segunda-feira, 31 de março de 2014

As intervenções políticas das Forças Armadas segundo uma perspectiva funcionalista

No texto O Brasil entre a História e a historieta falei da necessidade de explicações multicausais para traçar um quadro mais geral da intervenção militar de 1964. Pretendo agora discorrer sobre a produção de uma linha historiográfica fundamentada na sociologia funcionalista, muito forte nas universidades norte-americanas e tributária de desenvolvimentos tanto de Weber quanto Durkheim, mas também de Talcott Parsons, Nikla Luhmann e outros. Para exemplificá-la, escolhi três importantes pesquisadores sobre o papel das Forças Armadas na República, sendo o primeiro deles Gláucio Ary Dillon Soares. 

Soares, escrevendo em meados da década de 1980, em meio ao processo de abertura política e redemocratização do país, criticava o trabalho histórico feito a partir de deduções de teorias muito marcadas pela sociologia do conflito, com ênfase na dinâmica de classes. Explica ele que os militares não são uma classe econômica mas um grupo funcional, apontando assim um certo vício de origem presente nas explicações de tendências marxistas, que não conseguiriam dar conta da atuação política de grupos que que agem a partir de valores corporativos em vez de perspectiva classista. Estes valores são constituídos por uma visão de mundo específica a determinada categoria profissional e determinada por sua inserção e função na sociedade, em um conjunto determinado pelas noções de equilíbrio/desequilíbrio sistêmico. Este tipo de abordagem passou a ser conhecido como perspectiva organizacional, uma busca por compreender as estruturas internas e valores intrínsecos das diferentes organizações sociais para avaliar a participação política das dita cujas. Nesse caso, existiria um determinado ethos militar que teria de ser levado em conta na análise histórica, em vez de subordinar os processos que envolvem os militares a uma dinâmica de classes. Por sua vez, estes valores corporativos, componentes de uma ''mente militar'', não variariam muito no tempo, pois seriam funções que modelam a cultura e a mentalidade de seus integrantes. Outro fator constituinte é a percepção dos militares sobre a maneira que a sociedade os vê, que estabeleceria na ''mente militar'' uma descontinuidade, que em certos momentos tomaria a forma de uma disfunção, entre Forças Armadas/Sociedade civil.

Há várias críticas metodológicas e teóricas que podem ser apontadas no trabalho de Gláucio Ary Dillon Soares. Em primeiro lugar, ele enfatiza uma abordagem micro, que, em seu trabalho, privilegia entrevistas e depoimentos com os envolvidos nos eventos, acumulando dados quantitativos e estatísticos [1]. É uma abordagem que contempla o indivíduo, que seria o portador concreto da mentalidade a ser identificada e analisada, a ''mente militar'' tal como absorvida e interpretada pelos próprios militares. Essa escolha faz parte da crítica que Soares faz à produção ensaísta baseada na sociologia do conflito; no entanto, ele acaba caindo em outros extremo, criando uma dicotomia insustentável entre fontes e teoria e tratando de maneira ingênua as primeiras, uma forma um tanto desbragada de empirismo que pensa poder deixar os ''fatos falarem por si''. Sem levar em conta a subjetividade dos depoentes, o contexto dos depoimentos, sem nenhum contraste destas fontes com outras de natureza diversa, e sem nem mesmo uma análise crítica do discurso, Soares acaba caindo em uma quantificação do manifesta e expresso, passando por cima de tudo quanto, nas entrevistas, está implícito e latente [2]. Desse jeito cambaleante ele chega à conclusão de que o golpe foi exclusivamente militar, produto de um atrito crescente entre o ethos das FFAA e as ações de Jango. Apesar destes problemas, a concepção organizacional de Soares trouxe novidades à temática da intervenção de 1964 ao tratar os militares como um grupo característico, uma corporação com particularidades próprias e visando se reproduzir no tempo, em interação com outros corpos sociais, em vez de simplesmente fragmentá-la em um conjunto de indivíduos analisados através de categorias extrínsecas à sua vivência profissional e aos valores nela transmitidos.

Edmundo Campos Coelho fez uma aplicação mais consistente da sociologia funcionalista. Também ele encara o Exército como uma organização que possui dinâmica própria e que permanecia em constante interação com outros corpos sociais, que constituem, para as Forças Armadas, ''seu entorno''. Esta dinâmica se explicaria por fatores internos e expressariam uma evolução similar à orgânica, de modo que o Exército seria com um organismo em crescimento, construindo sua identidade em etapas distintas. O período de formação das Forças Armadas -- sua ''infância'', por assim dizer -- teria se dado durante o Império, época em que a organização militar estaria subordinada inteiramente à sua ''mãe'', a sociedade civil [3]. Com a proclamação da República os militares romperam o cordão umbilical, criando uma novo padrão de relacionamento com as elites civis, mas ainda sem uma identidade inteiramente definida [4].  Na etapa seguinte, posterior a 1930, a identidade militar teria sido construída por meio da elaboração de uma ''missão'', a Doutrina Góes, que era um projeto amplo com o escopo de tornar as Forças Armadas em um ator político nacional, invertendo, inclusive, os papéis de relação com a sociedade civil ao sustentar que esta deve se organizar pelo paradigma daquelas [5].  Neste período, que coincidiria com o Estado Novo, a organização militar teria alcançado uma identidade própria, com objetivos, disciplina e unidade de ação bem definidas [6]. Entre 1945/1964 teria havido um período de influências recíprocas com a sociedade, que teria internalizado e enraizado as propostas do corpo militar, enquanto este, por sua vez, tinha de dar respostas às questões enfrentadas pelo país como um todo. Segundo Coelho, o maior dos problemas nesta época teria sido o nascimento da cultura de massas, que ele chama de ''secularização da sociedade'', um cenário em que o espraiamento de um pragmatismo ético desvinculado de valores mais abstratos teria acarretado o afastamento do ethos militar daquele dos civis, gerando um processo de alienação mútua, que, por um lado, afirmou ainda mais a identidade militar, e, por outro, se tornou base para uma crise sistêmica nos anos 1960, causada pela expansão da identidade militar na sociedade [7]. 1964 era o momento, a oportunidade que os militares tinham de transformar seus valores em coordenadas para o conjunto da população.

O grande ''Calcanhar de Aquiles'' da análise de Coelho é enxergar as FFAA como uma instituição total, controlando completamente a vida e o pensamento de seus integrantes, nos quais imprimiria não só uma mentalidade única como também uma unidade de atuação política. Por isso ele tem grandes dificuldades de lidar com os episódios que apontam o conflito no interior da própria organização militar, principalmente aqueles durante o período populista, e que indicam que ela não é uma unidade completamente fechada, mas que se abre e se projeta em seu entorno. Este é um ponto interessante de reflexão, pois a recusa de Edmundo Campos Coelho em tratar de certos aspectos da relação entre militares e os civis a partir de 1945 revelam os limites da aplicação rígida da própria sociologia funcionalista.

Alfred Stepan é um cientista político norte-americano, um dos ''brasilianistas'' da historiografia,  como são chamados os pesquisadores que foram contemplados por bolsas financiadas direta ou indiretamente pelo governo estadunidense e acabaram realizando um trabalho pioneiro e importante para o conhecimento histórico brasileiro [8]. Possuidor de uma análise sistêmica, que faz confluir na explicação tanto fatores de ordem estrutural quanto conjunturais, ele vê a sociedade brasileira como um grande sistema em interação com outros maiores e internacionais. O Brasil, por sua vez, comporta conjuntos próprios, como o político, que também tem seus ramos. Estes sistemas podem estar funcionando de modo equilibrado ou desequilibrado uns com os outros, sendo a crise explicada por uma mudança na interação entre os subsistemas do conjunto social, uma análise que permite inclusive articular causalidades de diferentes temporalidades. Nem por isso o pesquisador deixa de dar importância aos fatores intencionais, às decisões dos atores históricos em meio a estes elementos determinantes de natureza estrutural, de modo que o desenrolar e o desfecho factual da crise depende de escolhas pessoais. 

