de fora Lamentações e Ester, e que portanto não seguia o cânone judaico. É verdade que não incluía também nenhum ''deuterocanônico'', ainda que os citasse normalmente em outras obras, mais particularmente Bel e o Dragão, Baruch, Sabedoria e Eclesiástico. De todo modo, é o primeiro dos autores elencado no vídeo que de fato não inclui nenhum ''deuterocanônico'' em um rol de obras canônicas.



12. Rufino de Aquileia

O monge Rufino sofreu muita desconfiança em relação à sua ortodoxia, dada a proximidade com ideias origenistas -- que gerariam crises e a condenação do próprio Orígenes no século VI, séculos depois de sua morte. De fato, por volta do ano 400, ele propõe um cânone de 22 livros, adequados às letras do hebraico, e que é o mesmo que a da Tanack e do Antigo Testamento protestante. 


13. São Jerônimo de Estridão

Grande parte dos protestantes defendem seu Antigo Testamento a partir de São Jerônimo que, quando traduziu as Escrituras para o latim vulgar [a Vulgata], decidiu usar prioritariamente o texto hebraico. Além disso, Jerônimo escreveu nos anos 390 a favor de uma lista oficial de 22 livros -- número de letras do hebraico -- em que deixava de fora os ''deuterocanônicos". Para completar, dizia que os deuterocanônicos eram inferiores. 


Mas devo acrescentar algum contexto: i. São Jerônimo usava a versão de Daniel presente na Septuaginta, que é maior do que a do texto hebraico, defendendo-a em carta diante de Rufino de Aquileia; ii. Apesar de considerar os deuterocanônicos inferiores aos 22 canônicos, ele os cita como Escritura inspirada por Deus, como é o caso de Eclesiástico e Bel e o Dragão; iii. Ele tampouco negava a inspiração da Septuaginta


Feita essas ressalvas, São Jerônimo é um autor que se adequa às alegações do vídeo.


14. Santo Agostinho de Hipona

O Pastor Yago Martins está consciente de que o Bispo de Hipona, o mais influente teólogo ocidental e que deixou uma marca imensa nos Reformadores da Idade Moderna, defende um cânone bastante diferente do Protestante. Mas tenta amenizar esta constatação alegando que algumas passagens de obras agostinianas testemunham uma resistência na Igreja a certos ''deuterocanônicos''. 


Mas é justamente o contrário. Ao admoestar São Jerônimo pela sua tradução das Escrituras para o latim, Santo Agostinho defende o caráter inspirado da Septuaginta. Afirma também que é necessário manter no cânone todos os livros da Septuaginta por causa da autoridade que eles conquistaram no Oriente cristão -- consideração para lá de importante, porque rompe o conspiracionismo de que estas obras teriam sido acréscimos da ''Igreja de Roma''. 


Santo Agostinho de Hipona, também chamado de ''O Mestre do Ocidente'', é um dos autores patrísticos mais influentes tanto no catolicismo-romano quanto entre os Reformadores protestantes


O cânone agostiniano, proposto por volta do ano 400, segue a divisão de livros da Septuaginta [Lei, História, Poesia e Profetas] e não da Tanack [Lei, Profetas e Escritos], e desdobra o Antigo Testamento em 44 livros [as 22 letras do alfabeto hebraico multiplicadas por dois], combinando Jeremias, Lamentações, Epístola de Jeremias e Baruch em um livro só, e incluindo o Salmo 151, a versão longa de Daniel, e mais Tobit, Judite, Sabedoria, Eclesiástico, e os dois primeiros de Macabeus.


15. Santo Anfilóquio de Icônio

Não foi citado no vídeo, embora escrevesse no mesmo período. Por volta dos anos 390, propôs um cânone conformado às 22 letras do hebraico, e que excluía Lamentações. Santo Anfilóquio também admitia que Ester era um livro cuja canonicidade era contestada por muitos. O que indica, de modo muito óbvio, que os cristãos não seguiam o cânone judaico. De todo modo, o Bispo de Icônio tampouco incluía os ''deuterocanônicos''.



16. Santo Inocêncio de Roma

Em carta ao Bispo Exsuperius, de Toulouse, escrita por volta do ano 400, o Bispo de Roma apresentou uma lista com os "cinco livros de Salomão" [Eclesiastes, Provérbios, Cântico dos Cânticos, Sabedoria, Eclesiástico], os dois primeiros de Macabeus, e mais Tobit e Judite.



E assim fecho a análise das fontes do vídeo do Pastor Yago Martins. Os protestantes poderiam alegar que só uma minoria dos autores listavam TODOS os ''deuterocanônicos''. Mas seria um argumento frágil, já que o cânone não estava fechado, e o que se quer averiguar são os limites que se colocavam a ele. Até hoje, há ''denominações'' cristãs que incluem 3 e 4 Macabeus, 155 Salmos, e até I Enoque e 4 Ezra. Ademais, o mesmo argumento poderia ser usado para o Antigo Testamento protestante: apenas dois dos autores acima se adequam a ele, e mesmo assim com ressalvas. 


O quadro abaixo resume a análise.



8 dos 13 autores que propuseram algum cânone incluíram deuterocanônicos nele. Apenas dois destes 13 sugeriram um cânone similar ao Antigo Testamento Protestante




Dos 16 autores listados, 3 não nos fornecem quaisquer informações conclusivas. Dos 13 restantes, apenas 2 concordam com a Tanack -- abstraindo as ressalvas em torno de São Jerônimo. 11 apresentam uma lista oficial distinta das Escrituras rabínicas, e portanto diferentes do Antigo Testamento protestante. Destes 13 autores, 8 com certeza incluem algum 'deuterocanônico', mesmo quando se conformavam a 22 livros, número de letras do alfabeto hebraico.


Portanto, não há qualquer razão para imaginar, como afirma o Pastor Yago Martins, que os escritores patrísticas rejeitavam, ''em sua maioria'', os livros ''deuterocanônicos''. É justamente o contrário. Além disso, eles não parecem ter recebido qualquer cânone fechado dos judeus ao qual pensassem ser necessário se adequar. Era comum até que excluíssem Ester e/ou Lamentações, por exemplo. Alguns destes escritores defenderam, explicitamente, a autonomia da Igreja para definir o cânone do Antigo Testamento. 


Enfim, mesmo os autores que deixavam os 'deuterocanônicos' de fora usavam a versão que constava da Septuaginta. Não custa lembrar que  Jeremias tem 2700 palavras a menos na Septuaginta quando comparada ao Texto Massorético, e que Daniel é mais longo. O texto de Isaías também se apresenta de forma bem diferente, para dizer o mínimo. Além disso, a não inclusão de um livro no cânone nem sempre significava a negação de seu caráter inspirado. 


Isto posto, falo mais deste bloco de argumentos do Pastor Yago na próxima postagem da série.



Ícone retratando passagens de Bel e o Dragão