sábado, 3 de fevereiro de 2024

As Epístolas na Igreja ''Primitiva'', ou: A Formação do Cânone, parte 2

O quadro abaixo ilustra, de maneira simplificada e algo genérica, as principais discussões sobre as Epístolas no primeiro século da Igreja [30/140] e o processo que as levou ao cânone ao longo do debates dos primeiros séculos da Igreja. 




Nem todas as cartas que circulavam nas comunidades estão contempladas, até porque há obras de São Paulo que se perderam. Além disso, deixei de fora as cartas de Santo Inácio Teóforo [de Antioquia], que apesar de serem fundamentais para entender a formação da Igreja após a destruição do Templo e de serem consideradas autênticas e genuínas tanto pelos escritores cristãos quanto pela historiografia, não foram cogitadas como Escrituras. 


[As cartas de Santo Inácio tem bastante peso nesta discussão porque datam dos anos 110, bem próximas das obras que hoje fazem parte do cânone, e são testemunhas da organização e das crenças da Igreja da segunda metade do século I. O incômodo de protestantes com estas fontes é tão grande -- por elas apontarem uma Igreja que se definia como Católica, que era organizada em tornos de Bispos, que já desenvolvia uma Mariologia etc. -- que muitos tentaram argumentar contra elas, supondo-as falsas ou ilegítimas. Mas o consenso historiográfico é pela autenticidade de pelo menos sete destas epístolas.]


Aqui vão algumas indicações sobre o quadro. A primeira coluna traz o nome pelo qual a obra costuma ser mencionada. Ao lado, a autoria que os escritores cristãos dos séculos II ao V costumavam apontar, e a força com que garantiam essa atribuição. Como se vê, não existia consenso sobre a autoria de alguns destes documentos. Na quarta coluna temos a data que é comumente atribuída pelos cristãos às cartas. A partir da quinta coluna temos a posição majoritária da historiografia tanto quanto a autoria quanto datação. A última coluna aponta o século em que uma epístola em específico passou a fazer parte indiscutível do cânone. As datas são aproximadas e baseadas na posição atualmente majoritária. Há um asterisco no nome de São João Evangelista para indicar que os historiadores tem muitas dúvidas se o autor do Evangelho e das Cartas era o Apóstolo filho de Zebedeu.


Nem todas as Epístolas hoje canônicas eram consensuais nos primeiros séculos. Em alguns casos, tanto a autoria quanto a presença em uma lista de obras 'oficiais' gerava polêmica. A Carta de São Paulo aos Hebreus, a Segunda Epístola de São Pedro, a Epístola de São Tiago o Justo são exemplos de documentos cuja canonicidade só foi definida no século IV. 


Se levarmos em conta a Academia, a questão se complica. Além de também polemizar quanto a autoria de certas cartas, os historiadores estão inclinados a datar algumas delas no primeiro terço do século II, o que as tornariam posteriores às de Santo Inácio Teóforo [de Antioquia]. Conforme indicado, havia também epístolas consideradas autênticas [como as de São Clemente de Roma] e que só foram decididamente retiradas do Novo Testamento em uma época tardia.


As Cartas de São Paulo foram o primeiros documentos a ganhar autoridade entre os cristãos. Apesar de direcionadas a uma dada comunidade [ou pessoa], havia orientação para que fossem lidas publicamente em todas as Igrejas. Outras Epístolas deste período revelam conhecimento dos escritos de São Paulo, e algumas fazem citações ou aludem a elas de maneira bastante direta, como é o caso da Primeira Epístola de São Clemente de Roma, que cita passagens de Hebreus, Romanos e da Primeira a Coríntios. E também faz citações inequívocas da Primeira Epístola de São Pedro e da Epístola de São Tiago o Justo, revelando que também estas tinham autoridade crescente em certas comunidades.


Não se deve, no entanto, exagerar o tamanho desse status. Ainda não havia sinais de que os cristãos considerassem estes documentos como ''Escritura Sagrada". A Didaché, à qual voltarei na continuidade desta série de postagens, e que é datada do último terço do século I, não demonstra ter conhecimento sobre as cartas paulinas, por exemplo, embora revele alguma familiaridade com o Evangelho de São Mateus. Ela também menciona os ritos, práticas e disciplinas diárias que os fiéis deveriam manter, e em nenhum lugar fala da leitura de Escrituras especificamente cristãs. 


Eis o cenário que podemos depreender a respeito do epistolário: alguns destes documentos ainda estavam sendo produzidos nos anos 90 do primeiro século. Já os historiadores acreditam que alguns deles sejam, inclusive, de uma geração posterior, sendo escritos nos anos 120. Portanto, a difusão da totalidade destas obras pelas comunidades não se dá antes de meados do século II. Mesmo depois de já conhecidas, havia dúvida sobre a autenticidade ou necessidade de algumas delas. No fim do segundo século, quando os debates sobre a formação de um cânone já haviam começado, ninguém poderia cravar se Hebreus ou Tito estariam nele, ou se as Epístolas de São Clemente seriam deixadas de fora. 


O que nos traz ao problema inicial, as dificuldades do Protestantismo de lidar com o estabelecimento do Novo Testamento, principalmente diante do Sola Scriptura e da valorização da Igreja que eles chamam de ''Primitiva'', encarada quase como uma Era de Ouro do cristianismo. 


Na próxima postagem, vou incluir os Evangelhos na nossa discussão sobre a formação do cânone. Vou falar um pouco sobre a datação e composição destas obras, sua aceitação na Igreja do primeiro século após à Gloriosa Ressurreição, e de sua coexistência com outro escritos do mesmo tipo que acabaram por ficar de fora do Novo Testamento, ainda que tenham se difundido pelas Igrejas em uma data próxima a dos canônicos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário