sexta-feira, 22 de julho de 2022

Sobre Onças e Astros 2, ou: sobre quem devora e sobre quem é devorado

 




Estou neste exato momento viajando para outro estado. São horas de puro ócio no ônibus. Daí decidi fazer alguns complementos ao minúsculo estudo de ontem, em que aponto o festival de impropriedades de um texto publicado esta semana no site da Nova Resistência, e que se pretende um estudo comparativo entre a mitologia tupi e a viking, em uma tentativa de supostamente "ler os logoi brasileiros". Enfim, um estudo ligado à Noomaquia duginiana.


A autora do texto se preocupa com a perseguição que a Onça Celeste faz a Jaci e Pirapanema, seu meio-irmäo. Segundo ela, isto ameaça toda "ordem solar". Mas ela não devia se preocupar tanto assim, pois os tupinambás não liam Evola, e por isto os elementos de seus mitos não tem o mesmo significado simbólico dos livros do Barão italiano. Os tamoios não estavam lá muito preocupados com essa tal "ordem solar" evoliana.


Ora, o sol só brilha depois que Coaraci e Guapiraca, dois poderosos caraíbas, ascendem aos céus. Até entào, os filhos de Irin-Magé nào tinham sol no céu. Nem lua. E os grandes caraíbas, como Maíra e Sumé, andavam pelo mundo, conhecedores dos caminhos para o Céu  e para a Terra sem Males, que era sem Mal mesmo sem sol e lua.


Antes de Monan colocar fogo na terra para se vingar, ele convivia harmonicamente com os primeiros homens. O Velho andava entre os homens em uma realidade sem morte, sem doença, sem trabalho, e passada em meio a festas. Não havia sol e lua também.


Não se deve ler mitologias de forma esquemática e simplória, sem levar em conta  o plano em que se dá a narrativa e a relação entre seus componentes. Isto é o básico do básico, e movimentos tradicionalistas deveriam sabê-lo. 


Só mais dois adendos antes de eu puxar uma soneca.


O trovão e o relâmpago não são atributos originais de Tupã. Nem essencialmente nem enquanto operação e atividade. Ele só os recebe de modo passivo, por consequência da explosão da cabeça do caraíba Maíra quando este foi cercado pelos homens, que criaram um estratagema visando matá-lo por nào aguentarem mais serem punidos com metamorfoses. Sabe-se pouco sobre Tupã, mas ele está mais ligado ao "orvalho do céu", ou seja, às nuvens [mas não necessariamente ao cultivo de plantas, que se deve principalmente a Maíra e a Sumé]. Nem o Sol nem Tupã eram objeto de qualquer culto especial entre os tupinambás.


Nhandevuruçu não é "o primeiro antes de tudo". Segundo poemas/mitos guaranis, antes de tudo existia uma escuridão, que não era aquática e sim sólida, na qual viviam morcegos [tribos tupis falavam de corujas eternas]. O Velho [significado de Monan] aparece quando os morcegos decidem bater as asas. Ou no momento em que eles batem. Não há como saber ao certo se o Velho é auto-gerado ou causado. Mas ele é o primeiro ser com forma humana. E cria o céu, que é feito de pedra, e sobre o qual ele caminha com um cajado [ele é também a primeira constelação]. O perspectivismo tupinambá é marcante aqui: o céu está sob os pés d'O Velho, que quando olha para cima vê a Terra, assim como quem está hoje na terra tem de olhar para o alto a fim de contemplar o céu.


Por fim, existem forças subterrâneas temíveis na mitologia tupi. O Anhangá vive submerso nas águas formadas pelo segundo dilúvio [causado pela briga entre os irmãos Tamanduaré e Guacuiré, outra rivalidade entre gêmeos, o primeiro representando o protótipo do agricultor, e o segundo do guerreiro]. São águas subterrâneas. Não se sabe bem o que é o anhangá, existem algumas interpretações a respeito, mas ele[s] arrasta[m] as almas dos mortos para o fundo das águas, onde são escravizadas. Anhangá promove guerra contra os homens que lutam para, como onças, alcançarem a Terra sem Males.


E ser onça e descobrir o caminho conhecido pelos grandes caraíbas envolve imitar uma mulher. Foi uma anciã o primeiro ser humano a se transformar em onça para vingar seu filho, assassinado e devorado pelo cunhado. [ o cunhadismo tupi não era uma coisa colorida, toda vítima do ritual antropofágico se tornava cunhado na aldeia que o devoraria. O ciclo de vingança e canibalismo pode ter tido início como punição a um incesto ou estupro, mas isto está longe de ser seguro.]


[Sim, a novela Pantanal tem ecos folclóticos de toda essa mitologia na história de Maria e Juma Marruá e o ciclo de vinganças por conflitos de terras no Paraná, mas isto é assunto para outro dia.]


 O meio-irmão de Jaci [ Vésper? ]no ciclo mítico dos gêmeos que procuram Andejo também é fruto de um estupro, aliás.


Bem mais proveitoso é comparar o substrato dos mitos tupinambás com certas concepções da Índia, outro povo da Rainha do Meio Dia. Como repete Ananda K. Coomaraswamy, o universo é alimento dos deuses.


Mas eu já estou entregando muito mais do aquele texto da NR merece. Sextou!




quinta-feira, 21 de julho de 2022

Sobre Onças e Astros, ou: um minúsculo estudo sobre alguns erros de outro estudo

 


Não vou me alongar, pois no momento tenho outras prioridades. Tomei conhecimento nesta quinta-feira de um texto publicado no site da Nova Resistência, e que, a pretexto de realizar um “estudo comparativo entre a mitologia tupi-guarani e a viking”, faz um ataque a símbolos da Frente Sol da Pátria. Bom, parece que nossa existência incomoda.

 

O tal estudo parece ser nada além de um eufemismo baseado em sites de divulgação da Internet, dados os simplismos e erros que comete sobre os mitos tupis. Toda a peça está voltada para demonstrar que o mito da Onça Celeste que persegue a Lua e seu meio-irmão [que a autora do texto alega ser o sol, o que é possível mas não seguro] é um ser malévolo, responsável pelo fim do mundo, e comparável, por um lado, ao Ragnarok dos nórdicos, e, por outro, ao Anticristo [????].

 

Os símbolos da Frente Sol da Pátria não se fundamentam diretamente nos mitos tupinambás. Mas não custa nada comentar, até com o fim de ajudar a autora em suas futuras pesquisas sobre o tema. [digo com sinceridade.] Ora, para os tupis, o mundo já acabou outras vezes. [1] A primeira destruição foi causada pelo próprio Nhanderuvuçu, que o texto apresenta erroneamente como “o princípio, primeiro antes de tudo”.  [Não é, mas não tenho tempo pra me aprofundar neste ponto.]

