terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

Dos Evangelhos, canônicos ou não, ou: A Formação do Cânone, parte 3

 




1. Introdução


Por curioso que possa parecer, os Evangelhos geraram um consenso mais rápido na Igreja que o epistolário e outros documentos. Ainda assim, esse consenso não surgiu no século I nem na geração apostólica. Ele é fruto do segundo terço do século II. E não impediu que outros escritos sobre a vida pública de Jesus tivessem forte influência na Igreja desse mesmo período.


Havia uma tendência dos historiadores de proporem uma datação tardia aos Evangelhos. Ela foi revertida a partir dos anos 1930/40, na medida em que se estudavam as citações sobre eles nas obras dos escritores cristãos dos séculos II e III, e em que se descobriam fragmentos de manuscritos. 


Já escrevi uma postagem sobre a datação dessas obras [clique no link], então não preciso me alongar. No quadro podemos ter uma ideia da maneira como os acadêmicos veem este tema e compará-lo com a atribuição tradicional. Mas devo acrescentar algumas palavras. 


Não deve existir qualquer constrangimento para um cristão em sustentar a datação tradicional. A pesquisa acadêmica data São Lucas e São Mateus após a Destruição do Templo com argumentos bastante frágeis, baseados principalmente em certa descrença sobre a possibilidade deste conflito ter sido previsto nos Sinóticos. Afinal, ''profecias não existem''. Há, porém, motivos muito bons, mesmo do ponto de vista histórico e  das evidências internas textuais para considerar estes textos como anteriores aos anos 70. 


Um segundo debate é quanto a autoria. Há uma descrença generalizada nos meios históricos com a atribuição tradicional. Em geral, os historiadores tratam esses textos como ''anônimos'' porque os evangelistas não se nomeiam no corpo do documento. E no entanto não temos nenhuma evidência de que eles tenham sido algum dia atribuídos a outras pessoas que não São Mateus, São Marcos, São Lucas e São João. As primeiras menções aos evangelhos hoje canônicos, ainda na primeira década do século II, trazem, de modo unânime e sem discordâncias, essas atribuições. A rápida difusão e autoridade que esses escritos ganharam na Igreja é mais um argumento a favor da abordagem tradicional.


Um terceiro ponto diz respeito ao Evangelho de São João. Alguns especialistas defendem que o texto foi composto em etapas [mais ou menos aplicando a este Evangelho a tradicional tese sobre o Livro de Isaías]. A camada mais antiga remontaria aos anos 50, uma segunda diria respeito aos anos 70, e uma  terceira seria a redação final no fim do primeiro século. Esta hipótese é altamente especulativa, e enfrenta muitos problemas dada a unidade óbvia do texto. É fácil perceber que ele tem um epílogo, mas sua estrutura -- desde o preâmbulo, passando pelos sete sinais, até a teologia da Paixão e da Ressurreição, e finalmente a confissão da Divindade de Cristo por São Tomé --, formam um todo bastante consistente, incluindo de um ponto de vista estilístico.

Fragmentos contendo versículos de São Mateus, primeiras décadas do século II

Há também muitas questões levantadas sobre quem seria o João por trás do Evangelho. A Tradição cristã afirma que se trata de um dos Doze Apóstolos, mais especificamente João filho de Zebedeu, irmão de São Tiago Maior. Os críticos do texto levantam dúvidas, mas nas últimas décadas se criou um consenso de que, seja quem for que esteja por trás deste documento, também produziu as três cartas hoje canônicas. [Do Apocalipse vou tratar depois.]


Por fim, existem duas questões muito importantes sobre os canônicos: o final perdido de São Marcos e a famosa Perícope da Adúltera, assuntos que vou abordar nessa postagem. 



2. Da autoridade dos Canônicos

Os Evangelhos canônicos já eram citados na Primeira Epístola de São Clemente de Roma, escrita entre os anos 70 e 90 do primeiro século. Há passagens na Carta que revelam conhecimento dos Evangelhos de São Mateus e de São Lucas, embora os textos não sejam referenciados no corpo da Epístola. 


Há uma menção ainda mais substancial em São Papias de Hierápolis, que esclarece, em obra escrita por volta do ano 100, a origem dos Evangelhos de São Marcos e de São Mateus, usando como  suposta fonte uma figura que ele chama de "São João, o Ancião". A maior parte dos escritores antigos [mas não todos] concluiu que ele se referia a São João Evangelista [e, por inferência, a São João Teólogo].