A obra de Stepan parte de uma questão colocada por sua própria experiência na sociedade em que vive,
 onde as FFAA tem uma função bastante específica e vinculada à ideologia da democracia liberal, segundo a qual os militares, modelados pela figura típica do soldado-profissional, devem estar subordinados ao poder civil, cabendo a política ao sistema partidário. Percebendo que este modelo liberal não funciona no país, apesar da letra da lei e da formatação dada às instituições, Stepan identifica a causa deste ''desvio'' na baixa institucionalização do sistema partidário, que causaria o transbordamento da política para outras organizações, incluindo aí o Exército. Outro ponto fundamental de sua análise é a descrição de um um padrão típico de relacionamento entre militares e civis, que ele qualifica de 'modelo moderador', fazendo assim uma analogia com o poder exclusivo do Imperador durante a Monarquia [9]. Segundo esse padrão, os militares teriam o direito de intervir no sistema político em momentos de crise, devolvendo logo depois o poder aos civis, como ocorreu quando da Revolução de 1930, ou no fim do Estado Novo, na queda de Getúlio em 1954, na possa de Juscelino em 1956 etc. [10] A grande novidade de 1964 seria a ruptura com este padrão, já que os militares decidem permanecer no poder. As razões para esse desdobramento seriam encontradas em mudanças ideológicas ocorridas nas Forças Armadas durante a Segunda Guerra Mundial, quando foram colocadas sob liderança norte-americana no campo de batalha. A partir dali, a organização militar formulou uma nova função atrelada à perspectiva da Doutrina de Segurança Nacional, que se expressou institucionalmente pela fundação da Escola Superior de Guerra [11]. A característica mais marcante desta escola de formação foi o treinamento de uma elite militar que se considerava superior aos civis, já que só ela se teria verdadeiro interesse nacional, com uma visão de mundo específica e orientada pelo confronto civilizacional da guerra fria, com conhecimento técnico e capacidade para governar. Esta elite não apenas se considerava apta a exercer o poder como estava convencida que os civis haviam perdido esta capacitação justamente em um momento em que crescia o perigo comunista e em que as Forças Armadas precisariam exercer de maneira precisa seu papel de salvaguarda da República [12]. Segundo Stepan, esta mudança ideológica nas Forças Armadas teria começado já nos anos 1940, mas se atualizou de acordo com as conjunturas políticas de então [13], marcada por uma crise institucional e pela incapacidade de João Goulart levar a frente seus projetos por causa de particularidades do sistema eleitoral, que seria obstáculo na formação de uma maioria parlamentar. Diante disso, o presidente tomou uma decisão fundamental, a de legitimar as 'Reformas de Base' à parte do Congresso, sendo o 'Comício da Central' o evento símbolo dessa tentativa. Estas opções realizadas por Jango [14] em um momento de mudança ideológica das FFAA e de crise sistêmica desencadearam não só a intervenção militar mas a permanência dos generais no poder.

A sociologia funcionalista fornece importantes subsídios para explicar e descrever os acontecimentos que levaram ao regime militar. Claro que seu arcabouço teórico não deve se tornar uma prisão. Não se pode perder de vista que o indivíduo contemporâneo possui uma identidade multifacetada na qual está presente também características de classe, que tangenciam e perpassam os valores que absorve das comunidades e corpos sociais dos quais faz parte. Também não se pode perder de vista a velocidade das transformações do mundo contemporâneo, que geram áreas ainda maiores de atritos entre as diferentes organizações de um mesmo sistema social, que podem também ser descritas não apenas enquanto desequilíbrios, mas como conflitos, rupturas que levam perigo ao sistema como um todo. Também seria interessante levar em conta os elementos de estrutura econômica que fazem parte do organismo social, que alimentam inclusive a cultura predominante e a articulação dos diversos subsistemas, ligando-os à reprodução de uma formação social específica. Estes aspectos, associados a uma pesquisa biográfica dos atores históricos, dos sujeitos que tomam as decisões em meio a todas estas conjunturas, se torna vital para entender os complexos arranjos e resultados da História.


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[1] A abordagem 'micro' de Glaúcio Ary Dillon Soares não tem nada a ver com a 'micro-história' de um Carlo Ginzburg. Ela diz respeito antes a uma ênfase no discurso e percepção dos indivíduos envolvidos no evento histórico, entendidos como unidade mínima na qual se poderia perceber a mentalidade do corpo social da qual faz parte. 

[2] Soares sequer se coloca a questão de saber o quão ideologizados podem ser os depoimentos de militares sobre as razões do golpe, ainda mais em um período em que buscavam justificar-se frente aos processos de redemocratização. Além disso, a mera expressão das motivações com as quais os agentes justificam suas ações não poderiam se tomadas, por si só, como nexos causais reais de processos históricos.

[3] Pesquisas historiográficas apontaram que a origem social dos oficiais do Exército durante a Monarquia eram estratos decadentes das elites civis tradicionais. Estes sujeitos, ao se verem em situação financeira periclitante, costumavam adentrar o alto funcionalismo público, tanto na área militar quanto jurídica. Se a situação fosse pior ainda, tornavam-se profissionais liberais -- eis aí a origem da primeira classe média brasileira, chamada de 'tradicional'. Há, portanto, vínculos sociais muito fortes entre estes grupos e classes sociais. O que não implica, necessariamente, em solidariedade irrestrita. O alto oficialato militar, por exemplo, vai se ressentir de seu pequeno espaço político em um Império dominado por um mentalidade civilista que desqualificava a função militar. O papel do Exército, inclusive, não era sequer o de manter a ordem interna do país, função que era conferida à Guarda Nacional. A Guerra do Paraguai vai expor as fraturas desse tipo de relação, quando, vitoriosos no campo de batalha, os oficiais das FFAA passaram a exigir maior peso na vida nacional. 

[4] Um padrão ambíguo, que desvalorizava a participação política militar ao mesmo tempo que os exaltava como guardiões dos valores republicanos.

[5] Percebendo o esfacelamento da estrutura do Exército nas rebeliões tenentistas ocorridas durante a Primeira República, o grupo a que pertencia o General Góes Monteiro tomou a responsabilidade de fortalecer a hierarquia das instituições militares, tornando-as mais rígidas e controlando-as inteiramente do alto. Isto seria vital para que o Exército, até então fragmentado e fragilizado, pudesse cumprir sua função constitucional, a de proporcionar segurança para a nação. Segundo ele, ''devia acabar com a política NO Exército para que se fizesse a política DO Exército''. Esta formatação da organização militar foi realizada por meio de diversos expurgos, que se aproveitaram dos embates políticos ocorridos tanto em 1930, como também na revolta paulista de 1932, no levante comunista de 1935 e no golpe do Estado Novo em 1937. Para isso era necessário também eliminar a concorrência que as FFAA possuíam nas forças públicas estaduais, as ''polícias'' das oligarquias, que eram, em certos casos, bastante poderosas. O grupo de Góes Monteiro percebia que naquele mundo uma força militar forte só podia existir diante da presença no país de certas indústrias de base -- uma perspectiva trazida ao país já na década de 1910 pelos ''jovens turcos', oficiais que estudaram na Alemanha e enxergaram o poder das forças militares daquele país, impulsionadas pela economia e ''revolução do alto'' que modelou a nova potência europeia. Desse modo, a Doutrina Góes não apenas se limitava a reintegrar administrativamente o Exército, mas a exigir que o Estado não apenas revertesse seu formato federativo, mas se tornasse centralizado e capaz de impor um programa de industrialização setorial. Grande parte da pressão sobre Vargas para investimento na área petrolífera e siderúrgica nasceu das Forças Armadas. Claro está que a Doutrina Góes previa toda uma reformulação não apenas da organização militar, mas também das instituições brasileiras.

[6] Um aspecto importante nesta análise é a ideia de Coelho de que há uma continuidade entre a Doutrina Góes e a Doutrina de Segurança Nacional elaborada pela futura Escola Superior de Guerra.

[7] Há aqui problemas com a análise de Edmundo Campos Coelho e que são atacados pelos defensores de uma sociologia do conflito. O período populista da República viu o alto oficialato do Exército se dividir em correntes distintas e que se articulavam em alianças com fragmentos da elite civil. Havia uma corrente nacionalista de esquerda,  uma corrente nacionalista de direita e uma liberal de direita. Estas correntes, além de dialogarem com os civis, compondo alianças com eles, entravam em disputas nas eleições do Clube Militar, que eram extremamente importantes no período para se conhecer as tendências predominantes entre os generais. Essa divisão também esteve no cerne da divisão ocorrida em 1961, com a renúncia de Jânio, com o impasse entre a tentativa de golpe no Rio de Janeiro, e a ''cadeia de legalidade'' de Leonel Brizola, que teve apoio do comandante do III Exército, sediado no Rio Grande do Sul. Além disso, não é totalmente seguro afirmar que o ethos militar se encontrava tão divorciado assim das transformações culturais que ocorriam na sociedade brasileira das décadas de 1950 e 1960. Há pesquisas que indicam o contrário.

[8] O governo dos Estados Unidos tinha interesses estratégicos na pesquisa histórica dos países latino-americanos depois do episódio traumático da Revolução Cubana. Os ''brasilianistas'' realizaram importantes trabalhos, alguns clássicos, em diversos períodos da História brasileira. Cito rapidamente os nomes de Kenneth Maxwell e de Thomas Skidmore. Eles se beneficiavam de uma grande qualificação acadêmica, ainda não existente no Brasil por causa de falta de estrutura universitária e ausência de programas de pós-graduação, e de um acesso mais fácil a fontes militares por causa da conjuntura política.