 

Foi Monan que, para se vingar do desprezo que os homens passaram a lhe dirigir, decidiu destruir a terra por meio de um incêndio fatal. Ou seja, o texto já tem um problemão para resolver logo de início: a suposta maldade da Onça Celeste por engolir a Lua [e seu meio-irmão] não é nada perto da fúria avassaladora que a vingança d’O Velho dirige contra a Terra e que dá cabo da “primeira humanidade”, exceção feita a Irin-Magé. [a segunda humanidade será também destruída, dessa vez por um dilúvio, ainda antes de Jaci subir aos céus.]

 

Por outro lado, na maioria das fontes à disposição, Jaci e seu meio-irmão não são filhos de Tupã, que a autora associa ao deus Thor [????]. O primeiro é filho do xamã Andejo, e o segundo de um personagem que violentou a mãe de Jaci enquanto ela procurava em vão por seu ‘marido’ [que a deixou para trás, grávida, por sentir necessidade de realizar uma grande viagem]. A mulher estava, ao mesmo tempo, grávida de dois homens diferentes, algo comum na mentalidade tupi. 


Não quero me estender, mas a mãe de Jaci foi devorada por uma tribo de homens que se metamorfoseavam em onças [um poder atribuído aos xamãs, e que tem ligações com a arte da guerra], e que provavelmente tinham o Xamã Sumé como ancestral. Mais tarde, Jaci se vinga da tribo, afogando-a em um rio. Ele e seu meio-irmão encontram o pai, Andejo, e após passarem por provas iniciáticas e provarem que são grandes xamãs, ascenderam aos céus.

 

Pois bem, é bastante provável que a tentativa da Onça Celeste de devorar Jaci seja uma vingança pelo ocorrido com a tribo de homens-onça. A Onça Celeste, que obviamente não é um ser ctônico como dito no péssimo texto [ela é CELESTE, cacete!], é ao mesmo tempo associada a uma estrela e a uma constelação, as Plêiades, ou mais precisamente ao Sete-Estrelo. [ou Seixo, ligado ao crescimento da mandioca, planta por sua vez associada a Sumé]. O Xamã Sumé, que os jesuítas pensavam ser o Glorioso Apóstolo São Tomé, é inimigo do Xamã Maíra, de quem os tamoios alegavam descender. De modo que tudo não passa também de guerra entre parentes, um princípio que de certa maneira organizava a vida tupi.

 

Jaci nitidamente se tornou a Lua quando ascendeu aos céus. Já seu meio-irmão pode muito bem não ser o Sol. Segundo o Conde D’Albeville, frade capuchinho francês que foi um dos coletores dos mitos tupinambás, trata-se da estrela vespertina, ou seja, Vênus: “Dão à estrela vespertina o nome de Pirapanema e dizem que é quem guia a Lua e lhe vai à frente.” Aliás, na narrativa, é Jaci, a Lua, que se regenera sozinha e ressuscita seu meio-irmão, o oposto do que afirma a autora do texto: os tamoios consideravam Jaci, a Lua, como ancestral mítico direto [o chamavam de “avô”]. Jaci chega a ser descrito também como uma ‘entidade principal’, não por ser a primeira, mas por ter precedência sobre as demais.

 

Seja ou não este um mito solar/lunar [não temos como saber com segurança], o Sol está ligado bem mais seguramente a outros personagens: Coaraci [Poxi] e Guapiraca, xamãs que tem outro ciclo de histórias ligado à segunda humanidade, e não à terceira [como é o caso de Jaci e Pirapanema]. Por fim, Albeville tampouco referenda a tese do texto da Nova Resistência de que os “os índios de várias partes do Brasil fazem um ritual muito barulhento, a fim de espantar a Onça Celeste para que ela não engula o Sol e a Lua.” O frade diz o contrário. Segundo ele, só as mulheres choram quando a Onça Celeste se aproxima de Jaci:

Todos os homens pegam então seus bordões e voltam-se para a Lua batendo no chão com todas as forças e gritando: “Eicobé xeramó. Güé, güé, güé; eicobé xeramói, güé!” O que significa: “Au au au! Boa saúde, meu avô!”. Entrementes as mulheres e as crianças gritam e gemem, e rolam por terra batendo com as mãos e a cabeça no chão. Desejando conhecer o motivo dessa loucura e diabólica superstição, vim a saber que pensam morrer quando vêem a Lua assim sanguinolenta, após as chuvas. Os homens batem então no chão em sinal de alegria porque vão morrer e encontrar o avô, a quem desejam boa saúde. As mulheres, porém, têm medo da morte e por isso gritam, choram e se lamentam.”

 

É que para os tupinambás do século XVI, a Terra sem Males – aquela em que Monan colocou Irin-Magé depois de destruir a terra pelo fogo – não podia mais ser alcançada em vida [isto tem a ver com o mito do segundo dilúvio, que não vou tratar aqui]. A única forma de alcançá-la era através do ciclo de vingança, aquela mesma paixão que levou o Velho a incendiar o mundo em primeiro lugar. Só matando muitos inimigos, e assim acumulando muitos “nomes”, a alma do guerreiro estaria preparada para a batalha do pós morte, que a poderia conduzir à Terra sem Males. [ou então, sendo morto em um ritual de antropofágico de vingança.] Assim, para eles, o fim do mundo não era necessariamente ruim. Só era ruim para quem não era ainda um grande guerreiro.

 

Voltando ao que é importante, os guerreiros reputados, os antropófagos, eram também ONÇAS. Para alcançar a Terra sem Males era necessário ser onça também, pois ela devora, não é devorada. Como Cunhambebe explicou ao alemão Staden, que estava estupefato ao vê-lo comer carne humana: “eu sou uma onça!” Por isso também os xamãs, ou caraíbas, não podiam ser mortos no ritual antropofágico, já que se transformavam em onças. Não existia nada de propriamente “maligno” na onça, segundo as crenças tupinambás. Ela era até o ideal a ser seguido. Era melhor evitar o fim do mundo, mas só pra dar tempo de se tornar onça, matador e devorador de inimigos.

 

Obviamente, nada disso tem a ver com o cristianismo, o que torna a conclusão do texto puro nonsense. Se comparar Tupã a Thor, e Monan a Odin, já é, digamos, complicado; imagina pensar que a via tupinambá para a Terra sem Males é similar a de um cristão, que por princípio tem de renunciar à vingança e “perdoar setenta vezes sete”. Enfim, o texto é um amontoado de equívocos com o único propósito de dizer, “ei, não gostamos de vocês!