Esse testemunho é importante de mais de uma maneira. Primeiro, mostra que os evangelhos canônicos se difundiram rapidamente pelas comunidades cristãs. Segundo, e já me repetindo, revela que os textos sempre foram atribuídos a estes autores específicos. Em terceiro lugar, e ainda mais fundamental, o modo como São Papias se refere a estes documentos não parece indicar que eles tivessem o status de Escritura Sagrada. 


Pelo contrário, ele afirma dar mais importância às narrativas e ensinamentos que pode coletar pelo contato direto com os discípulos dos Apóstolos do que com os escritos que porventura lhe chegam. Ou seja, para São Papias, a tradição oral e discipular tinha precedência até mesmo sobre os Evangelhos.


A importância dos canônicos aumentou muito rapidamente, e São Justino Mártir, escrevendo por volta do ano 150, indica que eles eram lidos em voz alta no culto cristão. Como esta prática não é mencionada na Didaché -- obra que mencionei na postagem anterior -- ou em Padres como Papias, é possível concluir que, em algum momento do segundo terço do século II os Evangelhos hoje canônicos passaram a ser considerados com um status similar ao das "Leis e Profetas", ou seja, das Escrituras Judaicas [em sua versão da Septuaginta]. 


Na década de 160, um escritor assírio de nome Taciano sintetizou os quatro evangelhos canônicos em um texto único, o Diatéssaron. E por volta de 180, Santo Irineu de Lyon defendia o uso dos quatro Evangelhos, chamando-os de Evangelho tetramorfo.


Ícone de São Papias, Bispo de Hierapolis


Como não temos qualquer evidência de cânone em que constasse um Evangelho diferente dos canônicos [exceto aquele de Marcião de Sínope, que originou as discussões sobre a necessidade de uma lista oficial de livros], é bem possível que a autoridade de São Mateus, São Marcos, São Lucas e São João fosse inconteste desde o início. A própria rapidez com que esses documentos se tornaram conhecidos [há fragmentos de São João encontrados em diferentes localidades do Egito e datados dos anos 120] indica a aceitação que tiveram nas comunidades cristãs e sua diferença capital para todos os demais livros que mencionavam ensinamentos de Cristo. 


Daí não se tira, no entanto, que os demais ''evangelhos'' fossem inteiramente desconsiderados. Vamos nos voltar para eles.



3. Apócrifos pero no mucho


Existiram evangelhos que, apesar de não terem o status dos atuais canônicos, foram lidos de forma sistemática pelos cristãos do século II. Chama a atenção, por exemplo, as menções ao Evangelho dos Hebreus, que alguns historiadores acreditam, de forma bem fundamentada, ser uma referência a três obras distintas, uma delas, inclusive, associada à suposta versão em aramaico de São Mateus. 


Não existem cópias ou fragmentos dessas obras, mas elas são citados por autores dos século II e III. Os historiadores datam este Evangelho entre os anos 100 e 130, e o consideram fruto de uma comunidade judaico-cristã do Egito. Há três elementos importantes no texto:


a) Ele preserva a tradição de que São Tiago o Justo teria sido um dos primeiros para quem Cristo apareceu logo após a Ressurreição. Esta história não é mencionada em nenhum Evangelho Canônico, mas é bem antiga na Igreja, já que mencionada por São Paulo na I Epístola aos Coríntios. São Tiago o Justo é personagem importante em Atos dos Apóstolos, em que é retratado como líder da Igreja de Jerusalém. A Carta de São Paulo aos Gálatas, documento de fins dos anos 40, atesta que ele era considerado uma das "três colunas da Igreja''. A menção à aparição de Cristo a São Tiago "Irmão do Senhor" sinaliza a antiguidade das tradições mantidas por essa comunidade cristã do Egito;


b) Esse mesmo texto revela a crença de que a Mãe de Cristo era a encarnação de um Poder Angélico chamado São Miguel. Esta crença não foi acolhida na Igreja, é francamente heterodoxa. Mas demonstra, sem sombra de dúvida, que a mesma Igreja que definiu uma lista de livros oficiais engrandecia o status de Maria ''plena de graça".


c) Sua associação com a ''Perícope da Adúltera'' no Evangelho de São João, que vou mencionar logo adiante.


