O contexto parece favorável, já que estamos em meio a um refluxo acentuado da maré woke cuja hegemonia no establishment era uma barreira contra a presença de uma abordagem cristã nos grandes estúdios, que se tornaram um dos cavalos de batalha da esquerda contra os valores considerados formativos do Ocidente. Não fosse a aliança das grandes multinacionais e do sistema partidário com a pretensa revolução woke, o movimento atual teria ocorrido há vinte anos, com Passion of Christ [2004], de Mel Gibson.
Não vou me ater ao ponto de vista cinematográfico. Ainda que tenha qualidades, como a fotografia e Anthony Hopkins no papel de Herodes, o filme é medíocre. O ritmo tem problemas, o texto é fraco, os personagens são, em larga escala, caricaturas ambulantes, a produção deixa a desejar. Mas, assim como no caso de The Chosen, não é esse o lado mais importante, e sim a guerra cultural que se dá em torno da obra. Afinal, não estamos falando exatamente de uma rendição da Netflix ao cristianismo, e sim de uma concessão.
Ainda que D.J. Caruso esteja longe da ousadia de Mel Gibson, progressistas não perderam tempo em criticar Mary por seu suposto conservadorismo. A historiadora Juliana Cavalcanti, por exemplo, criticou o filme em uma live recente [clique para ver] por supostamente reforçar estereótipos de gênero consolidados na Igreja Católica. Ou seja, os acenos dos produtores para os liberais com a justificativa de atrair ''jovens'' não comovem a historiadora, que não considera a película feminista o suficiente de modo a servir ao propósito de fazer com que mulheres encontrem espaço na estrutura eclesiástica. Veneração à Mãe de Deus? Para quê se podemos ter uma mulher como ''Bispo"?
Vou adotar a posição francamente contrária: o filme não é tradicionalista o suficiente para que eu possa elogiá-lo como gostaria.
A isca que Caruso lança aos religiosos é o Evangelho de São Tiago, mais conhecido como "Proto-Evangelho de São Tiago", texto atribuído a São Tiago o Justo, chamado de Adelphotheos [Irmão do Senhor] na Tradição Ortodoxa, e descrito em Epístola paulina como um dos três pilares da Igreja de Jerusalém. Os produtores garantem que este Evangelho é a fonte principal da obra, cujo enredo se desenvolve entre os pedidos dos pais de Maria por um filho e a apresentação do Deus Menino no Templo de Jerusalém.
O Proto-Evangelho causa uma série de constrangimentos em certa sensibilidade evangélica contemporânea e também entre os pesquisadores laicos. O consenso é de que cópias já circulavam entre os cristãos em meados do século II [por volta do ano 150], momento em que os quatro evangelhos hoje canônicos ainda se consolidavam entre os cristãos e em que o cânone estava longe de estar fechado [leia Dos Evangelhos, canônicos ou não]. As tradições em torno do texto remontam, portanto, ainda ao primeiro século de existência do Cristianismo, em que os Gloriosos Apóstolos ou seus discípulos mais imediatos ainda estavam vivos.
"As tradições compiladas na obra atribuída a São Tiago compõem, no entanto, a versão oficial na Igreja Ortodoxa. Há consenso de que são antiquíssimas, já que o texto foi escrito entre 110 e 140. Ele é mais uma prova irrefutável que a devoção à Santíssima Virgem Maria e seu status entre os cristãos estava presente nas mesmas gerações que decidiam pela composição do Novo Testamento. É possível provocar ainda mais neste ponto já que, para a pesquisa acadêmica, alguns dos textos que viriam a compor o cânone cristão foram escritas na mesma época que os Evangelhos dos Hebreus [que podiam ser três textos diferentes] e o Proto-Evangelho de São Tiago. Enfim, muitos elementos da Mariologia já eram comuns em comunidades cristãs de forte influência judaica."
Pois bem, essa obra demonstra a importância que a figura da Panagia tinha na Igreja Primitiva. Diferente da fantasia evangélica de que a Mariologia ganhou importância apenas com o abraço do Império Romano à Igreja e a uma suposta ''paganização'' dos cristãos, o Proto-Evangelho é a demonstração cabal de que a Mãe de Cristo era venerada e considerada fundamental desde os primórdios. Se os evangélicos quiserem um dia voltar de fato à "Igreja Primitiva'' e Apostólica, devem retornar, antes de tudo, à Virgem Maria.