 

Mas já que a brincadeira é esta, aqui vai uma batata quente: O caminho para a Terra sem Males implicava em atravessar o Oceano [como fez Sumé] rumo ao Oeste [para além das Altas Montanhas]. Bem diferente do que diz Dugin, afinal.  Ou seja, se os cristãos não tem nada a ver com estas comparações descabidas, imagina unir os supostamente nordicistas duginianos, que consideram em sua geografia sagrada o Ocidente um infra-mundo, com tribos que estavam doidas para rumar pro Oeste e pros sertões, e atravessar o Oceano.

 

Comparações estruturais entre mitologias são assunto um tanto complexo. Ainda mais quando se trata de uma como a tupinambá, sobre a qual há muitas lacunas. [Muito do que se sabe sobre ela são reinterpretações e estereótipos cristãos, ou reatualizações que os próprios indígenas faziam já sob contato e presença dos europeus e depois dos brasileiros]. Mas uma regra é clara: não vale forçar a barra e fingir saber aquilo que não sabe.

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[1] Digo "fim do mundo", mas tratou-se sempre de fim dos homens. Por isso também, a perseguição da onça [uma estrela e constelaçào] à Lua e a seu meio irmão tampouco é um "mito escatológico" comparável a Ragnarok ou ao Apocalipse cristão 

quarta-feira, 20 de julho de 2022

A História da Dissidência Tradicionalista no Brasil, Parte X: A Era dos Evolianos V -- o V Encontro Nacional Evoliano

 “Apontava-me o amigo que, tal como antes, a degradação literalista havia produzido o contexto farisaico na Tradição judaica que repelira Cristo, agora este tegumeno intelectual faria dos cristãos os novos fariseus, como signatários da “epifania que se despedia”. Obtemperava F. Soibelman que o vazio de realização que eu sentia não era propriamente meu, mas “rebento da miséria espiritual do tempo presente, na qual o sagrado cadáver do cristianismo é ainda revolvido pelos iludidos que julgam que ainda é possível a Europa, sem saber que este é um continente superado, cuja história finda com o próprio cristianismo”.

Rodrigo S. [?] ou F. Soibelman

Dídimo Matos, Alain Soral e Alexander Dugin, tríade fundamental daquele que pode ser considerado o mais importante e impactante evento da Era dos Evolianos. É possível ver Maurício Oltramari atrás de Dídimo.

Entre 2013 e 2016, o Brasil foi sacudido por maciços protestos de rua, cujas reivindicações mudaram ao longo do período. Vou tratar deles no próximo texto, já que impactaram diferentes gerações de dissidentes e abriram fissuras no establishment midiático e político-partidário que tornaram ainda mais viável a divulgação de novas ideias e paradigmas. A explosão popular, em que muitos veem uma “disruptura”, ainda não havia se desenrolado por inteiro em meados de 2014, quando os Evolianos atingem seu ápice com um Encontro unificado realizado na maior metrópole do Brasil, mas contribuíram para o ambiente fervilhante do V Nacional. [1]

É possível dizer o mesmo do cenário internacional, em que as Primaveras Árabes foram sucedidas por notícias da espionagem maciça em cima do governo de Dilma Roussef, e finalmente pelo Euromaidan e a Guerra no Donbass, apontando para um acirramento dos conflitos geopolíticos que afetavam diretamente as propostas  discutidas no seio da Dissidência e, em particular, nos Evolianos. Todo este arcabouço de transformações acelerou o amadurecimento das iniciativas do Tradicionalismo Político. Apesar de fulcrais, deixo estes assuntos para o próximo capítulo da narrativa. Esta Parte faz um recorte sobre o famoso evento unificado realizado em São Paulo em setembro de 2014.

Como tenho exposto, a Dissidência Tradicionalista não nasce com uma tendência ideológica unívoca. Havia conservadores, como Ricardo Almeida [que não participou dos Encontros] e o próprio Dídimo Matos, que se definiu em live [clique no link] recente no canal do Youtube da Frente Sol da Pátria como “conservador de direita, monarquista e para o alto!” E aqueles mais ligados ao pensamento de Olavo de Carvalho, como Ranquetat e Marcos Vinícius Monteiro. Por outro lado, os mesmos grupos contavam com personagens de tendências mais fascistas [no jargão duginiano], sendo exemplo Victor Emmanuel Barbuy [ex-líder da Frente Integralista Brasileira]. Outros ainda se ligavam ao pensamento Tradicionalista sem traduzi-lo em termos políticos, caso de Mateus Soares de Azevedo e Malê Ibrahim. E também aqueles de sensibilidades mais socialistas e/ou trabalhistas, como Ewerton Alípio e Luiz Campos.


Marcílio Diniz, Rafael Ayres, André Gaspar, Alexander Dugin, Dídimo Matos e Ewerton Alípio. Reunião de intelectuais.

Esta diversidade permaneceu com o passar dos anos até mesmo no interior de determinadas organizações dissidentes. No censo realizado para o II Congresso Nacional da Nova Resistência, em fins de 2021, 33% dos membros declararam que sua militância estava, originalmente, ligada à “segunda teoria política” [conceito guarda chuva duginiano que inclui socialistas de forma geral] contra 40% que se diziam originalmente de “terceira teoria política” [que faz referência de modo genérico a nacionalistas e fascistas na terminologia da QTP].[2] De forma mais detalhada, 21% diziam ter sido marxistas-leninistas antes de se juntarem à organização, contra 18% que declaravam ter sido ideologicamente fascistas em um sentido estrito. [3] Ou seja, é falso alegar que um Tradicionalista político seja necessariamente desta ou daquela vertente ideológica. Na verdade, podemos estar diante de um conservador ou de um socialista; de um nacionalista ou de um separatista anti-Brasil; de um trabalhista ou de um fascista.


A palestra de Mateus Soares de Azevedo focava no caráter sagrado do Eros

Em muitos sentidos, o V Nacional sintetiza a Era Evoliana.  Amalgamava diversas tendências que se uniam em prol da discussão e propagação do Tradicionalismo sem que houvesse qualquer compromisso político ou ideológico entre seus participantes. O modelo adotado era o acadêmico, com enorme presença de professores com sólida carreira em universidades, vínculos com instituições de ensino superior, e abertura para comunicações aprovadas pelos organizadores. Ainda assim, os temas abordados divergiam um tanto do que seria comum no dia a dia das graduações e pós-graduações. Em nenhum outro lugar era possível estudar propostas complexas de Relações Internacionais e Geopolítica, ao lado de palestras sobre a natureza sagrada do Eros, a angelologia de correntes heterodoxas do Islã, e até mesmo revisionismo do Holocausto com carimbo de aprovação da USP.

O Encontro se tornou objeto de discussão acalorada em Assembleias Legislativas dos dois estados mais "midiáticos" do país, São Paulo e Rio de Janeiro. Ma as páginas policiais que coloriram aquela edição mergulham antes em ressentimentos forjados em fóruns virtuais do que em intricadas articulações políticas surgidas de agências internacionais, como alguns especularam. 