[9] Na verdade, a expressão não foi inventada por Stepan, estando já presente na Primeira República [1989/1930]. Ele apenas a formalizou conceitualmente.

[10] É interessante notar que o sucesso dessa intervenção depende da existência de um consenso entre os generais sobre que lado apoiar. O fracasso em estabelecer esse consenso explica a ocorrência de golpes e contra-golpes na década de 1950 e, principalmente, a quase guerra civil desencadeada com a renúncia de Jânio Quadros.

[11] Alguns aspectos importantes a serem percebidos: Os funcionalistas dão grande importância a análise das instituições modeladoras da mentalidade e dos valores de determinadas organizações e grupos sociais. Neste caso, a Escola Superior de Guerra, fundada no modelo do War College norte-americano, seria a formadora da elite militar, o instrumento de transmissão da nova identidade da corporação. Outro ponto importante é que Stepan dá ênfase à ruptura representada pela participação do Exército na Segunda Guerra Mundial. A Doutrina de Segurança Nacional elaborada pela ESG não seria uma simples continuidade com a Doutrina Góes. Stepan percebe a importância do diálogo entre os sistemas internos do país e o sistema internacional na análise da dinâmica do conjunto político brasileiro.

[12] A Doutrina de Segurança Nacional apostava em um conflito de longa duração entre civilizações diferentes, a ocidental cristã e a comunista atéia, marcada por competições em todos os âmbitos, e que levariam a ideia de Segurança da nação para todos os aspectos da vida social, inclusive o esportivo. A Segurança não dependeria somente de fatores externos, mas também internos, já que agentes subversivos poderiam operar a favor do adversário no território pátrio mesmo. Era o conceito de ''inimigo interno''.


[13] Um exemplo de como articular causalidades de diversas temporalidades. O ''salvacionismo'' militar remonta, na verdade, à República Velha.

[14] Stepan será claro em apontar uma certa falta de manobra de João Goulart para lidar com a conjuntura que recebeu.

domingo, 30 de março de 2014

A placa do caminhão era sérvia

Djokovic é campeão pela quarta vez do Master de Miami



Atropelamento sem dó nem piedade. Djoko levou o Master desta semana com um pé nas costas.

Ele era mesmo o meu favorito tanto pra Indian Wells e Miami, mas a vitória de hoje sobre Nadal impressiona pela facilidade, a mesma já demonstrada no ATP 500 de Pequim e no Finals do ano passado. Incrível como a maior das armas do espanhol, seu monstruoso top spin na esquerda do adversário, não fazem nem cócegas no sólido backhand duplo de Nole. Pior ainda, quando a bola vem alta só serve mesmo pro sérvio encher a mão no drive do espanhol, que sistematicamente perde o controle do ponto.

Pra fazer frente ao jogo do Djoko atualmente, Nadal depende de um saibro de média velocidade, em que ele tenha um equilíbrio mais perfeito entre longas trocas e uma superfície em que seu top spin ande mais. Nas quadras de saibro mais lentas, que amortecem esse golpe do Rafa, Novak tem vantagem.

Ou seja, ele é meu favorito também pra Monte-Carlo.

Em quadra dura podemos esquecer. Ultimamente o Nadal tem conseguido apenas evitar vexames, mas não é competitivo contra o sérvio. 

Com isso, a diferença entre os dois líderes do ranking da ATP, que era de mais que era de mais de quatro mil pontos depois do Australian Open, caiu para menos da metade. Se Djoko conquistar Mônaco mais um vez tem tudo pra virar número um do mundo antes mesmo de Roland Garros, já que Rafa defende dois mil pontos em Madrid e Roma contra apenas duzentos de seu concorrente.

E Nole chega ao quadragésimo oitavo título de sua carreira e ao décimo oitavo Master, caminhando de modo consistente pra se tornar um dos nomes mais vitoriosos da era profissional do tênis. Como eu já disse noutras paragens, ele é a síntese do jogo atual. Defende como ninguém, contra-ataca, tem um forehand que anda e um backhand duplo que é um espetáculo. Como não bastasse, saca bem e tem uma devolução comparável à de Agassi. Nas quadras lentas atuais não precisa nem saber dar slice e jogar na rede, o que tem é suficiente para torná-lo uma máquina indomável de títulos.

O próprio Nadal não se negou a reconhecer: ''Enfrentar Djokovic é a pior coisa que pode acontecer para mim, porque ele devolve melhor que eu, ele saca melhor que eu, especialmente neste tipo de quadra", analisa com frieza e sinceridade Nadal, que perdeu 14 dos 21 duelos que já realivou contra o sérvio nesse tipo de superfície. "Ele esteve melhor do que eu em tudo. Conseguiu sempre achar o golpe certo na posição certa".

O regime inaugurado em 1964 e o obscurecimento da memória, ou: O Brasil entre a História e a historieta

Notícia do Jornal do Brasil dando conta do apoio do STF à intervenção militar de 1964.



O jornal O Globo de hoje traz um caderno especial que lembra uma vez mais que amanhã se completam cinquenta anos do movimento militar que, em 1964, derrubou o presidente João Goulart e inaugurou um regime que duraria cerca de duas décadas. Nas últimas semanas, choveram especiais e depoimentos sobre a ditadura, a maioria esmagadora deles veiculando uma forte repulsa pelo período, que é pintado com cores mórbidas, em tons de luto e com ares de vergonha nacional. Em todos os cantos surgem ''heróis'' que resistiram contra o mal que saía dos quartéis para avacalhar com a República brasileira e jogá-la em uma época de trevas só comparáveis, dizem, aos totalitarismos mais cruéis. O regime militar seria, assim, um sequestro da sociedade e de nosso destino democrático, um desvio no caminho da construção de uma sociedade justa. Suas marcas seriam o totalitarismo, a alienação do povo, o descalabro econômico, e a tortura e terror generalizados. 

O retrato acima é no máximo risível. Não passa da tentativa de construir uma determinada memória do período, uma historieta de bandidos e mocinhos [1] em que muitos se locupletam ou propagandeando suas ideologias particulares, que pretendem ver vitoriosas no ''tribunal da História'', ou ganhando alguma notoriedade e, quem sabe, dinheiro, ao posar de membro de uma suposta resistência democrática e vítima de demônios fardados, ou, até mesmo, limpar a própria barra diante da lembrança de que simpatizavam ou até mesmo contribuíram com o regime [2]. Não há contorcionismo capaz de tornar políticos como Dilma Roussef ou Aloysio Nunes em defensores da democracia ou em vítimas passivas da violência estatal. Os pedidos reiterados de que se faça uma limpa na ditadura, identificando torturadores e criminosos, e passando por cima da Lei da Anistia de 1979, não conseguem esconder a hipocrisia ao deixar de fora não só figuras conhecidas da luta armada de esquerda, que vitimou civis e militares com atentados e sequestros, como também de organizações -- especialmente parte da mídia que repercute a pressão por ''comissões da verdade'' -- que deram apoio explícito à derrubada de Jango e aos generais que o sucederam na presidência [3]. O regime militar possuía bases fortes em todos os setores da sociedade [4], incluindo aí a massa popular [5]
Editorial dando conta da euforia popular em diversas regiões brasileiras por causa da queda de Jango

Mas o maior dos males criado por toda essa histrionice é o encobertamento de qualquer descrição ou explicação objetiva do que realmente aconteceu, a substituição da busca pela verdade histórica por um pseudo-mito simplista que nada faz além de expressar mesquinharias pessoais e interesses partidários e ideológicos. Digo 'encobertamento' porque há gente qualificada e empenhada justamente no problema de entender o 31 de março de 1964 e o sistema que a ele se seguiu. E é essa boa gente, ou pelo menos parte dela, que está jogada nos porões escuros do espetáculo midiático de ''malhar o judas'' que se tornou a cobertura jornalística do período, que tenho a intenção de revisitar.