A historiadora Juliana Cavalcanti, que foi citada por mim, defende que os temas do Proto-Evangelho tem de ser entendidos como uma resposta aos ataques que judeus e outros pagãos faziam aos cristãos, e cita os debates de Orígenes com Celso e o Talmude. Os exemplos dados pela pesquisadora são ruins já que o Proto-Evangelho é anterior tanto a Celso quanto ao Judaísmo Rabínico. Sua composição não está muito distante da Revolta de Bar Kochba. De todo modo, é verdade que a figura da Mãe de Deus era atacada pelos inimigos e críticos do cristianismo nascente. O que reforça a importância de Maria já nos primórdios da fé cristã, ao ponto do filósofo Celso reproduzir a difamação que muitos judeus faziam contra ela em suas obras de polêmica anti-cristã no último terço do século II.
Mas o texto tampouco é confortável para os católico-romanos. Sua popularidade nos primeiros séculos era tamanha que boa parte de seus ensinamentos está em consonância com ritos, festas e hinos da Igreja Ortodoxa. Mas São Jerônimo tinha muitas reservas quanto a um aspecto particular do texto, o retrato de São José como um idoso viúvo que tinha outros filhos. O Bem Aventurado Bispo de Estridão preferia ver São José como um celibatário, e sua oposição ao texto fez com que ele praticamente sumisse entre os latinos por séculos.
Tamanha era a influência da obra que ela acabou retornando de outra maneira. Três séculos depois começa a circular na Itália o Pseudo-Evangelho de São Mateus [também conhecido como "Evangelho da Natividade de Maria"], apócrifo que copiava o Proto-Evangelho de São Tiago, mas com as modificações que agradavam a São Jerônimo. São José era retratado agora como um jovem solteiro e celibatário, dando margem à composição da Santa Família que marca a espiritualidade católica-romana mas que está ausente da perspectiva ortodoxa, segundo a qual São José não é exatamente ''marido" de Theotokos, mas o escolhido para guardião e protetor da Panagia e de Seu Filho.
Pois bem, isca jogada, o enredo de Timothy Michael Hayes se desvia à vontade de suposta fonte com a intenção de agradar a gregos e troianos. Vemos Maria ainda criança com o coração partido por abandonar os pais. Mais tarde, ela mostra um espírito contestador em relação aos sacerdotes. Um jovem São José se apaixona por Maria quando a vê à beira de um rio, um evento armado pelo Arcanjo Gabriel, que tem seu momento de cupido. Por fim, os próprios pais da Virgem, São Joaquim e Sant'Ana, aceitam dar a mão da filha para São José.
Tópicos importantes, como a desconfiança da comunidade em relação à gravidez de Maria, são tratadas com a sutileza de passos de elefante: multidões fanáticas tentam invadir a casa em que ela vive para apedrejá-la, e São José tem de escutar piadas e zombarias de seus colegas de trabalho. A Virgem dá à luz em meio a dores do parto, o que obviamente foge inteiramente da concepção tradicional cristã, seja ela católica, ortodoxa ou luterana. Por fim, o Rei Herodes é retratado como um paranoico obsessivo fascinado por Maria e que a persegue de modo obstinado. O terceiro ato se concentra na fuga da família, em meio a incêndios, destruição, e muita coragem, quase que numa mistura de thriller e aventura.
Tudo isto foge do misto de simplicidade e sacralidade do Proto-Evangelho de São Tiago, em que São Joaquim e Santa Ana são idosos que não poderiam de forma alguma ter filho se não por intervenção sobrenatural. A Panagia é criada até os três anos em um quarto adaptado como um santuário para que ela não fosse afetada por nada demasiadamente mundano. Sua apresentação ao Templo é uma procissão regida pela felicidade, e não pela dúvida e pela incerteza. A pequena Maria sobe os degraus do Templo, e dança diante do altar de Iahweh. Ela cresce com as mais rigorosas consecuções ascéticas enquanto é alimentada por um anjo.
Nessa perspectiva, o filme é pouquíssimo tradicional e bastante insuficiente para uma sensibilidade cristã. Na verdade, o foco cristão do filme é difuso, deixa a impressão de que não há um verdadeiro arco ou uma mensagem real destinada ao público principal da obra. Se a professora Juliana Cavalcanti deixa transparecer certa decepção porque a película não usa a imagem de Thetokos para defender a ordenação de mulheres ou para pregar uma revolução nos papéis de gênero, os cristãos podemos nos sentir ainda mais insatisfeitos com o temor e tremor dos produtores diante da própria fonte em que dizem se basear.
Ainda aguardamos uma obra contemporânea que faça jus a Toda Santa e Pura Mãe de Deus. Para os demais, o aviso permanece: Ai daquele!
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