Aliás, um dos contrastes do evento teve expressão perfeita em dois participantes que, cada um a seu modo, contribuíram para o tom e para a fama do V Nacional, e para seus desdobramentos mais relevantes. O primeiro, o francês Alain Soral, auto-declarado sociólogo e marxista, de retórica fortemente antissionista, que alguns denunciam como antissemita [denúncia que o levou à prisão em 2019], e que costumava apoiar movimentos considerados neofascistas ou nacional populistas, como o Front National [hoje Rassemblement National], de Marine Le Pen. [4] O segundo, a presença algo desconcertante da cantora Flávia Virgínia, filha de Djavan , judia convertida e braço direito de Dugin durante todo o Encontro

Victor Emanuel Barbuy era a figura integralista do V Nacional.

  


10. 1 Linhas de força

 

O V Nacional entrecruzou forças de enorme repercussão na vida posterior da Dissidência. Parte da militância que nos anos que se seguiram criou movimentos atuantes nas ruas e no sistema partidário, tem o cenário de "disruptura" nacional e internacional, que mencionei no início, e o Evoliano de São Paulo como principais pontos de referência. Mas para a "velha guarda", o evento também foi um marco. Maurício Oltramari, um dos pioneiros do Tradicionalismo político, e que esteve presente, algumas vezes como organizador direto, nos demais eventos da Era dos Evolianos, com exceção daqueles do Nordeste, avalia dessa maneira a relevância do Encontro de 2014

Eu diria que foi um evento importantíssimo para a Dissidência como um todo. Provavelmente, foi o maior Evoliano, pelo menos em termos de público. Foi o Evoliano em que mais pessoas compareceram. E tivemos Soral, o Mateus Soares, muitos professores. O Uriel também palestrando. O Andrea Virga, da Itália. E foi ali que se encontraram muitas pessoas que só se conheciam pela Internet. Até hoje as pessoas comentam que se viram pela primeira no Evoliano de 2014. Foi também o momento em que alguns começaram a reatar contato com pessoas que não conversavam há tempos. Começaram a se adicionar novamente em redes, e formar grupos mais fortes. Havia ali também a militância de um grupo dissidente de mulheres, que de certa maneira tinha uma visão mais Tradicionalista e oposta ao feminismo. Havia uma pessoa que foi depois para o Donbass, o Lusvarghi. Foi um momento histórico, de muitas pessoas que continuam até hoje envolvidas com a Dissidência Tradicionalista.


 

Andrea Virga, Alexander Dugin e Dídimo Matos conversam sobre intricados temas geopolíticos.

A localização, na maior e mais rica metrópole da América Latina, e certa co-incidência permitiram que alguns nomes de extrema relevância na história deste campo político fossem pela primeira vez a um Evoliano. Ewerton Alípio estava na cidade por conta de uma obrigação como supervisor do Pibid: “Fui representar a escola em que leciono. Era um projeto, PIBID interdisciplinar. Em 2014, eu fui pela CAPES, a CAPES bancou minha ida e de outros colegas, pra um congresso de educação na USP. E isso me permitiu participar do Evoliano em São Paulo. Porque coincidiu com este evento da USP.” Uriel Araujo, apresentado na Parte IV, fundador e moderador da Olavo de Carvalho do B, e portanto um dos pivôs da formação da Dissidência, também visitava Sampa na ocasião, e teve a oportunidade palestrar no evento. A ida de Uriel teve outras consequências que comento mais à frente:

Por acaso eu estava em São Paulo, com minha ex-mulher, que na época era minha esposa, visitando a família dela. E é por isso que a gente foi no Encontro Evoliano de 2014. E era um encontro de geopolítica...não sei o quê...Uversita...tinha algum instituto aí, e era evoliano. Então, teve palestra do André Martin, geopolítico da USP e consultor do Itamaraty...Teve o Mateus Soares de Azevedo, que tem livros publicados, tanto acadêmicos quanto perenialistas, né? Eu fiz uma breve comunicação ali, alguma coisa sobre literatura, sobre arquétipos na literatura ou qualquer coisa do tipo. 


Uriel Araujo em sua comunicação durante o evento. Sua ida circunstancial ao Evoliano abriu novos caminhos de atuação para a Dissidência

Caio Rossi, mais um "dinossauro" dos debates esotéricos nos núcleos associado a Olavo de Carvalho e à Dubê, também era novidade em um Encontro. Sua comunicação, inclusive, foi daquelas que impediam que o evento pudesse ser confundido com uma reunião mainstream de intelectuais para debater os temas do dia à luz dos consensos vigentes. Poucas semanas antes, ele concluíra que os autores Perenialistas reproduziam, na verdade, uma ‘heterodoxia’ islâmica chamada Ismailismo. Reformulando toda a visão que defendera até então, passou a sustentar a incompatibilidade da abordagem Tradicionalista com o cristianismo. À época, discutiu com Giuliano Morais e Alex Sugamosto em tópicos de Rodolfo Souza, alegando que o shivaísmo e o shaktismo deviam ser descritos como cultos satânicos, caso se adotasse a visão dos Padres da Igreja.  A palestra de Caio expunha a angelologia de Andrei Plesu, esoterista romeno vinculado ao xiismo e ao próprio Olavo de Carvalho. Segundo a linha de raciocínio de Rossi, exposta mais tarde em lives [clique no link] no Youtube em canais dos irmãos Velasco, a “hierogamia” com poderes angélicos do esoterismo ismailita era, no fundo, forma de possessão demoníaca no sentido próprio do termo [pacto com um daimon]. Ideias sui generis para um Encontro Evoliano, e que demonstram a imensa abertura dos organizadores, reforçando observação que fiz em postagens anteriores: os eventos eram, em larga escala, a realização de um ideal acadêmico, de debates em alto nível mas sem tabus.


Caio Rossi, Ewerton Alípio e Carlos Matos. Caminhos diferentes nos estudos de Tradicionalismo

Outro personagem característico era Rafael Lusvarghi, cujo nome ficou conhecido nacionalmente quando detido meses antes durante protestos contrários à realização da Copa do Mundo. Poucos imaginavam que aquela prisão seria a menos importante na construção de sua fama e, digamos, de seu "mito". Mais tarde, seria um dos brasileiros que viajaria para lutar na guerra do Donbass ao lado das Repúblicas Separatistas de Donetsk e Lugansk, caso que analiso em textos futuros por ter servido de objeto de propaganda para alguns movimentos dissidentes. Para certas tendências da geração dissidente que nasceu a partir dali, Lusvarghi era uma espécie de herói, um combatente naquela que era a "Guerra Espanhola" do século XXI. Sua condenação posterior por tráfico de drogas abalou o mito e reduziu a propaganda em torno dele. Mas este desdobramento ainda estava distante naquele período. [5]

O público era bastante diversificado, mas era fácil perceber os jovens com estética de anarquistas urbanos. Alguns se ligariam a movimentos ‘identitários regionalistas’ com algum nível de tolerância, ou até ampla adesão, a uma agenda separatista, como Raphael Machado e Nogueira, dois nomes que se tornariam mais conhecidos dentro da Dissidência a partir de 2014.