Um dos vícios a serem evitados em qualquer descrição ou explicação histórica é a do apego a um único fator causal para explicar as diferentes dimensões e elementos de determinado evento ou época. Quando alguém é atado pela rede de uma explicação monocausal, acaba caindo em disputas inócuas com outros tantos, também confundidos por este tipo parcial de abordagem, em torno de dicotomias construídas para varrer pra debaixo do tapete tudo aquilo que não se encaixa no modelito simplificador em que se pretendeu prender a realidade. Várias dessas supostas contradições devem ser articuladas em uma perspectiva histórica mais ampla, o que não implica que não se deva priorizar em determinada medida um ou outro enfoque a fim de esclarecer um ponto particular ou ressaltar características que, apesar de fundamentais, acabavam esquecidas dentro de um quadro mais geral.
Marchas a favor da intervenção militar tomaram capitais brasileiras em 1964

Um das dicotomias a serem superadas é aquela marcada pela contraposição entre fatores estruturais e fatores intencionais. Entre os primeiros se discute muito a crise de desenvolvimento econômico e o esgotamento de um padrão de industrialização (a substituição das importações) que seria base da política populista e do consenso que embasava o sistema partidário e o Estado. A conclusão parcial seria que a crise econômica explicaria, por si só, a ruptura política do sistema [6]. Outra forma de reducionismo está no enfoque limitado ao fatores da estrutura política. Um exemplo é a ideia de ''Paralisia Decisória'', defendida por Wanderley Guilherme dos Santos, que advoga que foi determinada composição dos poderes que, em determinado momento, levou a uma paralisação decisória das instituições, levando todo o sistema à crise e possibilitando a intervenção militar. Já entre aqueles que defendem o pólo oposto, ligado à intencionalidade dos atores políticos, temos aqueles que focam nas escolhas particulares dos sujeitos, sem levar em conta as condições que delimitam a possibilidade de determinadas decisões e a repercussão das dita cujas. Também aqui entram as teorias conspiratórias, que enfatizam ora elementos externos como a CIA, a diplomacia estadunidense, o movimento comunista internacional, ou em elementos internos, marcados pela noção de uma conspiração desestabilizadora levada a frente por agentes e associações militares e empresariais. Muito mais sóbria é, neste ponto, o conceito de ''decisão estratégica'' de Angelina Figueiredo, que consegue abarcar ao mesmo tempo a existência de determinações estruturais e as escolhas e projetos intencionais que se movimentam nos meandros destas determinações e em diálogo com elas. Outra dicotomia, que muitas vezes se associa a anterior, está entre a postulação de causa exclusivamente externas ou internas como determinante final do movimento. No primeiro caso, 1964 se torna praticamente ato de um imperialismo estrangeiro que faria o sistema político brasileiro de mero joguete, ou então no pálido reflexo da Guerra Fria, um exemplo a mais a ser dado em um confronto ou processo que em tudo ultrapassaria os limites do país. No segundo caso, o Brasil é tratado como se fosse uma ilha, que, não apenas estaria desvinculada fortemente dos embates ocorridos no cenário internacional, como os utilizaria para expressar uma dinâmica que seria tão somente interna, embora camuflada por uma linguagem e discurso importados de experiências estrangeiras.

Uma das linhas explicativas mais interessantes e frutíferas para dar conta do golpe militar de 1964 é aquela marcada pelo funcionalismo estadunidense, com influências de visões liberais, importação de análises ligadas à administração de empresas, uma forte pitada de Weber e/ou Durkheim e também de psicologia comportamental, especialmente o behavorismo. Este tipo de abordagem visa, dentre outras coisas, escapar de análises marcadas exclusivamente pela sociologia do conflito, principalmente o marxismo, que tenta adequar os fatos a uma dinâmica puramente de classes determinada por uma conjuntura de guerra fria e de industrialização e urbanização do país. No próximo post, vou passar os olhos por aspectos da perspectiva de três autores que, em maior ou menor grau, se ligam a um ponto de vista marcado pela teoria organizacional, pela análise das identidades corporativas e pela ciência política funcionalista, muito forte nas academias norte-americanas: Gláucio Ary Dillon Soares, Edmundo Campos Coelho e Alfred Stepan.


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[1] Recentemente, o historiador Ronaldo Vainfas expressou seu desgosto com o que chamou de ''carnavalização da História'' e a propaganda de mitos sobre o período, muitas vezes com apoio de seus colegas. Segundo Vainfas, ''O que a maioria dos pesquisadores produz hoje sobre o golpe de 64 é de embrulhar o estômago de historiadores comprometidos com o ofício, e não com ideologias ou mitologias interesseiras e interessadas. [...]Estou defendendo uma história levada a sério, não a carnavalização dela. Toda esta bobagem lembra o filme de Carla Camurati sobre Carlota Joaquina, tratada como ninfomaníaca: narrativa iniciada por um velho escocês à sua neta, contando a história de um país exótico. Ou a série global "O Quinto dos Infernos", com seu d. Pedro I garanhão, full time. Esta série de matérias sobre 64 segue a linha histriônica e ignorante da história. Não faltam ex-perseguidos (em geral falsos perseguidos, que ganham bolsas-ditadura!) contando piadas sobre suas pretensas ou episódicas. Gente das artes, do teatro, do Pasquim!'' O texto pode ser lido inteiro em: Sobre a Ditadura

[2] Um exemplo de apoio aos militares é o Conselho Federal da OAB, que na década de 1960 se manifestou claramente a favor do regime. ''O presente artigo examina o combate travado pela OAB, por meio de sua instância diretiva máxima, o Conselho Federal, contra o governo Goulart. A atuação oposicionista da OAB deve ser compreendida no quadro da mobilização civil que colocou em marcha uma campanha de desestabilização do governo federal. Deposto Goulart, a OAB, como instituição, e os conselheiros federais, individualmente, colaboraram ativamente com a ditadura militar nos seus primeiros anos. Propõe-se que o oposicionismo da OAB ao governo Goulart derivasse de quatro fatores: os interesses socioeconômicos dos conselheiros federais; seus vínculos político-partidários; a cultura política dominante no Conselho Federal; questões corporativo-institucionais.''Conselho Federal da OAB apoia regime militar

[3] Caso notório é o do próprio Jornal O Globo, que possui jornalistas claramente militantes por punições contra aqueles que praticaram a tortura durante o regime militar mas que se calam ou inventam justificativas capciosas para deixar impunes grande parte da elite política atual, também envolvida em ações de arbitrariedade, e seus próprios patrões, que participaram ativamente do regime com propaganda, auto-censura, distorções jornalísticas etc. 

[4] Daniel Aarão Reis prefere falar de ''Regime civil-militar'' para indicar que houve tremendo respaldo da sociedade civil à intervenção militar de 1964 como também apoio ao regime que se seguiu. Um vídeo com o professor da UFF: A Ditadura Civil-Militar Leiam também: ''Tornou-se um lugar comum chamar o regime político existente entre 1964 e 1979 de “ditadura militar”. Trata-se de um exercício de memória, que se mantém graças a diferentes interesses, a hábitos adquiridos e à preguiça intelectual. O problema é que esta memória não contribui para a compreensão da história recente do país e da ditadura em particular. É inútil esconder a participação de amplos segmentos da população no golpe que instaurou a ditadura, em 1964. É como tapar o sol com a peneira. As marchas da Família com Deus e pela Liberdade mobilizaram dezenas de milhões de pessoas, de todas as classes sociais, contra o governo João Goulart. A primeira marcha realizou-se em São Paulo, em 19 de março de 1964, reunindo meio milhão de pessoas. Foi convocada em reação ao Comício pelas Reformas que teve lugar uma semana antes, no Rio de Janeiro, com 350 mil pessoas. Depois houve a Marcha da Vitória, para comemorar o triunfo do golpe, no Rio de Janeiro, em 2 de abril. Estiveram ali, no mínimo, a mesma quantidade de pessoas que em São Paulo. Sucederam-se marchas nas capitais dos estados e em cidades menores. Até setembro de 1964, marchou-se sem descanso. Mesmo descontada a tendência humana a aderir à Ordem, trata-se de um impressionante movimento de massas. [...]No Brasil, estiveram com as Marchas a maioria dos partidos, lideranças empresariais, políticas e religiosas, e entidades da sociedade civil, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros (CNBB), as direitas. A favor das reformas, uma parte ponderável de sindicatos de trabalhadores urbanos e rurais, alguns partidos, as esquerdas. Difícil dizer quem tinha a maioria. Mas é impossível não ver as multidões — civis — que apoiaram a instauração da ditadura. [...] Entretanto, expressivos segmentos apoiaram a ditadura. Houve, é claro, ziguezagues, metamorfoses, ambivalências. Gente que apoiou do início ao fim. Outros aplaudiram a vitória e depois migraram para as oposições. Houve os que vaiaram ou aplaudiram, segundo as circunstâncias. A favor e contra. Sem falar nos que não eram contra nem a favor — muito pelo contrário. [...]Também seria interessante pesquisar as grandes empresas estatais e privadas, os ministérios, as comissões e os conselhos de assessoramento, os cursos de pós-graduação, as universidades, as academias científicas e literárias, os meios de comunicação, a diplomacia, os tribunais. Estiveram ali, colaborando, eminentes personalidades, homens de Bem, alguns seriam mesmo tentados a dizer que estavam acima do Bem e do Mal. [...] São interessados na memória atual as lideranças e entidades civis que apoiaram a ditadura. Se ela foi “apenas” militar, todas elas passam para o campo das oposições. Desde sempre. Desaparecem os civis que se beneficiaram do regime ditatorial. Os que financiaram a máquina repressiva. Os que celebraram os atos de exceção. O mesmo se pode dizer dos segmentos sociais que, em algum momento, apoiaram a ditadura. E dos que defendem a ideia não demonstrada, mas assumida como verdade, de que a maioria das pessoas sempre fora — e foi — contra a ditadura. Por essas razões é injusto dizer — outro lugar comum — que o povo não tem memória. Ao contrário, a história atual está saturada de memória. Seletiva e conveniente, como toda memória. No exercício desta absolve-se a sociedade de qualquer tipo de participação nesse triste — e sinistro — processo. Apagam-se as pontes existentes entre a ditadura e os passados próximo e distante, assim como os desdobramentos dela na atual democracia, emblematicamente traduzidos na decisão do Supremo Tribunal Federal em 2010, impedindo a revisão da Lei da Anistia. Varridos para debaixo do tapete os fundamentos sociais e históricos da construção da ditadura. [...]'' O Texto pode ser lido por inteiro em: A Ditadura Civil-Militar 2

