sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

Nosferatu [2024] e A Bruxa [2015], o terror sobrenatural de Eggers contra a fragilidade do racionalismo

 


No fim de 2023, escrevi no meu Facebook sobre o filme 'A Bruxa' [The Witch], a estreia de Robert Eggers em 2015. [Reproduzo o texto no fim dessa postagem.] O intuito era apontar a incapacidade de muitos críticos de perceberem que o filme era sobre...bruxaria! Preferiam psicologizar os temas, tratá-los como alegorias contra uma sociedade patriarcal, misógina, repressora e supersticiosa. 


Ainda que o filme tangencie isso tudo, a pegada é terror sobrenatural. A feiticeira está mesmo lá na floresta, ela de fato sequestra o bebê e o mata em um ritual para reforçar seus poderes mágicos, a protagonista verdadeiramente estava em um processo de pacto com o cramulhão. As viseiras ideológicas não permitiam, no entanto, que estas pessoas notassem o minucioso trabalho de reconstrução histórica de Eggers e seu talento para nos transportar para um mundo em que bruxas existem. 


Pois bem, assisti ontem 'Nosferatu' [2024], do mesmo diretor, que já disse alhures que seu sonho de infância era fazer um remake do clássico imortal de Murnau, lançado no auge do cinema mudo, ainda em 2022. [E que gerou outro filmaço no fim dos anos 1970, dessa vez dirigido por Herzog, e protagonizado por Klaus Kinske e Isabelle Adjani]. O tamanho do desafio tinha tudo para fazer o sonho se tornar um pesadelo. Eggers conseguiu, no entanto, transformar o clássico em um filme seu, e um filme seu em uma síntese do terror gótico e das crenças medievais e modernas no vampirismo, antes  das idealizações juvenis do século XX. 



Mais ainda, ele aproveita para criticar explicitamente a mentalidade modernosa, iluminista e cientificista que aliena o ocidental do sagrado, das forças psíquicas e espirituais, e o torna presa fácil de um mundo cuja existência ele se recusa a admitir. O diretor mira justamente nas pessoas que assistem um filme sobre bruxaria sem conseguir ver a bruxa que é assunto principal da trama. Nas palavra de Von Franz [William Defoe vivendo o 'Van Helsing' da vez], a ciência tanto nos iluminou quanto nos cegou para estas forças cósmicas. Aliásd, o personagem que tipifica o racionalismo da Europa oitocentista é punido pela perda de toda sua família.


Tenho um texto sobre o assunto nesse blog [leia Sobre o Vampirismo] e recomendo a leitura para aqueles que desejam vislumbrar os fundamentos da história [re]contada por Eggers. O diretor se focou no 'folclore' das populações do período e complementou tudo com leitura esotérica e ocultista o suficiente para realizar seu sonho de criança. De todas as versões de Nosferatu/Drácula, esta é disparada a que melhor capta o esqueleto que sustenta o famoso conto de um entidade atraída dos confins de uma Europa distante temporal e geograficamente do Ocidente nascente. 


Afinal, os ''oceanos de tempo'' atravessados pelo nosferatu, citados por Coppola em seu 'Drácula, de Bram Stoker' [1992], não passam, no fundo, de uma viagem do interior da Romênia para alguma cidade portuária alemã. Diferente de Coppola, no entanto, o vampiro não tem qualquer laço afetivo e emocional por Ellen Hutter [nossa 'Mina', vivida por Lily-Rose Depp]. O próprio Conde Orlok afirma a certa altura que ''não passa de um apetite'' invocado pela força psíquica de uma adolescente que, sem conseguir lidar com seus dons preternaturais, sofrendo com a distância do pai, e com o erotismo à flor da pele, se envolve com um íncubo. O tema da possessão demoníaca permeia o filme, e a atuação de Depp impressiona na fisicalidade e nas transformações ocasionadas pelos ataques sobrenaturais e histéricos, pelos transes, pela epilepsia e pelas neuroses. Longe de ser uma vítima, ela é antes a 'feiticeira' que invocou um gigante até então preso no Hades. 



De modo similar, os costumes e ritos de ciganos e de religiosos romenos são retratados com fidedignidade capaz de gerar assombro no espectador. E também as práticas ocultistas de uma burguesia em busca de imortalidade, tipificadas aqui pelo bizarro Herr Knock [vivido por Simon McBurney]. Sigilos e círculos esotéricos, o envolvimento com feitiçaria que leva à transformação em vampiro após a morte, o papel de virgens no processo de caça ao monstro, o misticismo cristão-ortodoxo, e a ideia de pacto satânico [com ecos também de bruxaria. Está tudo lá. 