Carlos Matos, André Luiz dos Reis e Uriel Araujo

Na turma dos palestrantes, o [quase] sempre presente Mateus Soares de Azevedo, mas também Victor Emanuel Barbuy – que fora membro da Dubê e liderava uma organização integralista. Ocorreram comunicações dos professores Rafael Ayres e Marcílio Diniz, já citados em outras Partes; Tito Lívio Barcellos Pereira e Rafael Regiani eram outros nomes da Academia. Um tom de polêmica cercou a apresentação de Antônio Caleari, que defendeu anos antes na USP o revisionismo do Holocausto, recebendo indicação para o prêmio Santander de jovem jurista. O italiano Andrea Virga integrou também o rol de palestrantes sobre temas geopolíticos. As maiores estrelas eram, no entanto, o professor da USP André Martin, o sociólogo e filósofo russo Aleksander Dugin, além do francês Alain Soral.

  

É possível ver na foto Andrea Virga, Maurício Oltramari, André Ortega, Raphael Machado, Uriel Araujo, Alain Soral e Flávia Virgínia, dentre outros



10.2  Cerco a Alain Soral

 

A vinda de Soral para o Brasil causou grande expectativa na Dissidência e foi, sem dúvida alguma, a maior atração do Encontro. Dídimo se refere assim ao francês:

Soral é uma figura interessante, porque ele não tem formação acadêmica, e ele se considera um sociólogo autodidata, né? E ele faz um grande intelectual na França, parecido, em suas devidas proporções, com o Olavo no Brasil. O Olavo não tinha formação filosófica, mas se dizia filósofo, e era realmente. E o Soral se fazia isso do ponto de vista sociológico. E a Academia não o aceita, pelo contrário, o condena. Eu estive com um sociólogo francês aqui no Brasil, e citei o nome do Soral, e o sujeito ficou escandalizado. “Isso não é sociologia”, dizia ele, mais ou menos como a galera da Academia fazia com o Olavo no Brasil. Mas o Soral é essa grande figura, e tinha acabado de escrever um livro fantástico, “Compreender o Império”, e foi sobre isso que ele falou no Brasil. Com uma visão antiglobalista.”

 


Nas fotos: Uriel Araujo, Rafael Lusvarghi, André Luiz dos Reis, Lívia dos Reis, Andrea Virga, Nogueira, dentre outras presenças


Uma das lendas que forjaram a aura do evento diz respeito à tentativa sionista de barrar a entrada de Soral no Brasil e impedir a realização do Evoliano. Aparentemente, por trás do quiprocó se encontravam a Confederação Israelita do Brasil [Conib] e alguns parlamentares, como o ex-deputado federal do Rio de Janeiro e delegado aposentado de polícia Marcelo Itagiba, denunciado na CPI das milícias de 2008 por Marcelo Freixo; o vereador paulistano Floriano Pesaro; e o ex-deputado estadual de São Paulo Fernando Capez -- sabe-se lá com quais conexões internacionais, alguns poderiam pensar! A Polícia Federal de fato bateu na porta do Encontro e conversou com Dídimo Matos. Embora a  confusão flagrasse de fato um sionismo radical que se tornava crescente no Brasil -- mais uma consequência da "americanização" do debate público no nosso país --, as motivações mais diretas eram bastante locais, e tem origem em um desentendimento entre esoteristas em um fórum do Yahoo Grupos chamado Acrópolis, já citado na Parte IV.


A palestra de Alain Soral foi o momento de maior público e "eletricidade" do Congresso. A expectativa aumentou por toda a pendenga envolvendo sua presença no Brasil.



Eu e Dídimo frequentávamos este grupo, o maior de filosofia do Yahoo, desde 2005. Em fins de 2007, comecei a defender o Tradicionalismo Político naquele espaço, que, como em todos os cantos de nossa sociedade aparentemente secularizada, contava com pessoas interessadas em espiritualidade, religião e esoterismo. Formei um grupo de MSN para conversar sobre estes tópicos, e um dos partícipes era um dos membros mais ativos da Acrópolis, o advogado carioca Felix Soibelman, detentor dos direitos da Enciclopédia Soibelman, e que usava diversos fakes então [dentre eles o de Victor Molina]. Felix era adepto de uma organização esotericista chamada Grande Fraternidade Universal [GFU], que trata Serge Raynaud de la Ferriére, seu fundador, como o Avatar da Era de Aquário.





Soibelman foi mais uma "contribuição", dessa vez negativa, do fórum Acrópolis para a História da Dissidência. No fundo, sua oposição ao Tradicionalismo era a procura por uma identidade e um lugar de atuação pública, e se mesclava com ressentimentos criados em redes virtuais. A "perseguição sionista" ao Encontro tinha raízes bem mais locais e esotéricas do que muitos poderiam imaginar



Susas crenças pareciam ter pontos de contato com os assuntos do grupo, mas ele logo se desentenderia com as teses do Tradicionalismo, cujos autores fazem uma série de contestações ao “novo espiritualismo” e ao “ocultismo” oitocentista. Guénon, Evola e outros tem obras criticando o “Teosofismo”, o “Espiritismo”, e as “Máscaras” dos movimentos new agers. Longas trocas de e-mails se seguiam com discordâncias em praticamente todos os temas, que logo derraparam para o sarcasmo e as acusações pessoais. Uma das ofensas preferidas de Soibelman era a de antissemita, que distribuía a torto e a direito, incluindo na acusação o cristianismo e o Islã inteiros, que para eles eram destituídos de qualquer valor propriamente iniciático. Segundo ele, o Tradicionalismo nada mais era do que um intelectualismo vazio voltado para manter os “cadáveres insepultos” de religiões pretéritas e impedir a “intuição coletiva” que levaria o mundo a reconhecer a grandeza de Serge Raynaud de la Ferriére, uma posição que, apesar dos circunlóquios, repetia vaticínio comum do ocultismo oitocentista contra as religiões do passado em nome da ideia de progresso e certo evolucionismo.