[5] O próprio Lula o confirma, em entrevista a Ronaldo Costa Couto em 3 de abril de 1997, e que consta do livro ''Memória Viva do Regime Militar'': "Eu acho que a gente tem de dividir o regime militar entre a intenção dos militares que deram o golpe em 1964 e aquilo em que ele se transformou depois o golpe, a revolução. Pois eu acho que houve uma deformação. Agora, com toda a deformação, se você tirar as questões políticas, as perseguições e tal, do ponto de vista da classe trabalhadora o regime militar impulsionou a economia do Brasil de forma extraordinária. Hoje a gente pode dizer que foi por conta da dívida externa, 'milagre' brasileiro e tal, mas o dado concreto é que, naquela época, se tivesse eleições diretas, o Médici ganhava. É o problema da questão política com as outras questões. Se houvesse eleição, o Médici ganhava. E foi no auge da repressão política mesmo, o que a gente chama de período mais duro do regime militar. A popularidade do Médici na classe trabalhadora era muito grande. Ora, por quê? Porque era uma época de pleno emprego. Era um tempo em que a gente trocava de emprego na hora em que a gente queria. Tinha empresa que colocava perua para roubar o empregado de outra empresa. [...] Eles estabeleciam planos, coisa que nós não temos há muito tempo. O Brasil vai do jeito que Deus quer. E os militares tiveram, na minha opinião, essa virtude. [...]Tinha uma proposta de país. Com uma coisa nacionalista, que eu acho importante. Que nós perdemos. Que nós perdemos, não. Que o governo perdeu.''[...] "Quando houve o 31 de março de 1964, eu tinha exatamente dezoito anos de idade. Trabalhava na Metalúrgica Independência. E eu achava que o golpe era uma coisa boa. Eu trabalhava junto com várias pessoas de idade. E pra essas pessoas o Exército era uma instituição de muita credibilidade. Como se fosse uma coisa sagrada. Uma coisa intocável. O Exército era uma coisa que poderia consertar o Brasil. Quando houve o golpe, a Metalúrgica Independência tinhas umas 45 pessoas, e a gente tinha uma meia hora para o almoço. Todo mundo de marmita, a gente sentava para comer e eu via os velhinhos comentarem: 'Agora vai dar certo, agora vão consertar o Brasil, agora vão acabar com o comunismo', agora vai não sei mais o quê. Era essa a idéia. Essa era a visão que eu tinha na época do golpe militar. Na minha casa, a minha mãe escutava o rádio e dizia: 'O Exército vai consertar o Brasil. Agora nós vamos melhorar.' Era essa a visão. Pelo menos a parte mais pobre da população, que não tinha consciência política, tinha essa ideia.''

[6] Um exemplo nítido são as análises de Fernando Henrique Cardoso, que partem de sua ''teoria da dependência'', segundo a qual haveria uma mudança na forma de acumulação de capital. O modelo não se adequaria às novas necessidades do Capital Internacional. A crise teria advindo, portanto, como uma adaptação do modelo de organização estatal às novas demandas macro-econômicas do capitalismo mundial.



sexta-feira, 28 de março de 2014

A Divindade de Cristo nos Evangelhos chamados de ''Sinóticos''

Durante um certo tempo andei me embrenhando no intrincado assunto do estudo histórico sobre Cristo. A ''busca pelo Jesus Histórico'' acabou me interessando não só por causa da temática próxima à minha área de formação mas também porque me parecia útil para responder algumas questões pessoais que carreguei durante algum tempo, principalmente em um período de transição e que acabaria por me levar à Igreja. Com o tempo o interesse passou e o valor que eu dava à abordagem histórica sobre Cristo diminuiu consideravelmente. Mas, ainda que não sirvam como elemento primordial ou fio condutor do estudo de religiões, muita coisa boa pra pensar ainda pode ser aproveitada desse campo. Mais de uma vez me deparei com a dúvida de terceiros sobre a presença da crença na Divindade de Cristo nos Evangelhos sinóticos. Há em alguns círculos uma percepção de que a afirmação explícita da natureza divina do Senhor só aparece no Evangelho de São João Teólogo, e já vi pesquisador de status dizendo bobagens sobre esse tema, alegando inclusive que a famosa declaração ''e o Verbo era Deus'' seria uma interpolação tardia. Para um cristão ortodoxo a palavra dos santos basta. Mas os não cristãos podem contar com boas e fortes indicações de que a fé na Divindade de Cristo estava presente já na primeira geração de cristãos.


Um dos mitos cosmogônicos mais difundidos pelo mundo apresenta o Deus Criador derrotando um monstro aquático ou caminhando por sobre as águas, que são aqui símbolo do Caos Primordial, ou ainda do estado informe anterior ao Cosmos [1]. No Velho Testamento, a imagem de Deus caminhando por sobre as águas, ou as pisando e domando, são frequentes. Elas aparecem não apenas em Gênesis mas também em Jó, no capítulo 9, onde se diz que Deus "sozinho formou as extensões dos Céus e caminha sobre as alturas do Mar", marcando o estabelecimento do Império divino sobre as Águas Primordiais. Na Septuaginta esta passagem utiliza as palavras em grego ''peripaton...epi thalasses'', que querem dizer "andando sobre [o] mar". Também em Habacuc encontramos o mesmo tema, em 3:15: ''Pisaste o mar com teus cavalos, o turbilhão das grandes águas!Esta tradição se mantém nos livros do Velho Testamento que falam sobre a Sabedoria Divina, como no capítulo oito de Provérbios. E de maneira ainda mais inequívoca em Eclesiástico 24: "Sozinha percorri a abóboda celeste, e penetrei nas profundezas dos abismos. Andei sobre as ondas do mar...'' Também nesta passagem a Septuaginta traz a palavra "andei", em grego ''peripatesa''


Pois bem, os Evangelhos de Marcos, Mateus e João trazem um episódio de epifania, uma revelação de Jesus sobre Sua própria divindade: Cristo se apresenta aos discípulos andando por sobre o mar. Os termos em que essa caminhada se apresenta nos remetem de imediato para as passagens do Antigo Testamento. Em Marcos, no capítulo 6, versículo quarenta e oito, Jesus se dirige a eles ''peripaton epi tes thalasses'' [caminhando sobre o mar]. Os discípulos pensam se tratar de um fantasma e se assustam. E o Senhor lhes diz: "Sou eu, não temais". Em grego ''ego eimin [EU SOU ] me phobeisthe''. Depois que sobe ao barco, seus discípulos O adoram e confessam que Ele é "verdadeiramente o Filho de Deus". 


Não só a Igreja Primitiva notou que o episódio se ligava às teofanias de Deus e da Sabedoria domando as Águas Primordiais no Velho Testamento. A conexão era evidente demais também para os contemporâneos críticos da forma. Muitos explicam essa associação alegando que a narrativa é uma invenção. Os discípulos conheceriam as imagens do Antigo Testamento sobre a cosmogonia e o papel criador da Sabedoria e a teriam usado para criar um relato teológico. Estaríamos na presença não de um evento real, mas da construção de uma narrativa de teor mitológico com o propósito de passar determinado ensinamento. Esta hipótese tem, no entanto, alguns problemas muito sérios. Segundo John Paul Meier e outros ligados à ''busca pelo Jesus Histórico'' e estudos correlatos, o episódio da caminhada por sobre as águas tem múltipla corroboração em Marcos e em João [2], e faz parte de uma longa seção de eventos conectados que muitos chamam de "seção do pão". Ou seja, não é um relato isolado que cai de para-quedas no texto como seria de se esperar de uma criação teológica. Por outro lado, muitos bons críticos da forma concordam que, diferente do que se poderia esperar de início, a versão apresentada em João é provavelmente ainda mais primitiva do que a do Evangelho de Marcos. Surpreendentemente, o evangelista que é chamado de "O Teólogo" pela tradição da Igreja narra esse episódio em termos ainda mais crus, despido de imagens tipicamente teológicas. 