Outro texto do período bastante lido e que deixou uma influência imensa na Igreja foi o "Proto-Evangelho de São Tiago'', também chamado por alguns de "Evangelho da Infância de São Tiago". Há alusões a ele em escritores cristãos do último terço do século II. A sobrevivência de diversos manuscritos indica sua imensa difusão entre os cristãos, e aponta que a obra data, pelo menos, da primeira metade do século II. 


É desse documento, ou das tradições compiladas nele, que nos chegam a maior parte das informações presentes na Mariologia, tal como o anúncio do nascimento da Mãe de Deus pelo Arcanjo Gabriel, sua criação no Templo de Jerusalém, a escolha de São José para guardá-la por meio de uma casamento, bem como sua virgindade perpétua. 


Papiro egípcio do final do século III com trechos do Proto-Evangelho de São Tiago Adelphotheos


Apesar disso, o Proto-Evangelho foi esquecido no Ocidente cristão por desagradar a São Jerônimo, que não aceitava a versão de que os ''irmãos de Cristo'' eram filhos de um primeiro casamento de Sao José. São Jerônimo sustentava que São José tinha um voto de celibato. 


Ainda assim, as tradições do Proto-Evangelho de São Tiago foram retomadas em um texto apócrifo do século VII que circulou no Ocidente com o nome de Pseudo-Evangelho de São Mateus [ou ainda como "Evangelho da Natividade de Maria"], já sem as características que levaram o original a ser criticado por São Jerônimo. 


As tradições compiladas na obra atribuída a São Tiago compõem, no entanto, a versão oficial na Igreja Ortodoxa. Há consenso de que são antiquíssimas, já que o texto foi escrito entre 110 e 140. Ele é mais uma prova irrefutável que a devoção à Santíssima Virgem Maria e seu status entre os cristãos estava presente nas mesmas gerações que decidiam pela composição do Novo Testamento. 


É possível provocar ainda mais neste ponto já que, para a pesquisa acadêmica, alguns dos textos que viriam a compor o cânone cristão foram escritas na mesma época que os Evangelhos dos Hebreus [que podiam ser três textos diferentes] e o Proto-Evangelho de São Tiago. Enfim, muitos elementos da Mariologia já eram comuns em comunidades cristãs de forte influência judaica. 



4. E Tomé?


Existem alguns textos de meados do século II que são conhecidos pelas fortes críticas que receberam de escritores cristãos na Antiguidade. Seu conteúdo tem forte tendência gnóstica e helenista, e eles nunca foram debatidos a sério para o cânone da Igreja. Fazem parte deste grupo o Evangelho da Verdade, o Evangelho dos Doze Apóstolos, e o Evangelho de Basilides, todos compostos no terceiro quarto do século II. 


Mas há pelo menos um Evangelho com sabor gnóstico em que devo me deter, o famoso Evangelho de Tomé, descoberto em meados do século passado e que ocasionou um frenesi e certa disputa entre os pesquisadores. Por ser um Evangelho de ditos -- sem uma estrutura narrativa, apenas frases e parábolas atribuídas a Cristo e iniciadas pelas palavras "Disse Jesus..." --, ele reforçava a hipótese Q, que mencionei nessa postagem [clique no link]. Alguns círculos [com destaque para o Jesus Seminar] argumentaram que o texto era dos anos 50, o que faria dele um dos documentos mais antigos do Cristianismo.


Mas essa não é a tese dominante hoje em dia. Estudos indicaram que mais de dois terços do texto são tentativas de harmonizar trechos de São Lucas e de São Mateus, ao modo do Diatéssaron [mas na forma de Ditos]. Além disso, há passagens francamente gnósticas. A maior parte dos pesquisadores o data na segunda metade do século II, e o considera dependente dos canônicos, ainda que haja possibilidade de que mantenha estratos de tradição oral do primeiro século. 


De todo modo, o Evangelho de Tomé não teve grande difusão, nem ocasionou qualquer debate na Igreja Primitiva. É um documento sem grande importância para nossa discussão.


Diatessaron, de Taciano, escrito por volta de 160/170



5. Evangelhos 'rasurados'?


Existem duas ''rasuras'' famosas nos canônicos e que despertam viva polêmica. A primeira é conhecida como o final perdido de São Marcos. Nos manuscritos à disposição, o Evangelho de Marcos acaba no versículo 8 do capítulo 16. As passagens do versículo 9 a 20 estão faltando. No entanto, estas passagens são citadas e aludidas em obras de cristãos do último terço do século II. A explicação mais aceita hoje em dia é a de que o final original foi perdido e reescrito um pouco mais tarde [ainda nas primeiras décadas do século II] por algum copista. 