Tony Pedroza, um conhecido meu que era também cristão ortodoxo e partícipe da comunidade do Orkut Do Mau Gosto da Matéria, também recebeu o arquivo de Rodrigo S. contando sobre sua "conversão" à GFU. O detalhe é que Pedroza era fortemente crítico a Dugin, Evola e ao Tradicionalismo, mas tampouco levava a sério as acusações de Soibelman. O documento repetia os discursos, jargões, conceitos e retórica de Félix. Anos depois, Rodrigo S. pediu para entrar na Nova Resistência. O caso demonstra a obsessão do advogado carioca com o Tradicionalismo, e as motivações esotericistas de sua militância: busca desenfreada por nos mostrar o valor da GFU




O relato parece jocoso, mas o fato é que, entre idas e vindas de nossas relações virtuais, que passaram por momentos mais amenos e outros de franco atrito, Soibelman se declarou "inimigo dos autores perenialistas". Era como se descobrisse um sentido para sua atuação pública, até então desperdiçada na vã tentativa de se opor à Filosofia Analítica, ‘responsabilizando-a’ pela perda da hermenêutica capaz de restaurar a mística da linguagem [Dídimo Matos estudava Filosofia Analítica, o que gerou desde o início uma certa indisposição de Soibelman na lista de e-mails. Curiosamente, depois dos desentendimentos mais “esotéricos”, quando revelou sua filiação à GFU, Felix também passaria a considerar Heidegger nada mais que um “nazista”]. A oposição ao Tradicionalismo permitiu que ele encontrasse uma esfera de ação, que até então procurara em vão. Como muitos esoteristas, ele parecia em busca de identidade e um senso de missão. [6]

E então se tornou aquilo que poderíamos chamar de um stalker. Frequentava insistentemente tópicos de Rodolfo Souza no Facebook, "delatava" a professores e orientadores as opiniões de seus interlocutores que ele considerava insuportáveis, e suas invectivas acabaram por se tornar notórias na já citada comunidade Do Mau Gosto da Matéria. Mas Felix não estava brincando, como demonstrou no V Evoliano. Foi ele quem mobilizou vários contatos no Rio de Janeiro e em São Paulo procurando impedir a entrada de Soral no Brasil e a realização do evento. Conta Dídimo:

 

A pressão de um sionismo cada vez mais virulento na sociedade brasileira era real, mas a Conib tomou conhecimento do Evoliano e o denunciou por questões bem diferentes da política cotidiana

Isso foi uma loucura. (risos) Tu conheces a figura, né? Soibelman! Antigamente conhecido como Molina, que eu particularmente eu chamava de “bobolina”. Um sujeito que eu nunca considerei muito inteligente. Não era burro, tinha muita informação e tal. Mas ele é judeu étnico, não deve ser judeu religioso...E ele é um desses militantes sionistas enlouquecidos, e aí ouviu falar que traríamos Soral ao Brasil no Encontro Evoliano. Já encontrou lá no Evola elementos que o Evola chamava de “racismo espiritual”. E aí já disse que era todo mundo racista. Mobilizou um ex-deputado federal que era delegado de policia federal também. [...] Esta figura, ele é formado em Direito, e ele fez toda essa mobilização. Tentou barrar na Justiça e não conseguiu, não conseguiu nem levantar os elementos. Tentou impedir que o Soral pousasse no Brasil, queria prender o sujeito de qualquer maneira. Porque o Soral fazia um programa na França chamado “o antissemita da semana”. Então, ele reunia autores e intelectuais que desciam o cacete nos judeus. E citava os trechos dos livros, fazia uma análise, né? E aí passou a ser acusado de antissemitismo, foi preso, teve livro proibido. E nós trouxemos ao Brasil. [...] Quando o Felix soube...ele já era contra o Evoliano só por causa do Evola. Aí soube do Soral, ficou louco, subiu nas tamancas e fez isto. Para além dessa mobilização do delegado federal e ex-deputado do Rio de Janeiro, ele contatou duas figuras (suspiros) inomináveis de São Paulo. Um era vereador, o outro era deputado estadual. Esse deputado foi preso posteriormente, acho que ainda está preso por envolvimento em quadrilhas de desvio de dinheiro, de corrupção etc. E esses sujeitos mobilizaram a polícia contra “o evento dos nazistas, que queriam exterminar os judeus brasileiros, uns loucos!” E aí a polícia chegou lá e deu de cara comigo, com outros professores, olhou os livros, conversou sobre o que era o evento...inclusive tinha pessoas lá fora esperando pra saber o que a polícia ia fazer, se ia fechar o congresso! E aí o policial falou, “Moço, é aqui mesmo o tal evento nazista? Porque parece um evento acadêmico sério, com pessoas compromissadas em estudar, tem livros, professores, doutores, intelectuais conhecidos. Tem gente aqui de todo tipo, como esse povo aqui é nazista? Não estou entendendo”. Mas insistiram, teve inquérito, tive de ir lá depor. Mas não impediram a realização do evento, que ocorreu normalmente. Depois o inquérito foi arquivado. O sujeito inclusive perguntou, “vocês não querem processar esse pessoal?”. Não, deixa isso pra lá, deixa esse bando de doido ficar mais doido ainda".


Live de Felix Soibelman e Rafael Daher em março deste ano discutindo as causas da Guerra da Ucrânia. Em comentários no canal, Felix defendeu a presença de Daher por ele ter amadurecido e "se tornado constante no Judaísmo". Recentemente, surgiram notícias da conversão de Daher ao catolicismo-romano.

 

Em 2017, Soibelman levou um conhecido dos tempos de Formspring para a GFU, e aparentemente o fez escrever um “testemunho” sobre como havia encontrado a “luz”. O relato foi enviado para mim e outros conhecidos de redes sociais, e tinha parágrafos inteiros com a repetição de jargões típicos da retórica do advogado. Mais significativa ainda foi sua iniciativa de formar um movimento de judeus bolsonaristas no Rio de Janeiro, para apoiar a candidatura e o governo do atual Presidente. Também se manifestou publicamente contra a realização de uma palestra minha em um centro xiita do Rio de Janeiro, só relaxando depois de notar que não se tratava de nenhuma "célula terrorista" ou notar os pequenos números dos envolvidos no centro.

Eis que a verdadeira origem da pressão política contra o Encontro era uma discordância de teor "ocultista", que deu ao combativo advogado um sentido de atuação política-religiosa a partir da descoberta de uma identidade à qual ele dava pouquíssima importância até então. Não era trajetória incomum em um país em que o sionismo se tornava uma agenda cada vez mais explícita, inclusive em igrejas cristãs. O próprio Rafael Daher, figura de imensa relevância para a emergência dos debates Tradicionalistas, e ele próprio partícipe de Evolianos, abraçou publicamente o Judaísmo nos anos seguintes e, inclusive, se aproximou de Soibelman. [No caso de Daher, se tratava também de uma de suas imensas viradas de perspectiva, que se tornaram notórias nos meios dissidentes. Recentemente, surgiram notícias de que ele voltou a se converter ao Cristianismo, mas nesse caso ao Catolicismo radtrad].

Mas este caminho não era uma necessidade inscrita na natureza das coisas. Afinal, o mesmo Evoliano que Félix tentou impedir foi marcado decisivamente por uma personagem associada tanto ao Judaísmo quanto a Dugin.

 


10.3  Flávia Virgínia

 

Embora continue promovendo Encontros Tradicionais anualmente em diferentes estados do Nordeste, naqueles tempos Dídimo Matos sentia que era hora de se afastar de eventos da magnitude dos Evolianos: “Eu estava no auge do doutorado. Com obrigações profissionais, e aí eu já tinha, de determinado modo, cumprido o meu papel na elaboração e realização dos eventos. Então, era natural, até pra ver se despontavam outras figuras e lideranças pra ocupar o espaço e organizar as atividades. Foram relações mais profissionais e acadêmicas que me chamaram, e a evolução natural das coisas.”


O espaço que ele abriu foi ocupado de forma um tanto inesperada. A princípio, não estava claro como Flávia chegou aos círculos dissidentes. Segundo Dídimo, ela não tinha conhecimento anterior da obra de Dugin:

A Flávia apareceu nesse evento de São Paulo. Como o Dugin gosta muito de música brasileira e ela foi dizer pra ele que era filha do Djavan, ele ficou bastante interessado. E eles estreitaram contatos também a partir disso. Aí ela, com a história do CEM [Centro de Estudos Multipolares]...Que não era algo que ela fazia antes. Tudo isso...ela apareceu lá no evento e todos os contatos foram feitos depois deste evento. A gente usou um modelo de evento acadêmico, em que além das Palestras, as pessoas podiam escrever comunicações. Elas tinham um tempo pra apresentar e abrir pra debates, cerca de quinze a vinte minutos. Ela fez uma apresentação dessas. Ela fez uma, o Victor Emmanuel da FIB fez outra, eu fiz uma, o Rafael da USP fez outra...Então, teve várias comunicações, ela fez uma dessas. E aí ela aproveitou pra fazer os contatos lá com o Dugin. Ela conheceu o trabalho do Dugin...ela diz que já conhecia antes, mas o que ela utilizou exclusivamente foram os Ensaios Eurasianos, que na época era um dos poucos livros que tinha...e ela estava lendo à época o Quarta Teoria Política. Então, tinha lido esse anterior...e lá no evento ela comprou os demais livros. Então, ela já tinha contato com o Eurasianismo, ensaios selecionados, e o Quarta Teoria Política. Os demais livros ela comprou lá.”

Flávia Virgínia ao lado de Dugin. Ela conheceu o russo no evento, em que realizou uma comunicação sobre o caráter tradicional do Judaísmo. Alguns duvidam do conhecimento de Flávia sobre a obra do russo antes de 2014, mas ela saiu de lá com os contatos de Dugin e o projeto do futuro CEM

 

A versão da própria Flávia era um pouco diferente. Dizia que estudava a obra do russo na língua original desde 2012. Seja como for, em entrevista publicada no site Brasil Multipolar em 2015 [clique no link], ela corrobora que seu contato inicial com o geopolítico se deu em setembro de 2014, em São Paulo [7]: 


"Pude ver que um dos maiores problemas é que as pessoas têm dificuldade de seguir o pensamento do professor Dugin até o final, porque ele é muito profundo e também vasto, usa informações de várias épocas e lugares, combinando tudo para formar um corpo teórico sólido, mas difícil de acompanhar. Se observarmos bem, a maior parte das críticas ao trabalho dele vem de pessoas que não o leram, mas apenas tiveram contato com os seus detratores. Ao perceber isso, eu vi que era preciso uma aproximação mais cuidadosa e achei melhor esperar um bom momento, que ocorreu em Setembro de 2014, por ocasião do Encontro Evoliano (organizado pelo Dídimo Matos, também estudante do pensamento duguiniano, doutorando em Geopolítica pela USP com orientação do Professor André Martin, chefe do departamento de Geografia). Nesta ocasião, eu fiz uma comunicação (O Papel do Judaísmo na Formação do Mundo Multipolar) no mesmo dia do Professor Dugin e do Professor André (curiosamente, 11 de Setembro), então tive oportunidade de conversar um pouco com ele (Dugin) e mostrar minhas ideias sobre a Quarta Teoria Política e outras coisas que venho desenvolvendo. A partir daí, mantivemos contato."

 A comunicação de Flávia causou alguma impressão. Em um evento marcado por polêmicas em torno do antissemitismo e da negação do Holocausto, sua fala defendia o papel do Judaísmo no mundo multipolar e o caráter Tradicional da fé judaica. Em meio à palestra, lançou quase que um desafio a uma parte do público, dizendo saber que ali se encontravam algumas pessoas que não toleravam o Judaísmo. 

No fim do Evoliano, Flávia se dirigiu a Uriel Araujo, que, assim como o próprio Dugin, ela conhecera no evento. E o convidou para participar de um grupo de estudos que viria a ser o CEM, conversas que levariam Uriel a ter a ideia de realizar uma nova edição do Encontro, em 2015, e receber a permissão e os contatos diretamente de Dídimo. A tocha passava para as mãos de Flávia, e ao mesmo tempo colocava mais uma vez no centro do jogo o fundador do fórum crucial para a origem da Dissidência Tradicionalista e da disseminação das ideias evolianas e duginianas. Uriel, por sua vez, entraria em contato com um pequeno círculo de amigos para ajudar na organização do futuro Congresso. Eu e Alex Sugamosto fazíamos parte deste núcleo. A nova edição do Evoliano não aconteceu, por motivos que vou explicitar em outra oportunidade, mas começava um novo período da nossa história, em que o Centro de Estudos Multipolares, liderado por Flávia Virgínia, assumiria por algum tempo o papel central como eixo de interação dos diversos grupos de Tradicionalismo Político.

 

 

 meu olhar....

 

Com mais folga nos apertos financeiros que me impediram de ir aos Evolianos anteriores, eu estava tentado a ir para São Paulo. Mas não tomei a decisão até a véspera do evento, quando recebi uma mensagem carinhosa de Dídimo. Olhei para Lívia e ela topou na hora. Na mesma noite parti para a Rodoviária Novo Rio e embarquei de madrugada para a terra da garoa, que costumava ser alvo de comentários ácidos e nem sempre felizes em minhas postagens em redes sociais.


Dídimo Matos ao lado de Alain Soral em São Paulo

Uma vez em Sampa, fui direto para o evento, no bairro de Bela Vista, antes mesmo do check-in no hotel. Quando me viu chegar, Dídimo se apressou gentilmente em me receber. Me contou sobre os problemas armados por Soibelman. Me perguntou se eu gostaria de “fazer uma pergunta ao professor”, se referindo a Dugin. Introvertido e antissocial, respondi que não. 