Mesmo que se coloque em dúvida a força dos critérios para atestar a historicidade desse evento, ainda assim estamos diante de uma perícope que remonta à primeira geração de cristãos, como se deduz por sua presença em Marcos e em João, duas tradições evangélicas bastante desconectadas e, provavelmente, completamente independentes. Como grande parte dos céticos se fundamenta nos critérios da disciplina histórica para sustentar que as imagens teológicas sobre Cristo se desenvolveram após a segunda geração de cristãos, eles teriam, por estes mesmos critérios, de encarar esse episódio como uma exceção notável que indicaria a afirmação da Divindade de Jesus já nos primórdios da Igreja. Um grande problema para aqueles que crêem na construção gradual do ''mito Jesus''.




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[1] Segundo Mircea Eliade, ''as águas simbolizam a soma universal das virtualidades; são fonte e origem, o depósito de todas as possibilidade de existência; precedem a toda forma e suportam toda a criação.''

[2] A múltipla corroboração ou atestação em fontes independentes é um dos critérios de historicidade aplicados a textos antigos. Nas últimas décadas, uma grande parte dos historiadores mudou sua posição sobre o Evangelho de João, passando-o a considerar fruto de uma tradição autônoma em relação aquela do Evangelho de Marcos.

quinta-feira, 27 de março de 2014

A Rússia inaugura novo capítulo na História

Bom, acabou. Ou melhor, começou. O ''fim da história'' se revelou, no máximo, o fim de um capítulo, e o novo ''império de mil anos'' que alguns viam nos Estados Unidos parece ter durado menos do que a hegemonia do Império Britânico. 

O 'Ocidente' conseguiu aprovar uma resolução da Assembleia Geral da ONU condenando a anexação da Crimeia pela Rússia [1]. Mas a Assembleia Geral não vale grande coisa e os Brics se abstiveram, o que diz muito mais do que o resultado final da votação.

A UE e os EUA esgotaram toda a sua capacidade de ameaça. Os russos não se intimidaram com as tropas da OTAN na fronteira polonesa, nem tampouco com sanções econômicas que seus adversários não podem cumprir. A Europa é dependente do gás russo e os Estados Unidos estão falidos, esta é a dura verdade que muitos terão de encarar para além da erística política [2]. As grandes empresas internacionais também não mostram nenhuma intenção de reduzir seus investimentos na Rússia por causa da crise na Ucrânia [3]

O fracasso das pressões políticas, militares e econômicas mostram o ocaso rápido e fulminante do unilateralismo ocidental, os limites da OTAN, a incrível velocidade da recuperação russa e o baile que os diplomatas do Oeste levaram de Putin na questão georgiana, síria e agora ucraniana. Como disse um amigo meu, não gastem muito em mapas múndi nos próximos anos. Não só a Rússia continuará a recuperar sua área de influência imediata do espaço pós-soviético como também a China tem todo interesse do mundo em reeditar o antigo Império. Mudanças ferozes estão por vir. E essa, aparentemente, é a maior das derrotas do Ocidente: a ascensão de teorias políticas, econômicas e sociais politicamente viáveis para desafiar o liberalismo e a social democracia ao redor do globo [4]. Era tudo o que temiam os globalistas, tanto de direita quanto de esquerda. [5]



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[2] Para bom entendedor, Merkel jogou a toalha quanto a este último ponto: Ocidente não tem como cumprir sanções à Rússia


[4] Putin chutou o pau da barraca: Rússia declara objetivos geopolíticos independentes

segunda-feira, 24 de março de 2014

Olavo, pai de idiotas; ou: como o filósofo da Virgínia sabota qualquer alternativa real à esquerda





Essa ''Marcha da Família'' pedindo intervenção militar no sistema político pátrio é uma das coisas mais imbecis que vi nas ruas nos últimos tempos, no mesmo nível da ''marcha das vadias'' e quejandos. Talvez até pior, pois enquanto as 'vadias' gozam de certo background favorável no discurso ideológico hegemônico no cenário público, aqueles que se qualificam de ''anti-esquerda'' ou que pretendem apresentar alternativas ao ''petismo'' não podem se dar ao luxo de erros de cálculo dessa monta. Os direitistas da marcha conseguiram pagar um mico e fazer uma propaganda pró-esquerda e status quo que poucos intelectuais do Partido dos Trabalhadores seriam hoje capazes de articular. 


Concordo com aqueles que dizem que esse fenômeno não pode ser explicado sem olhar para o peso cada vez mais crescente do Olavetismo, uma verdadeira fábrica de idiotas como poucas vezes se viu nesse país. Aqueles que pensam que Olavo de Carvalho é apenas uma figura pitoresca no cenário brasileiro deveriam reavaliar suas considerações. O sujeito não apenas vende horrores, como tem entrada garantida em círculos de classe média, revistas liberais, movimentos conservadores e grupos de jornalistas, líderes evangélicos, e, pasmem, no clero católico-romano [incluindo aí figuras populares, como o Padre Paulo Ricardo]. Durante anos, em jornais de grande circulação, pela internet, e em livros que se tornaram grandes sucessos editoriais, Olavo ensina que a situação do país é tão caótica, tão dominada pela esquerda, que a única alternativa restante para os ''homens de bem'' [pois esquerdista, é claro, é coisa do capiroto] seria uma americanofilia doentia, um pedido por intervenção militar e, até mesmo, quem sabe, a invasão e divisão do país. Vale tudo para evitar o sucesso do Foro do São Paulo e a união bolivariana que formaria na América Latina uma nova ''União Soviética''. Por trás disso, um projeto intelectual e cultural claro de americanização da direita brasileira. E quem discordasse era burro, ora porra!, não tinha cultura, ora porra!, não tinha lido Aristóteles, ora porra!, bradava o filósofo em seu ''True Outspeak''. 


[Sim, eu sei que o Olavo de Carvalho se posicionou contra esta passeata, mas a influência direta de sua postura polemista e ideológica na emergência deste movimento é evidente demais para que possa ser negada.]




O cômico é que o filósofo da Virgínia proclamou durante anos a influência nefasta de supostos professores marxistas que, maliciosos intelectuais orgânicos que seguiam a cartilha de Gramsci, teriam criado uma geração de analfabetos funcionais que serviriam de militantes para interesses políticos que eles próprios seriam incapazes de perceber. Mas eis aí os frutos do trabalho do Olavo: uma rede de fãs ainda mais tosca brandindo justamente um livro seu cujo objetivo era o de evitar a proliferação do tipo e sendo 'pau pra toda obra' de um projeto para o país ainda mais deletério do que qualquer 'petismo'. 

O tiro saiu pela culatra. E os efeitos tem mesmo a natureza da causa, para manter a ironia. Como diria o memorável Nelson Rodrigues, Olavo subiu num caixote e logo teve a solidariedade fulminante de seus iguais. Ele, que tantas vezes bradou que os movimentos tem de ser avaliados por seu impacto histórico concreto e não apenas por seus ideais, não pode agora fingir que a imbecilização do que resta de direita nesse país não tem nada a ver com sua obra. 

Toma que o filho é teu:  "As FFAA não fazem nada!"

sábado, 22 de março de 2014

O nó cego do feminismo; ou: o abraço inconsciente entre misoginia e misandria

Sob certos aspectos, o feminismo é um dos movimentos mais bem sucedidos da História Contemporânea, tendo conquistado não só a simpatia geral mas vencido aquela que talvez seja a mais importante das batalhas, a da hegemonia no discurso público. Afinal, trata-se, segundo suas defensoras, de pôr fim à mais antiga opressão já existente, aquela das mulheres [1]. Quem pode ser contrário a direitos iguais para as mulheres, ou obstaculizar o acesso delas à educação, mercado de trabalho, salários iguais, valorização profissional, independência financeira, cidadania, vida política, prazer sexual e todos os demais itens que compõem a noção hodierna de vida plena? O problema é que muitas destas supostas conquistas são usadas para impor uma perspectiva sobre os sexos que implica em perdas ainda maiores e uma restrição no conhecimento das naturezas feminina e masculina. 

