domingo, 15 de dezembro de 2024

A PRESENÇA DA VIRGEM MARIA NA IGREJA ''PRIMITIVA''

 "A virgindade de Maria, o parto, e também a morte do Senhor foram escondidos do príncipe deste mundo: três mistérios proclamados em voz alta, mas realizados no silêncio de Deus."

Santo Inácio de Antioquia, Epístola aos Efésios, cerca de 110/120 da Era Cristã

Imagem do início do século III, de mulher tirando água em um poço, na Igreja síria de Dura-Europos, tem sido recentemente identificada como a mais antiga representação da Anunciação. No Proto-Evangelho de São Tiago [meados do século II], a Virgem Maria sabe da Encarnação do Verbo quando vai pegar água, simbolismo associado à Fonte da Vida e da Imortalidade


Protestantes e evangélicos argumentam, em geral, que não há evidências da importância da Virgem Maria na Igreja ''primitiva''. Sempre fico estupefato com esses argumentos. Temos poucos dados sobre os primeiros tempos de Igreja, pelo menos no campo histórico. Os primeiros escritos cristãos datam dos anos 50. Mas se Igreja dita primitiva é aquela apostólica ou, de modo mais flexível, aquela que produziu os escritos hoje canônicos, então temos de esticar a corda até as primeiras décadas do século II, período em que os historiadores consideram que ainda estavam sendo produzidas algumas das obras que hoje constam no Novo Testamento. [Para a datação das obras hoje canônicas leia As Epístolas na Igreja Primitiva e Dos Evangelhos, canônicos ou não]



Ora, nesse período temos também escritos que não são hoje canônicos, como as epístolas de São Clemente de Roma e de São Barnabé, as sete epístolas autênticas de Santo Inácio de Antioquia, os registros de São Papias de Hierápolis, a Didaché, as citações do Evangelho[s] dos Hebreus e do Proto-Evangelho de São Tiago, o Pastor de Hermas, a Apologia de Santo Aristides de Atenas, a epístola de São Policarpo de Esmirna, a epístola para Diogneto. E escritos de não cristãos, como Tácito e Flávio Josefo.


Se Igreja ''primitiva'' é aquela que estava produzindo os escritos hoje canônicos, todas esses escritos listados são testemunhas desse mesmo período, que se estende ao primeiro terço do século II.

Anunciação com a Virgem Maria buscando água no poço, agora tal como no Pseudo-Evangelho de São Mateus, apócrifo do século VII que copiava o Proto-Evangelho de São Tiago. Afresco do século XII na Basílica de São Marco, Veneza, Itália



A presença da Virgem Maria é marcante nos escritos hoje canônicos. Ela é protagonista de um capítulo inteiro do Evangelho de São Mateus e de dois do Evangelho de São Lucas. O mesmo autor de São Lucas faz questão de citá-la no início dos Atos de Apóstolos. Mesmo sem incluir uma narrativa da Natividade do Senhor, São João Teólogo também a cita em pelo menos duas passagens importantes de seu Evangelho: no Milagre das Bodas de Caná e aos pés da cruz, quando o Senhor a deixa sob guarda do Discípulo Amado. Ela também é citada, junto com os 'irmãos do Senhor', no Evangelho de São Marcos.


Não vou me estender sobre outras passagens, em que ela é retratada junto de outras mulheres e acompanhando a Missão Pública de Cristo. E tampouco de passagens polêmicas ou muito rápidas, como a menção a uma mulher em epístola paulina, a possível menção em epístola joanina, ou a Mulher vestida de Sol no Apocalipse de São João.


É seguro afirmar, portanto, que a Virgem Maria consta de TODOS os Evangelhos canônicos e também dos Atos dos Apóstolos. Em alguns mais rapidamente, em outros de forma mais detida e como protagonista de episódios de imensa relevância.

Salus Populi Romani, ícone da Protetora do Povo Romano data do século V, e se encontra hoje no Vaticano



Estas citações a tornam muito mais presente nos escritos canônicos do que, por exemplo, São Tiago o Justo, que é mencionado por São Paulo como uma das colunas da Igreja [ao lado de São Pedro e São João] e que tem papel relevante em Atos dos Apóstolos. E, no entanto, todos reconhecem a importância imensa que São Tiago Adelphotheos tinha na Igreja dita primitiva. Ele também é citado, por exemplo no Evangelho dos Hebreus e em Flávio Josefo.


Nos escritos não canônicos, a Virgem Maria é citada por São Inácio de Antioquia [escrevendo por volta dos anos 110], Santo Aristide de Atenas [por volta de 120] e pelo autor da epístola a Diogneto [também por volta de 120]. O Proto-Evangelho de São Tiago, que citei bastante ontem por conta do filme Mary, lançado pela Netflix, é uma obra dedicada basicamente a ela [leia O Proto-Evangelho de São Tiago e o escândalo].


N'O Evangelho dos Hebreus [que pode se referir a mais de uma obra] temos a menção talvez mais impressionante. Não temos nenhuma cópia dessa obra, apenas citações feitas por Padres da Igreja. Em uma delas, de São Cirilo de Jerusalém, lemos:

"Está escrito no Evangelho dos Hebreus:

"Quando Cristo quis descer à terra para os homens, o Bom Pai convocou um poderoso poder no céu, chamado Miguel, e confiou Cristo aos cuidados dele. E o poder veio ao mundo e foi chamado Maria, e Cristo esteve por sete meses em seu seio."

Ícone miraculoso de Panagia Gerontissa, no Mosteiro de Pantokrator, no Monte Athos



A passagem é heterodoxa, mas dado que é obra atribuída ao primeiro quarto do século II, proveniente de comunidade judaica no Egito, é testemunha óbvia das especulações, crenças e declarações cristãs a respeito da Virgem Maria. Ela é também muito interessante à luz do que tenho escrito sobre a tradição enoquiana [leia A Rebelião de Azazel e Gênesis, as Rebelião Angélicas e Enoque] , as crenças cananeias [leia Os Gigantes nas Escrituras e na História], o Concílio Divino [leia O Judaísmo não era Monoteísta e Iahweh e El]. Dizer, como muitos protestantes, que não há evidência da importância da Mãe de Deus na Igreja Primitiva é puro wishful thinking.


Se os protestantes quiserem deixar de fora, arbitrariamente, obras das primeiras décadas do século II, vão ter de justificar a datação dos canônicos por métodos que são pouco seguros no campo da historiografia atual. Em geral, vão ter de remontar também à Tradição da Igreja. Mas isso tampouco é boa ideia para quem pretenda negar a importância da Virgem Maria.


Ícone de Theotokos Platytera, ''Mais Ampla/Maior que os Céus"


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