E Bill Skargard constrói o Orlok/Drácula mais terrífico já visto. Tudo nele remete a algo profano, corrupto e demoníaco, formados pela conjunção de uma voz aberrante, vinda de algum lugar do inferno, entrecortada com soluços e uma respiração difícil, e o corpanzil de dois metros se movimentando com dificuldade em uma figura montada em muita pesquisa sobre os nobres romenos do século XV.  De resto, a experiência imersiva de mundos históricos apresentados de forma impressionante, e com sutilezas, como o castelo tcheco usado no filme de Herzog. Os aspectos técnicos são um dos pontos altos, principalmente a cinematografia e o ritmo. Aliás, a tensão não cai em momento algum, o espectador está sempre desconfortável diante do conto de horror.


Vai ter gente reclamando que o filme não dialoga com  as pessoas do nosso tempo. O que não passa de mais uma bobagem iluminista. Por trás da máscara de racionalização, todos nós continuamos, ao fim e ao cabo, com medo do escuro.




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Abaixo, texto de novembro de 2023.



Revi ontem 'A Bruxa' [The Witch], filme de estreia de Robert Eggers, lançado em 2015. E aí resolvi olhar algumas análises e fiquei surpreso com resistência de boa parte das críticas a enxergar o óbvio. O que vi de nêgo virando do avesso a obra pra encaixotá-la em noções feministas, desprezo pela crença em bruxaria, e discurso anti-religioso não está no gibi.

Em um dos canais, um sujeito com nítidas crenças ocultistas fazia uma salada para defender que a bruxa da floresta não passava de uma criação da imaginação de fanáticos cristãos, mas que se torna um foco de parasitismo psíquico capaz de atuar de modo autônomo em relação às neuras e traumas que a geraram. Isso é ocultismo de segunda série primária; mas pior ainda porque desdito pelo próprio filme.

Existe muito papo sociologizante, e o tema tem seu espaço, claro. Muitos focam só nas questões de gênero, na repressão sufocante do puritanismo, e se apegam demasiadamente ao terror psicológico da obra.

Mas não percebem ou preferem não perceber que 'A Bruxa' não é só um terror psicológico, e sim um terror sobrenatural. Esses dois aspectos não estão separados, nem muito menos compartimentalizados.

Para não admitirem essa simplicidade, dão voltas e voltas argumentativas, torcem e distorcem o enredo e as cenas, como se o filme mantivesse o tempo todo uma ambiguidade sobre a realidade ou não da Bruxaria e do diabo. Ora, Eggers explora elementos importantes da relação entre os personagens, dos entrelaçamentos entre fé e dúvida, das rivalidades e desconfianças crescentes no interior da família, bem como dos aspectos culturais e históricos envolvidos. Mas a sutileza está em mostrar, desde o início, que tudo isso é joguete nas mãos do capiroto.

O diretor e roteirista estudou a fundo os julgamentos de bruxaria nos EUA e Inglaterra nos séculos XVI e XVII -- auge do fenômeno de "caça às bruxas" que tomou conta da Europa, e momento histórico em que se consolidou a imagem tipicamente europeia de bruxa que nos chegou, de forma matizada, a partir do folclore oitocentista redescoberto e reelaborado.

A derrocada da família tem início com o banimento da colônia em que viviam, motivada por orgulho e rigorismo religioso. Segue com o sequestro do bebê pela bruxa da floresta. As cena seguintes são tenebrosas e seguem à risca as crenças que o alvorecer da Era Moderna tinha sobre a bruxaria. A bruxa, na forma de uma velha nua, arranca o pênis do bebê, canibaliza a criança, se unta com seu sangue, faz unguentos e fabrica uma vara/vassoura com a qual pode voar. O diabo se manifesta em forma de lebre, de corvo e, principalmente, como um bode preto [Black Phillip], que se comunica com Mercy e Jonas, casal de gêmeos ainda na primeira infância, e os ensina uma música blasfema que revela a real natureza do animal. No fim da obra, o cramulhão toma sua forma mais perigosa, a humana, quando então sacramenta o pacto com Thomasin através do sexo.

Por fim, muitos que conseguem enxergar os elementos sobrenaturais do filme mantém, ainda assim, a opinião de que, apesar disso tudo, Thomasin é uma vítima da misoginia e do fanatismo religioso da época. Ela teria se tornado uma bruxa apenas no fim do filme, quando já não tinha qualquer alternativa.

Mas isto é falso. Ainda que toda a família seja afetada e influenciada pelo Mão-Peluda, e ainda que até mesmo Katherine, a mãe e dona da casa, conceda em ser parasitada por demônios -- momento em que William, vivido pelo excelente Ralph Ineson, deixa de ser de fato a cabeça daquele lar, e pode ser, então, assassinado pelo cramulhão --, Thomasin É A BRUXA desde o início, ainda que aja inconscientemente e lute contra a descoberta ou a revelação de seu próprio papel na trama.

Mas só saca inteiramente este último ponto quem não foi consumido por ocultismo de segunda série primária.


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