Sei que há aqui um ponto bastante complicado para a aceitação de boa parte das feministas, a idéia de que exista uma natureza feminina é vista muitas vezes como componente da opressão. A tal natureza seria nada mais que um recorte de elementos culturais imposto socialmente às mulheres [e vá lá, aos homens também, concedem algumas correntes [2]] que as colocaria sob controle do macho, este inimigo público número um. Se retirássemos todos os elementos culturalmente determinantes do 'gênero', o que restaria seriam indivíduos com capacidades iguais e que só difeririam no detalhe dos órgãos sexuais [3]. Ah, o maldito útero!, pensaram algumas feministas. É necessário minimizá-lo, dominar os instintos e impulsos gerados por sua simples existência. A neurose que atingiu algumas militantes explodiu em um estado doentio tal que as tornaram capazes de ver traição à causa no simples desejo sexual que as mulheres sentiriam pelo sexo oposto [4]. A penetração, criação dessa sacana da mãe natureza, seria um tremendo ato de tirania, e se submeter a ela uma covardia imperdoável. Algumas ensandecidas chegaram a defender que o número de machos do planeta fosse controlado de modo bastante rígido, em um número mínimo e incapaz de ameaçar o futuro paraíso da Misandria [5].

Deixando de lado estas expressões extremas e excêntricas do feminismo, o fato é que a visão de que não há diferenças entre os indivíduos determinadas pelo sexo é difícil de ser sustentada mesmo a partir do discurso que mais goza de autoridade na sociedade atual, aquele das ciências naturais. Mais e mais pesquisas vem demonstrando, sem margem de dúvidas, que homens e mulheres possuem não apenas órgãos sexuais distintos, mas distintos temperamentos, modos de cognição e expressão [6]. Fora do círculo das ciências naturais, também é possível mostrar que certas dimensões biológicas básicas que podemos observar nos homens determinam os diferentes papéis sociais exercidos pelos sexos [7]. Somente uma recusa absurda de ignorar a realidade pode levar alguém a acreditar que toda esta gama de fatores não tenha nenhuma influência na gestação dos papéis de gênero nas diversas sociedades humanas. É inevitável, portanto, concluir que estas funções sociais são fundamentadas em uma certa percepção da natureza.

A mitologia feminista de uma história reduzida a uma guerra constante entre os sexos vai se tornando cada vez mais vazia na medida em que se amplie a gama de dados e a perspectiva usada para analisá-los. Ainda que se adote um ponto de vista bastante limitado, como faz a anti-feminista Karen Straughan, é fácil perceber que há elementos na relações construídas entre os sexos que não encaixam na figura de uma escravidão perene. Karen, por exemplo, faz notar que se há um dado evidente destas relações é a capacidade dos homens de se colocarem em segundo plano quando o assunto é a preservação da vida da mulher [8]. A importância desta para a reprodução levou à exigência social de protegê-la e valorizá-la acima da vida masculina quando diante de situações de perigo. Karen cita aquelas situações extremas em que nos perguntamos, ''quem é que vai primeiro no bote durante este naufrágio?'', ou ainda ''quem salvaremos primeiro de um prédio em chamas?'' Inevitavelmente a resposta que a sociedade espera e demanda dos homens é ''mulheres e crianças primeiro''. Essa exigência teria levado a exageros, maiores ou menores de acordo com o grupo humano, quanto às medidas de proteção e controle das mulheres, mas seria o mecanismo básico que permitiu a sobrevivência da espécie e seu espraiamento e vitória material no mundo. Na verdade, segundo Straughan, é também esse mecanismo que permitiu o sucesso do feminismo, pois os homens continuam modelados para atender as exigências femininas em detrimento das suas próprias [9]. O grande problema, segundo ela, é que nas sociedades tradicionais ocorria, como uma forma de recompensa a esta capacidade do homem para se colocar em segundo plano frente às necessidades femininas, uma valorização da masculinidade enquanto tal. Já na nossa, essa mesma masculinidade seria vista como algo deletério, ao mesmo tempo em que se exige do sexo masculino a mesma capacidade de se pensar como descartável.

Este tipo de abordagem deixa de fora muitos elementos importantes relacionados ao sexo, embora estejam fundamentalmente correta no âmbito em que se coloca. A natureza não determina de maneira irreversível a maneira como a sociedade vai se organizar. Em certo sentido, é possível ao homem adotar uma postura 'anti-natural', ou, pelo menos, desconexa e desordenada em relação ao seu ser. Muitas feministas invocam uma ideologia igualitária que qualificam de humanista como fundamento de sua militância. Até que ponto o sucesso do discurso feminista está ligado a estas boas intenções, no entanto, é algo bem polêmico, como também são discutíveis boa parte dos benefícios que formam o legado advindo daí. Não é um dado líquido e certo que tenha sido bom para as mulheres adentrarem o mercado, relativizarem seu papel como mães e esposas, e ficarem submetidas à ideologia do trabalho e a uma definição de cidadania atrelada à capacidade de consumir [10]. A própria relativização dos laços matrimoniais caminha em um sentido inverso àquele que, em geral, foi sempre considerado um elemento fundamental de segurança dado à mulher. 

Mas se o ponto é contestar os papéis tradicionais dos sexos porque se contrapõem à ordenação social desejada para o homem contemporâneo, cabe a pergunta do significado e sentido intrínseco a esta ordenação social mesma. Nas sociedades tradicionais, as funções masculina e feminina não tinham por fim mecanismos de controle que se esgotavam na esfera sexual, política ou econômica. Acreditava-se que a ordem social devia refletir a ordem natural para possibilitar aos indivíduos a participação em realidades superiores a partir de suas respectivas funções e existência cotidiana , tornando-as base para uma realização pessoal em um plano de ser mais elevado [11]. Qual o telos da sociedade que nasce imbricada com a mentalidade feminista? 


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[1] John Lennon cantava na primeira metade da década de 1970: ''Woman is the nigger of the world...yes she is/If you don't belive me take a look to the one you're with/Woman is the slaves of the slaves/Ah yeah...better screem about it[...]'' Segundo o ex-Beatle, o título da música seria uma frase dita por sua mulher, Yoko Ono, que ele teria demorado muito pra entender. Não penso que a observação de Yoko de que ''a mulher é o preto do mundo'' seja tão inteligente assim. Não me parece fazer justiça nem à história das mulheres nem à dos negros. A demora de John Lennon por entender tal jargão bem como sua concordância com ele me parece mais fruto de uma lentidão de raciocínio do que de uma fulminante intuição vanguardista. Mas a música é boa: Woman is tne Nigger of the World

[2] Tais vertentes feministas parcialmente condescendentes teriam chegado à conclusão que para libertar as mulheres de seus grilhões seria também necessário libertar os homens do peso da masculinidade culturalmente introjetada nos meninos.

[3] Um exemplo de conclusão extrema baseada neste ponto: A criança sem sexo . Um experimento social desse levado à frente com uma criança é encarado mais como uma excentricidade do que como um crime. Não me perguntem o porquê.

[4] Catherine MacKinnon chegou a afirmar que ''Todo o sexo, mesmo o consensual entre um casal, é um ato de violência contra a mulher.''  Em um certo sentido, bem matizado, pode-se dizer que a frase tem um quê de verdade, pois a penetração é invasiva. Mas a sinonimização disso a um simples ''ato de violência contra a mulher'' é uma alegação que deve servir de dado não apenas para um estudo sociológico de certos ramos do movimento feminista mas também dos traumas e desvios psico-afetivos de algumas de suas adeptas. Em geral, estes desvios não só acumulam uma ira sem fim pelo intercurso sexual e pelo sexo masculino como também por instituições tradicionais como o casamento. Andrea Dworkin deixa isto claro ao afirmar que ''O Casamento como uma instituição se desenvolveu a partir da prática do estupro''. Ti Grace Atkinson chega a ver o sexo como uma mera instituição: ''A instituição do intercurso sexual é anti-feminista''. Ou seja, onde quer que exista dois animais transando temos uma conspiração para a opressão da fêmea. 

[5] Sally Miller Gearhart proclamou no livro ''O futuro - se houver um - será feminino'' que ''a proporção de homens deve ser reduzida e mantida em aproximadamente dez por cento da raça humana''. 