Na ocasião, conheci pessoalmente Ewerton Alípio, que me contou ter se livrado de uma confusão ideológica que o abatera recentemente. Raphael Machado veio falar comigo, mas a princípio não o reconheci. Ele se apresentou, apertou minha mão e me fez um elogio, provavelmente genérico. Mais tarde, notei que ele sentou ao lado de Dugin em um corredor ao lado do salão principal, e o entrevistou para um blog. E foi assim que eu soube da existência do Legio Victrix.

Assisti com muita curiosidade a palestra de Caio Rossi, com quem fiz questão de trocar palavras pessoalmente. Eu, Uriel e nossas respectivas esposas quase almoçamos juntos. Também tive boas conversas com Carlos Matos, conhecido do Formspring e que gostava de acompanhar atentamente as posições e respostas de Giuliano Morais. A impressionante beleza de Flávia Virgínia era hipnotizante, e gerava burburinhos por onde passava. Era também notável a presença de jovens com uma estética fascista.


Jovens fazendo a Quenelle, gesto que muitos associam ao antissemitismo francês. Não se sabe ao certo quem o introduziu no Brasil, embora alguns se apresentem como detentores dos supostos "méritos". De todo modo, mostrava o impacto da vinda de Soral ao Brasil em alguns grupos de jovens. Na foto, há partícipes da futura LNT [Legião Nacional Trabalhista] paulista, que tinha uma natureza algo distinta de sua versão carioca

Recordo de Misael T. furibundo no espaço exterior ao salão das palestras. Andava de um lado para outro bufando, dizendo que “aquela mulher”, como se referia a Flávia, havia contradito o cerne de sua palestra. Parece que o desenvolto “desafio” de Flávia atingira um nervo. Misael, aliás, tinha um olho roxo. Soube, ao longo do dia, que acontecera uma briga na noite anterior, o que não deixou de me espantar. Eu não esperava rixas de rua em um evento Tradicionalista de teor acadêmico. Enfim, Misael e Raphael Machado tiraram algumas satisfações um com o outro, em confronto assistido por pouca gente, dentre eles o jornalista André Ortega, que depois marcaria presença no Donbass. Apesar do machucado no rosto, Misael venceu a briga, um episódio que dificilmente poderia ser descrito como "épico".

As conversas entre Dugin, André Martin e Dídimo Matos no Encontro eram instigantes. Dídimo já oferecia uma alternativa para o modelo “quadripolar” que, na proposta de Dugin, dividiria o mundo em quatro zonas de influência controladas por pólos geoestratégicos do Norte [EUA, União Europeia, Rússia, e Japão ou China], nos deixando sob domínio de uma "Doutrina Monroe" mais restrita: Os professores brasileiros insistiam que o nosso país deveria liderar um quinto pólo meridionalista, adaptação do modelo de André Martin.


Palestra do professor André Martin. Dídimo Matos já tinha a proposta de uma alternativa ao modelo ''quadripolar" de Dugin, que deixava o Brasil sob controle estratégico ianque.

A palestra mais aguardada foi sem dúvida a de Alain Soral. A expectativa de grande parte dos jovens presentes era imensa. A comunicação foi bastante curiosa, e denunciava a existência de uma oligarquia financeira transnacional, que o francês chamava de “parasitas nômades”, uma tese acertada mais repleta de ambiguidades. Gravei a comunicação por inteiro, ainda que de forma bastante amadora, mas depois perdi o backup.

Considerei o Congresso divertido, e Lívia se apaixonou por São Paulo. Na volta para o Rio, não passava pela minha cabeça que ele seria o ponto de virada na história do Tradicionalismo Político. Uma época bem distinta estava para começar. Dugin decidiu montar um think tank no Brasil [8]. E, à parte esta iniciativa, movimentos dissidentes começariam a militar abertamente nas ruas, a formar núcleos nas principais cidades brasileiras, e a realizar propaganda aberta nas redes. 




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[1] Não custa lembrar que o projeto de levar o Evoliano para São Paulo ou Rio de Janeiro já estava colocado desde 2010.

[2] Uso aqui a tipologia de Dugin sobre as "teorias políticas" modernas como forma também de mostrar sua inadequação. O russo chama de "Segunda Teoria" todas as tendências socialistas, principalmente aquelas marcadas mais fortemente pelo marxismo. A "Terceira Teoria" reúne nacionalistas, que na Rússia são associados ao fascismo. Isto quer dizer que, neste sistema de orientações, o nacionalismo latino-americano estaria no mesmo conjunto teórico de nazistas. A classificação de Dugin também oferece poucas respostas para tratar do Juche norte-coreano, da Revolução Iraniana, ou de teocracias islâmicas, realidades políticas bastante anteriores à proposta de uma "Quarta Teoria Política". Após as eleições norte-americanas de 2016, o caráter instrumental, em um sentido estritamente político, da tipologia de Dugin se tornou ainda mais nítido. Segundo o russo, Trump representava um "liberalismo 1.0" com o qual seria possível dialogar na oposição a um "liberalismo 2.0". No fim das contas, a avaliação das ideologias de um país depende, para Dugin, dos interesses russos implicados caso a caso. Assim, é possível para ele defender um feroz anti-racismo ao mesmo tempo que apóia movimentos da alt-right dos EUA, ou ainda ver com bons olhos o candidato do PT ou Bolsonaro, dependendo de sua maior ou menor proximidade com os projetos geoestratégicos russos. Em termos teóricos, toda a tipologia de Dugin se reduz a uma oposição entre o individualismo e o holismo, mas temperada pelas necessidades circunstanciais de seu país.

[3] Os dados apontam a presença crescente de fileiras originalmente socialistas na Nova Resistência mesmo com os esforços do líder da organização em angariar membros em fileiras que ele considerava de TTP, a fim de seguir a suposta ortodoxia duginiana, que percebe a Quarta Teoria como mais próxima do fascismo do que do socialismo. 

[4] Soral é criador do jargão "Esquerda do Trabalho, Direita dos Valores", que faria sucesso na Dissidência brasileira.

[5] Apesar do uso de sua imagem, Lusvarghi nunca participou de fato de alguma organização dissidente brasileira. Ele se tornou um "símbolo" de certas tendências, e uma "bandeira" de alguns movimentos, como pretendo explicar. Mas era antes um aventureiro do que um militante político.

[6] As mágoas de Soibelman não eram destituídas de fundamento. As trocas de acusações miraram a vaidade intelectual do advogado, que tanto frisava, corretamente, que a Iniciação e o Esoterismo não eram fruto do racionalismo, mas se sentia atingido quando desqualificávamos retoricamente sua capacidade de compreensão analítica.

[7] O Brasil Multipolar foi uma pequena iniciativa surgida após o V Nacional, e da qual participei, conforme veremos em textos futuros.

[8] Até 2019, a principal aposta de Dugin no Brasil era em movimentos, grupos e organizações de teor acadêmico.