[A alternativa seria acreditar que o final canônico seja exatamente aquele escrito por São Marcos, e que foi perdido em alguns manuscritos antigos mas preservado em outros aos quais não temos acesso ainda. Mas é uma tese bastante discutível porque conhecemos versões destes trechos com notações e com fraseologia diferente].


Há bons indícios, assim, de que o final canônico de São Marcos não foi escrito pelo próprio Evangelista, e sim por algum Padre da virada do século I para o II. Os últimos versículos deste Evangelho seriam pós-apostólicos.


Mais forte ainda é a ''rasura'' em São João. É que nenhum dos manuscritos antigos contém a famosa Perícope da Adúltera, entre 7:53 e 8:11. Mais ainda, as leituras do Evangelho para a Festa de Pentecostes, na Igreja Ortodoxa, pulam justamente esta passagem -- como é simples confirmar pelas leituras da quarta semana após a Páscoa. A história da adúltera perdoada por Cristo não consta dos dois papiros mais antigos contendo capítulos inteiros de São João, ambos datados da virada do século II para o III, nem tampouco dos dois códices canônicos preservados do século IV. Ela só aparece em manuscritos do século V. E em alguns casos, aparece no Evangelho de São Lucas.


O mais curioso é que essa história era conhecida pelo menos desde os fins do século I. São Papias, a menciona por volta do ano 110, dizendo que ela constava do Evangelho dos Hebreus. Agápio de Hierápolis, escritor medieval, afirmou que São Papias incluiu a história em sua obra "Exposição dos Ditos do Senhor"Há também menções a ela em obras cristãs do século III [Disdacalia] e em Padres do século IV, como Dídimo o Cego e Santo Hilário de Poitiers.


Há quem defenda que a autoria da perícope é do próprio São João Teólogo, mas estão em franca minoria e em muita desvantagem quanto as evidências atuais, pelo menos no campo historiográfico. Até que se descubra qualquer dado que mude o veredito atual na pesquisa acadêmica, dificilmente se pode sustentar, neste terreno, que a passagem saiu da pena de São João ou de um possível ''secretário''.


Não se sabe ao certo como uma narrativa que circulava na tradição oral desde pelo menos fins do século I e que possivelmente constava em um Evangelho Apócrifo [O Evangelho dos Hebreus, a se acreditar em São Papias] veio a fazer parte do Evangelho de São João. De todo modo, é mais uma demonstração inequívoca de que a canonicidade dos textos, narrativas e passagens da vida de Cristo dependem da autoridade da Igreja para reconhecer a inspiração do Espírito Santo. Em algum momento do século IV ou V, a Perícope da Adúltera, bastante conhecida na Igreja dos primeiros séculos, foi estabelecida no texto de São João sem gerar qualquer problema quanto a sua aceitação.





6. Evangelhos definidos, mas não um Cânone


De modo que temos o seguinte cenário após as considerações acima. Os Evangelhos hoje canônicos foram compostos entre os anos 50 e 100, ainda na geração apostólica. Foram imediatamente abraçados pelas comunidades cristãs, se difundiram de forma rápida [São João, escrito nos anos 90, já circulava pelo Egito vinte anos depois], sempre com a mesma atribuição de autoria. 


Entre 120 e 150, os Evangelhos passaram a ser lidos nos cultos [encontros] cristãos com o mesmo status que a Septuaginta. O peso dos Quatro Evangelhos nunca foi contestado nem igualado por qualquer outra obra do mesmo tipo, mas se tinha consciência de que eles apresentavam variações nos manuscritos, e que histórias fora dele também faziam parte do legado da Igreja. Outros Evangelhos tinham algum grau de aceitação, como se sabe pelo respeito às tradições contidas nos Evangelhos dos Hebreus [inclusive na provável perícope da Adúltera] e no Proto-Evangelho de São Tiago. 


Chegamos à segunda metade do século II sem nenhuma lista oficial de livros, nenhum cânone, nada que lembrasse um Novo Testamento. Em meados do século II, o Sola Scriptura pareceria para a Igreja um delírio. 


Antes de falar do cânone propriamente dito, cumpre dedicar tempo à terceira categoria de escritos, contendo os livros de instrução, os livros de Atos [o de São Lucas, hoje canônico; mas também o de Paulo e o de Paulo e Tecla], e a literatura apocalíptica [de São João, e de São Pedro].


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