"O ontem do Ocidente preparou o hoje do Ocidente como um Ocidente Global. Os valores ocidentais de ontem, incluindo o cristianismo ocidental, prepararam os valores hipermodernos de hoje. Pode-se rejeitar esse último passo, mas o passo precedente, que vai na mesma direção, não pode ser considerado uma alternativa séria."
Dugin, "Os EUA e a Nova Ordem Mundial, um debate entre Alexander Dugin e Olavo de Carvalho"
Há anos Alexander Dugin tem mitigado suas teses para adequá-las ao trumpismo e à ascensão chinesa. As reticências em relação à nova superpotência e a preferência por um polo geopolítico extremo-oriental centrado no Japão tiveram de ser deixadas de lado por causa da dependência cada vez maior da Rússia em relação a Xi Jinping.
Já a primeira eleição de Trump forçou uma modificação radical em sua Quarta Teoria Política, que agora desvinculava um suposto Liberalismo 1.0, representado pelas novas forças hegemônicas no Partido Republicano, de um Liberalismo 2.0 que ele clamava ser ''inimigo de qualquer liberdade'' e que identificava com o Partido Democrata na figura de Biden.
Esta semana, Dugin deu um passo além. Depois de vociferar por anos que o Ocidente era não só uma civilização de trevas mas o próprio Anticristo em marcha, o ideólogo cindiu o conceito a fim de acomodar a aliança Trump/Musk. O russo escreveu em sua conta do X:
"De um ponto de vista russo, parece [existir] algo como o "Ocidente coletivo". O comportamento do Ocidente (EUA, UE, OTANlândia) durante a época de Obama, neocons e Biden, e a maioria dos líderes da União Europeia confirmam isto. Mas agora a figura mudou drasticamente. Existe o Ocidente e o Ocidente. O Ocidente número 1 é o do monstro globalista liberal. Mas surgiu o Ocidente número 2. O Ocidente-MAGA. Há portanto duas entidades, não somente uma. E assim o termo "Ocidente" não é mais correto. Ocidente-MAGA vs Ocidente-Monstro. Mas este monstro tem de ter outro nome. Starmer-Macron-Trudeau-Scholz são partes do monstro, mas apenas órgãos, apenas sua interface. As estruturas de Soros são seu sistema nervoso. Mas há algo ainda mais sinistro e horrível por trás da cortina. Algo que mantém unidos todos os elementos do Ocidente-Monstro. E tem tem de ter seu próprio nome."
["From Russian point of view it seemed something like “collective West”. Behaviour of the West (US, EU, Natoland) during Obama, neocons, Biden epoch and most of EU leaders confirmed that. But now whole picture is drastically changed.There is the West and the West. West number one is that of globalist liberal monster. But there appears West number two. MAGA-West.Hence the are two identity not just one. So the name “West” is not correct one any more. MAGA-West vs Monster-West. But this monster should have another name. Starmer-Macron-Trudeau-Scholz are parts of monster but just organs, just interface. Structures of Soros is nervous system. But there should be something more sinister and horrible behind the curtain. Something that holds all the elements of Monster-West together. It has to have proper name. "
Fonte: https://x.com/AGDugin/status/1876897209611944323]
Desse modo, o movimento trumpista [Make America Great Again] e Ellon Musk já não podem mais ser considerados como a civilização do Anticristo. Trata-se de um Ocidente em guerra contra o próprio Anticristo, o Monstro sem nome de Dugin. As teses do filósofo se aproximam da percepção defendida por Olavo de Carvalho há cerca de vinte anos. O brasileiro via os EUA como uma trincheira de guerra cultural e também apostava no imperialismo ianque como salvaguarda do Ocidente verdadeiro. Dugin expôs aquilo que pensa ser a natureza do ''Ocidente-MAGA":
"As políticas do MAGA no cenário internacional tal como ganham forma exatamente agora na campanha de Musk contra o governantes globalistas na União Europeia confirmam objetivamente a criação de uma ordem mundial multipolar. Claro que a ideia é reorganizar a hegemonia ocidental em uma base diferente. Mas desta a vez a base é a identidade ocidental -- com os EUA no centro, e Europa e Austrália como satélites. O núcleo da civilização branco moderno, majoritariamente cristão, desenvolvido tecnologicamente. Todo o restante é periferia de menor importância. A Rússia é esquecida (não é mais o inimigo número 1). A Índia substitui a China. A China, o mundo islâmico, a África e a América Latina são dor de cabeça. Eles devem ser neutralizados de algum modo, reduzidos a seus âmbitos históricos. A imigração no Ocidente deveria ser regulada e controlada com assimilação e integração a partir da aceitação da identidade ocidental. O Ocidente para os ocidentais e aqueles que sinceramente partilham de seus valores. Esta estratégia se opõe quase em tudo aos liberais e aos globalistas. Ela leva, talvez a despeito de seus arquitetos e construtores, à multipolaridade -- os não ocidentais começam a reorganizar suas próprias civilizações. O trumpismo em Relações Internacionais é a reorganização da hegemonia ocidental com fundamento no liberalismo de direita e na identidade ocidental. Mas a preocupação principal é a América, a doutrina Monroe, a expansão meridiana e a consolidação da Europa inscrita na zona direta de influência americana. É a nova versão do realismo ofensivo, um tipo de imperialismo americano. Objetivamente, facilita a formação de outros polos civilizacionais que não estão incluídos no núcleo ocidental. Algo como o sugerido por Huntington."