[6] ''Até não muito tempo atrás, os neurocientistas acreditavam que as diferenças no cérebro de sexos diferentes se limitavam às regiões responsáveis pelo comportamento de acasalamento. [...]Essa visão foi posta de lado por uma onda de descobertas que ressaltam a in-fluência do gênero em várias áreas da cognição e do comportamento, incluindo memória, emoção, visão, audição, processamento de rostos e resposta do cérebro aos hormônios do stress. Esse avanço se acelerou nos últimos dez anos com o uso de técnicas de imageamento sofisticadas e não-invasivas, como a tomografia por emissão de pósitrons (PET) e a ressonância magnética funcional (RMf), com as quais é possível observar o cérebro em ação. [...]Outras pesquisas estão encontrando diferenças anatômicas ligadas ao sexo no nível celular. Sandra Witelson, da Universidade McMaster, por exemplo, descobriu que as mulheres possuem densidade maior de neurônios em áreas do córtex do lobo temporal associadas ao processamento e à compreensão da linguagem. Ao contar os neurônios de amostras de autópsias, os pesquisadores notaram que, das seis camadas do córtex, duas apresentavam mais neurônios por unidade de volume em mulheres do que em homens. Descobertas semelhantes foram registradas posteriormente no lobo frontal. De posse dessas informações, os neurocientistas podem agora analisar se as diferenças sexuais no número de neurônios correspondem a diferenças na capacidade cognitiva - examinando, por exemplo, se o aumento na densidade do córtex auditivo feminino está relacionada ao melhor desempenho em testes de fluência verbal. Essa diversidade anatômica pode ser causada, em grande parte, pela atividade dos hormônios sexuais que banham o cérebro do feto. Esses esteróides ajudam a coordenar a organização e as conexões cerebrais durante o desenvolvimento, e influenciam a estrutura e a densidade neuronal de várias regiões. Curiosamente, as áreas cerebrais que Goldstein descobriu diferirem entre homens e mulheres são aquelas em que os animais concentram o maior número de receptores de hormônios sexuais durante o desenvolvimento. A correspondência entre o tamanho da região do cérebro em adultos e a ação de esteróides sexuais no útero indica que pelo menos algumas das diferenças sexuais não resultam de influências sociais ou de alterações hormonais relacionadas à puberdade. Elas estão ali desde o nascimento. Vários estudos comportamentais contribuem para aumentar as evidências de que algumas das diferenças sexuais no cérebro surgem antes mesmo que o bebê comece a respirar. Ao longo dos anos, cientistas demonstraram que, quando escolhem brinquedos, meninas e meninos tomam rumos diferentes. Os meninos tendem a gravitar em torno de bolas ou carrinhos, enquanto as meninas normalmente pegam bonecas. Mas ninguém sabia dizer com certeza se essas preferências eram determinadas pela cultura ou pela biologia cerebral inata. Para tratar dessa questão, Melissa Hines, da Universidade da Cidade de Londres, e Gerianne M. Alexander, da Universidade A&M do Texas, recorreram aos macacos, nossos primos animais mais próximos. As pesquisadoras apresentaram uma variedade de brinquedos a um grupo de macacos vervet, incluindo bonecas de pano, caminhões e alguns itens neutros como livros ilustrados. Elas observaram que os macacos machos passaram mais tempo brincando com "brinquedos de menino" do que as fêmeas, e que as macacas passaram mais tempo interagindo com os que as meninas costumam preferir. Ambos passaram o mesmo período de tempo mexendo nos livros e em outros brinquedos unissex. Como é pouco provável que os macacos vervet sejam influenciados pelas pressões sociais da cultura humana, os resultados significam que a preferência das crianças por certos brinquedos é conseqüência, pelo menos em parte, de diferenças biológicas inatas. [...]'' Ele e Ela . Ver também: Diferenças de QI entre homens e mulheres e Guerra dos sexos [e dos cérebros] .

[7] A partir de uma perspectiva evolucionista, Robin Fox, em seu livro ''Parentesco e Casamento -- uma perspectiva antropológica'', diz: ''Uma parte considerável do legado primata possui relevância para todo e qualquer estudo da sociedade humana. Refirmo-me à dominância e à hierarquia, à territorialidade, à cooperação de grupo, ao comportamento sexual e ao acasalamento, ao estabelecimento de laços, à ritualização etc. Mas os 'fatos da vida' que a espécie humana teve de levar a bom termo ao longo de todo o processo de adaptação e que são relevantes para o estudo do parentesco e do casamento, poderão talvez reduzir-se a quatro ''princípios'' básicos: Princípio 1 -- As mulheres têm os filhos. Princípio 2 -- Os homens engravidam as mulheres. Princípio 3 -- Os homens exercem geralmente o controle. Princípio 4: -- Os parentes do primeiro grau não se acasalam entre si. A gestação, a fecundação, a dominância e a exclusão do incesto são partes integrantes da raiz de toda organização social. Os dois primeiros princípios impõem-se por si próprios, mas não deixam de suscitar complicações, como adiante veremos. O terceiro é sem dúvida controverso, mas acho que fazer-lhe objeções ser-se, de certa maneira, irrealista. Em termos gerais, é esmagadoramente verdadeiro, e por muitas e boas razões. Não me parece necessário recapitularmos a história da evolução humana para descobrimos porquê. Durante a maior parte da história humana, as mulheres estiveram ocupadas com a muitíssimo especializada tarefa da gestação e criação dos filhos. Eram os homens saíam para caçar, que combatiam os inimigos e que tomavam as decisões. Isso está, é minha convicção, enraizado na natureza do primata [...]'' Não penso que o evolucionismo explique por si só as relações entre os sexos na espécie humana, mas as observações de Robin Fox são importantes para a mentalidade atual por motivos óbvios.


[9] Não há nenhum movimento social e político de peso entre os homens advogando que a completa igualdade entre os sexos seja usada para pôr fim a certos privilégios ou vantagens jurídicas conferidas a elas como por exemplo o desigual número de anos exigido para a aposentadoria.

[10] Alain Soral faz uma série de considerações interessantes sobre o feminismo no vídeo Sobre o Feminismo , introduzindo o fator classe social para explicar o papel dessa ideologia na constituição da moderna sociedade capitalista. 

[11] Julius Evola, no excelente ''A Metafísica do Sexo'', expõe esta questão não apenas em sua dimensão metafísica, mas também psicológica -- em um sentido tradicional do termo -- e social, vinculando a emergência e o sucesso do feminismo com uma regressão dos homens em relação ao conhecimento e vivência de suas naturezas mais profundas: ''A civilização moderna de caráter prático, intelectualizada e socializada, tendo dado cada vez maior relevo a tudo quanto está desligado do lado essencial dos seres humanos, tornou-se inorgânica e potencialmente estandardizada; estes valores derivam, em parte, duma regressão dos tipos que em certa medida fomentam e avolumam essa regressão. Foi este o modo através do qual a mulher moderna pôde penetrar rapidamente em todos os domínios, rivalizando com o homem: precisamente porque as qualidades, os comportamentos, as atividades mais características e mais difundidas na civilização moderna já pouco contato mantêm com o plano profundo em que a lei do sexo se manifesta, em termos ontológico-existenciais antes de se manifestar em termos físicos, biológicos ou mesmo psicológicos. O erro em que se incorre ao considerar a competição feminina, e que tornou possível o seu sucesso, está justamente na sobrevalorização, que constitui uma característica da civilização moderna, da inteligência lógica e prática, simples acessório da vida e do espírito, e que são tanto uma como a outra diferenciadas, enquanto que esta inteligência é informe e «neutra», «capaz de ser desenvolvida» no homem como na mulher em medida quase idêntica. Abordaremos só de passagem a vexata quaestio da inferioridade, paridade ou superioridade da mulher relativamente ao homem. Esta questão não tem sentido, visto supor uma comensurabilidade. Pelo contrário, se pusermos de parte tudo o que é construído, adquirido e exterior (excluindo os casos indicados, em que se não pode falar do sexo pois que a condição humana foi, em certa medida, superada), e se nos referirmos ao tipo, isto é, à sua «idéia platônica», devemos reconhecer que existe entre o homem e a mulher uma diferença que exclui toda a medida comum; até as faculdades ou qualidades aparentemente comuns e «neutras» têm uma funcionalidade e uma característica diferentes conforme se apresentam no homem ou na mulher. Não pode perguntar-se se «a mulher é superior ou inferior ao homem», assim como não pode saber-se se a água é superior ou inferior ao fogo. Esta é a razão pela qual o critério de medida para cada sexo não pode ser dado pelo sexo oposto, mas unicamente pela «idéia» do próprio sexo. Por outras palavras, a única maneira de estabelecer a superioridade ou inferioridade duma dada mulher será a de verificar se está mais ou menos próxima do tipo feminino correspondente à mulher pura e absoluta, o mesmo sucedendo com o homem. As «reivindicações» da mulher moderna derivam de ambições erradas bem como de um complexo de inferioridade — a idéia errada de que uma mulher propriamente dita, uma mulher «somente mulher», é inferior ao homem. Afirmou-se muito justamente que o feminismo não combateu verdadeiramente pelos «direitos da mulher», mas sim, e sem se dar conta de tal, pelo direito da mulher se tornar igual ao homem: o que, se fosse possível, equivalia ao direito da mulher se «desnaturar» ou degenerar, exceto no plano exterior prático-intelectual anteriormente indicado . O único critério qualitativo para cada sexo é, repetimo-lo, o grau de realização mais ou menos perfeito da sua natureza. Não há dúvida de que uma mulher perfeitamente mulher é superior ao homem que é imperfeitamente homem, do mesmo modo que um camponês fiel à terra e que desempenha perfeitamente a sua função é superior a um rei incapaz de desempenhar o seu cargo.''