[fonte: https://alexanderdugin.substack.com/p/the-trumpism-in-ir-is-reorganisation]
Em termos geopolíticos, a abordagem é condizente com algumas das alternativas construídas por Dugin em suas publicações geopolíticas mais recentes. No livro "Eurasian Mission" [2014], o ideólogo russo já mostrava seu apreço por esta solução:
"Os planos eurasianos para o futuro presumem a divisão do planeta em quatro cinturões geográficos verticais, ou zonas meridianas, do Norte ao Sul. Ambos os continentes americanos vão formar um espaço comum orientado e controlado pelos EUA segundo a arquitetura da Doutrina Monroe. Esta é a zona meridiana Atlântica. Em adição, três outras zonas estão planejadas. Elas são as seguintes: Euro-África, com a União Europeia em seu centro; a zona Rússia-Ásia Central; a zona do Pacífico. É no interior destas zonas que se darão a divisão do trabalho e a criação de áreas de desenvolvimento e corredores de crescimento. Cada um destes cinturões (zonas meridianas) contrabalança a outra, e todas elas justam contrabalançam a zona meridiana. No futuro, estes cinturões serão o fundamento sobre o qual vai ser construído um modelo multipolar de mundo: vão existir mais de dois pólos, mas seu número será muito menor do que o número de Estados-Nações. O modelo eurasiano propõe que sejam quatro.”
[fonte: https://andreluizvbtr.blogspot.com/2022/05/dugin-depois-de-foundations-ou.html]
Em 2017, primeiro ano do primeiro mandato de Trump, Alexander Dugin escrevia em "Rise of the Fourth Polytical Theory":
"Se três “Grandes Espaços” estão aptos para uma expansão, de modo a se tornarem “Impérios”, “Reichs”, então a expansão americana, que clama atualmente um escopo universal e global, terá de se contrair. Para que os EUA retornem à versão original da “Doutrina Monroe”, para que se torne de novo um “Grande Espaço” e um “Império”, é sua influência deve ser apreciavelmente diminuída. Esta análise demonstra que a teoria dos “Grandes Espaços”, de Carl Schmitt, como expressão gráfica de todas as construções da Quarta Teoria Política, é a plataforma mais segura para um mundo multipolar, o anti-globalismo, o anti-americanismo e a luta de libertação nacional da dominação global americana.”
[fonte: fonte: https://andreluizvbtr.blogspot.com/2022/05/dugin-depois-de-foundations-ou.html]
A "expansão meridiana" como a afirmação de um império americano mais restrito e calcado na Doutrina Monroe e na influência na "Europa atlantista'' é uma agenda inscrita na militância de Dugin há pelo menos dez anos. Seria possível voltar até mais no tempo para flagrá-la em sua proposta de ''mundo quadripolar".
Daí se entende a comemoração efusiva do intelectual russo com a vitória de Trump no fim do ano passado. Em 6 de novembro de 2024, Dugin declarava que o resultado das eleições norte-americanas era a vitória final da multipolaridade, o que não deixa de ser irônico para um evoliano anti-democrata que identificava a América com os infernos:
"Então vencemos. Isso é decisivo. O mundo jamais será o mesmo de novo. Os globalistas perderam seu combate final. O futuro finalmente está aberto. Estou realmente feliz."
[So we have won. That is decisive. The world will be never ever like before. Globalists have lost their final combat. The future is finally open. I am really happy.]
Dugin repete mais uma vez que o novo mundo multipolar de potências imperialistas coloca fim à era dos Estados Nacionais. É verdade que distintas civilizações tem o direito às suas próprias articulações culturais e identidades, mas a soberania de fato pertence só aos polos geopolíticos. Em 7 de janeiro, o russo publicava no X:
"A Ucrânia está totalmente esquecida agora. O mundo em que estamos entrando agora não reconhece nem o Canadá nem a Ucrânia. O mundo multipolar, só existem verdadeiramente grandes poderes soberanos."
[fonte: https://x.com/AGDugin/status/1876753078583500885]
Para além do sabor olavético e das semelhanças com a perspectiva do ex-chanceler Ernesto Araújo, a perspectiva duginista tem consequências óbvias para os países que estão fora da ''festa'' das grandes potências militares. Eles deixam de ter, Brasil incluído, ''direito'' ao reconhecimento de sua soberania nacional. Na multipolaridade de Dugin, a Ucrânia e o Canadá só tem direito à existência como quintal de alguma grande potência. Para os demais povos americanos, as propostas de Dugin representam não só Doutrina Monroe, mas também Big Stick. Para ele não há problema algum, é apenas a consequência exata de sua agenda, em que a Rússia se vê livre da pressão atlantista e com carta branca para reconstruir seu espaço geopolítico imediato.
Como escrevi ao longo dos últimos três anos, a agenda duginista é uma tentativa de recuperar o mundo anterior à Primeira Guerra Mundial. Quando o ideólogo fala de combater o ''liberalismo 2.0" e o "Ocidente-Monstro", pretende apenas recuperar a ordem liberal moderna dos grandes impérios oitocentistas que competiam sem freios pelo domínio dos demais povos. Está tudo bem, desde que seja tudo feito em nome da "Tradição" e não do ''progressismo''.
Este mundo seria uma derrota para o globalismo, avisa Dugin. Mas é um mundo satisfatório para o Brasil e demais nações do Sul Global? A multipolaridade de Dugin é liberdade para o Império russo, mas para a América Latina é a nova forma de um velho aguilhão.
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